Adivinhas no Escuro

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Escrito por John Ronald Reuel Tolkien
Nota do Tradutor: Quando da publicação de O Senhor dos Anéis, Tolkien reescreveu determinadas partes de O Hobbit, para que fechasse com a narrativa da saga maior. Segue, também, em notas de rodapé, as modificações feitas pelo professor, conforme a edição brasileira, além de outros comentários acerca do capítulo. Agradeço ao Pandatur Parmandil por ter encontrado este texto, que há muito procuro.
 

Adivinhas no Escuro

conforme escrito na primeira edição de O Hobbit

 
 
Quando Bilbo abriu seus olhos, ele pensou se realmente o fizera, pois continuava tão escuro quanto quando estava com eles fechados. Não havia ninguém perto dele. Imagine seu medo! Ele não podia ver nada, ouvir nada ou sentir nada, exceto a pedra do chão.
 
Lentamente, se levantou e foi engatinhando, até que tocasse a parede do túnel; mas nem para cima, nem para baixo, ele pôde encontrar alguma coisa: nada mesmo, nem sinal dos goblins, nem sinal dos anões. Sua cabeça rodava, e ele estava longe de ter certeza sequer sobre a direção que corria quando caiu. Ele supôs da melhor maneira que pôde, e engatinhou por um longo caminho, até que, de repente, sua mão encontrou o que parecia ser um pequeno anel de metal frio caído no chão do túnel.
Era um ponto decisivo em sua carreira, mas ele não sabia disto. Ele colocou o anel em seu bolso, praticamente sem pensar; ele certamente não parecia ser útil naquele momento. Ele não foi muito além, mas sentou no chão frio e entregou-se à mais completa infelicidade, por um bom tempo. Ele pensou nele mesmo, fritando bacon e ovos em sua cozinha em sua casa – pois ele sentia por dentro que era hora de alguma refeição; mas isso apenas o deixou mais infeliz.
 
Ele não podia pensar no que fazer; nem podia ele pensar no que aconteceu; ou por que ele havia sido deixado para trás; ou por que, se ele tivesse sido deixado para trás, os goblins não o haviam capturado, nem por que sua cabeça estava tão dolorida. A verdade é que ele estava deitado e imóvel, fora do alcance da visão e esquecido, em um canto muito escuro por um longo tempo.  Depois de um tempo, ele tateou atrás de seu cachimbo. Não estava quebrado, o que já era alguma coisa. Então ele tateou atrás de sua bolsa, e havia algum tabaco ali, e isso era mais alguma coisa. Então ele tateou atrás de fósforos, mas não pode encontrar nenhum, e isso destruiu completamente suas esperanças. Era melhor assim, acabou concordando, quando pensou melhor. Sabe-se lá o que seria atraído pelo riscar de fósforos e pelo cheiro de tabaco em buracos escuros daquele lugar horrível. Mesmo assim, naquele momento ele se sentiu aniquilado. Mas, ao tatear seus bolsos e em si mesmo atrás de fósforos, sua mão acabou tocando o punho de sua pequena espada – a adaga que pegara dos trolls, da qual ele havia esquecido; tampouco, felizmente, havia sido encontrada pelos goblins, já que a usava dentro das calças.
 
Então ele a desembainhou. Ela brilhou pálida e fraca diante de seus olhos. “Então esta é uma lâmina élfica também,” pensou, “e os goblins não estão muito perto, mas também não estão longe o suficiente.”
 
Mas de alguma forma, ele estava confortado. Era um tanto esplêndido usar uma lâmina forjada em Gondolin para a guerra dos goblins que muitas canções celebravam; e também ele percebeu que essas armas causavam uma grande impressão nos goblins que atacavam de repente.
 
“Voltar?” pensou. “Não adiantará nada! Ir para os lados? Impossível! Seguir adiante? A única coisa a fazer! Adiante, então!”
 
Então ele se levantou e avançou a passadas largas, segurando sua pequena espada em sua frente e com uma das mãos tateando a parede, e seu coração batendo como um tambor. Agora, certamente pode-se dizer que Bilbo estava em um aperto. Mas você deve lembrar que o aperto não era tão grande para ele como seria para mim ou para você. Hobbits não são como pessoas comuns; e, afinal, se as tocas deles são lugares alegres e devidamente arejados, bem diferente dos túneis dos goblins, ainda assim eles estão mais acostumados a túneis do que nós, além de não perdem facilmente o senso de direção debaixo da terra – não quando suas cabeças já haviam se recuperado de uma pancada. Além disso, eles podem se movimentar silenciosamente, e se esconder com facilidade, e se recuperam maravilhosamente de quedas e ferimentos, e têm um cabedal de sabedoria e ditados sábios que os homens nunca ouviram, ou há muito esqueceram.

 

Eu não gostaria de estar no lugar do Sr. Bolseiro, de qualquer forma.   túnel não parecia ter fim. Tudo o que ele sabia é que seguia para baixo e mantinha a mesma direção, a não ser por uma curva ou duas. De quando em quando, haviam passagens que conduziam para os lados, pelo que podia notar pelo brilho da espada, ou podia sentir com a sua mão na parede. E adiante ele foi, descendo cada vez mais; e ainda assim não ouvia som algum, a não ser uma ocasional batida de asas de morcego, o que o assustava no início, mas que depois se tornou freqüente demais para se preocupar. Não sei por quanto tempo ele seguiu dessa forma, odiando seguir em frente, não ousando parar, em frente e em frente, até ficar mais que cansado. Era como correr todo o caminho até o dia seguinte, e seguir para os dias além.

De repente, sem aviso, estava caminhando pela água! Ugh! estava congelante. Aquilo o fez estacar. Ele não sabia se era apenas uma poça no caminho, ou a beira de uma corrente subterrânea que cruzava a passagem, ou a margem de um lago subterrâneo negro e profundo. A espada mal estava brilhando. Ele parou, e, quando prestou atenção, pôde ouvir gotas pinga-pinga-pingando de um teto invisível e caindo na água: mas não parecia haver nenhum outro tipo de som.

“Então é uma poça ou um lago, e não um rio subterrâneo”, pensou. Mesmo assim, não ou sou atravessar na escuridão. Ele não sabia nadar; e também imaginava seres nojentos e viscosos, com grandes olhos cegos e esbugalhados, serpenteando na água. Existem coisas estranhas vivendo nas poças e lagos nos corações das montanhas: peixes cujos antepassados entraram, sabe-se lá quantos anos atrás, e nunca mais saíram novamente, e seus olhos cresceram mais e mais e mais, de tanto tentar enxergar na escuridão; também há coisas mais pegajosas que peixes. Mesmo nos túneis e nas cavernas que os goblins fizeram para si, existem coisas que vivem em segredo, que entraram furtivamente e se entocaram no escuro. Além disso, algumas dessas cavernas existem desde eras antes dos goblins, que apenas as ampliaram e as interligaram com passagens, e os proprietários originais ainda permanecem lá em cantos escusos, movimentando-se furtivamente e farejando tudo.

Lá no fundo, na beira da água escura, vivia o velho Gollum, uma pequena criatura viscosa. Eu não sei da onde veio, nem o que ele era. Ele era Gollum – escuro como a escuridão, exceto por dois grandes olhos redondos e pálidos em seu rosto magro. Ele tinha um pequeno barco, e remava pelo lago quase sem nenhum ruído; pois era realmente um lago, largo e profundo e mortalmente frio. Ele impelia o barco com seus grandes pés pendendo nas bordas, mas nunca erguia uma onda na água. Não ele. Com seus olhos pálidos como lamparinas, ele procurava por peixes cegos, que ele pegava com seus dedos longos tão rápido como um pensamento. Ele gostava de carne também. Gostava de goblins, quando podia apanhá-los; mas ele cuidava para nunca ser descoberto. Ele apenas os estrangulava por trás, quando algum descia sozinho até perto da água, enquanto ele rondava por ali. Era raro acontecer, pois eles tinham o pressentimento de que havia algo desagradável estava espreitando por lá, bem nas raízes da montanha. Haviam chegado até o lago, quando estavam abrindo os túneis, muito tempo atrás, e descobriram que não podiam mais avançar; então o caminho terminava naquela direção, e não havia motivo para irem até lá – a não ser que o Grande Goblin os mandasse. Algumas vezes ele tinha vontade de comer um peixe do lago, e algumas vezes nem o goblin e nem o peixe retornavam.

Na verdade, Gollum vivia em uma ilha de pedra viscosa no meio do lago. Ele estava observando Bilbo à distância, com seus olhos pálidos como telescópios. Bilbo não podia vê-lo, mas ele imaginava um monte de coisas sobre Bilbo, pois ele podia ver que ele não era nenhum goblin.


Gollum entrou em seu barco e afastou-se da ilha enquanto Bilbo estava sentado na borda, completamente atarantado, no fim do seu caminho e no fim de seu juízo. De repente surgiu Gollum, sussurrando e chiando:  “Que beleza e que moleza, meu preciossso! Acho que temos um lauto banquete, pelo menos um bom bocado para nós, gollum!” E quando ele dizia gollum, fazia um ruído horrível na garganta, como se estivesse engolindo alguma coisa. Foi assim que ele conseguiu esse nome, apesar de sempre chamasse a si mesmo de “meu precioso”. 1


O hobbit pulou quase que para fora de sua própria pele quando o chiado chegou-lhe aos ouvidos e, de repente, viu os olhos pálidos e salientes voltados para ele. “Quem é você?”, perguntou ele, erguendo a adaga à sua frente.  “O que é ele, preciossssso?”, sussurrou Gollum (que sempre falava consigo mesmo porque nunca tinha ninguém para conversar). Era o que vinha descobrir, pois, na verdade, não estava com muita fome no momento, apenas curioso; do contrário ele teria agarrado primeiro e sussurrado depois.


“Eu sou o Senhor Bilbo Bolseiro. Eu perdi os anões e perdi o mago, e não sei onde estou; e não quero saber, se puder sair daqui.”

“O que ele tem nas mãoses?”, sussurrou Gollum, olhando para a espada, da qual ele não gostou muito.

“Uma espada, uma lâmina que vem de Gondolin!”

“Ssssss!”, disse Gollum, ficando muito educado. “Você pode sentar aqui e conversar com nós só um pouquinho, meu preciosssso. Você gosta de adivinhas, vai ver que gosta, não gosta?” Ele estava ansioso para parecer amigável, pelo menos no momento, e até descobrir mais sobre a espada e sobre o hobbit, se ele realmente estava sozinho, se ele realmente era bom de se comer, e se Gollum estava realmente faminto.


Adivinhas era tudo o que ele conseguiu pensar. Propô-las e algumas vezes adivinhá-las era o único jogo que já tinha jogado com outras criaturas divertidas, sentadas em suas tocas, muito tempo atrás, antes de perder todos os seus amigos e fosse expulso, e rastejasse mais e mais para as profundezas escuras das montanhas.

“Muito bem”, disse Bilbo, que estava ansioso por concordar, até que descobrisse mais sobre a criatura, se realmente estava sozinho, se era feroz, se estava faminto ou se era amigo dos goblins.


“Você pergunta primeiro”, disse ele, pois não teve tempo de pensar  uma adivinha. Então Gollum chiou:

Tem raízes misteriosas,
É mais alta que as frondosa
Sobe, sobe e também desce,
Mas não cresce nem decresce.

“Fácil!”, disse Bilbo. “Montanhas, eu suponho.”


“Ele adivinha fácil? Precisa fazer uma competição com nós, preciosso. Se ele perguntar para nós, e nós não responder, nós dá um presente pra ele, gollum!” 2


“Certo!”, disse Bilbo, não ousando discordar, e quase estourando os miolos tentando lembrar de adivinhas que pudessem salvá-lo de ser devorado.

Trinta cavalos brancos na colina avermelhada
Primeiro cerceiam,
Depois pisoteiam,
Depois não fazem nada.

Foi tudo o que conseguiu lembrar para perguntar – a idéia de comida ainda povoava seus pensamentos. A adivinha era bem velha também, e Gollum sabia da resposta tão bem quanto vocês.


“Barbada, barbada,” ele chiou, “Dentess! dentess!, meu preciosso; mas nós só tem seis!” Então ele perguntou a sua segunda:

Sem asas volita,
Sem vozes ele ulula,
Sem dentes mordica
Sem boca murmura.

“Um minutinho!’, gritou Bilbo, ainda incomodado pensando em comida. Por sorte já ouvira algo parecido antes e, colocando a cabeça no lugar, pensou na resposta. “Vento, vento, é claro.”, disse ele, e ficou tão satisfeito que inventou uma na hora. “Esta vai confundir essa criaturinha subterrânea nojenta”, pensou ele.

Um olho no azul dum rosto
Viu outro no verde de outro.
“Aquele olho é como este olho”
Disse o primeiro olho,
“Mas lá em baixo é o seu lugar,
Aqui em cima é o meu lugar.”

“Ss, ss, ss”, disse Gollum. Estivera debaixo da terra por um longo tempo, e já começava a esquecer esse tipo de coisa. Mas exatamente quando Bilbo começava a alimentar esperanças de que o patife não conseguiria responder, Gollum trouxe memórias de muitas eras passadas, de quando vivia com a avó numa toca na margem de um rio. “Sss, sss, meu preciosso”, disse ele. “Sol sobre as margaridas, é essa a resposta, é sim”.


Mas aquele tipo de adivinhas comuns, de cima da terra, estavam começando a cansá-lo. Além disso, faziam-no lembrar de tempos em que era menos solitário, furtivo e nojento, e isso o deixava nervoso. Mas ainda, o deixavam faminto; então, dessa vez, tentou algo mais difícil e desagradável:

Não se pode ver, não se pode sentir,
Não se pode cheirar, não se pode ouvir.
Está sob as colinas e além das estrelas,
Cavidades vazias – ele vai enchê-las.
De tudo vem antes e vem em seguida,
Do riso é a morte, é o fim da vida.

Infelizmente para Gollum, Bilbo já ouvira esse tipo de coisa antes, e, de qualquer modo, a resposta o envolvia. “O escuro!”, disse ele, sem coçar nem quebrar a cabeça.

Caixinha sem gonzos,tampa ou cadeado,
Lá dentro escondido um tesouro dourado,

Perguntou ele para ganhar tempo, até que pudesse pensar numa verdadeiramente difícil. Aquela ele considerava uma barbada, terrivelmente fácil, mas acabou se tornando um grande desafio para Gollum. Ele chiava para si mesmo, suspirava e balbuciava.


Depois de algum tempo, Bilbo ficou impaciente. “Então, o que é?” disse. A resposta não é uma chaleira fervendo, como dá a entender com esse barulho que está fazendo.”


“Dá uma chance pra nós, deixa ele dar uma chance pra nós, preciosso…ss…ss.”

“Bem,” disse Bilbo, depois de um longo tempo “qual é a sua resposta?”
Então, de repente, Gollum lembrou-se de quando roubava ninhos, há muito tempo atrás, e sentava-se às margens do rio e ensinava a sua avó, ensinava a sua avó a chupar – “Ovosos!”, ele sibilou. “Ovosos é o que é!” Então ele perguntou:

Como a morte, não tenho calor,
Vivo, mas sem respirar;
Sem sede, sempre a beber,
Encouraçado, sem tilintar.

Ele, em seu pensamento, achou que era uma adivinha terrivelmente fácil, pois ele pensava o tempo todo na sua resposta. Mas não conseguiu pensar em nada melhor no momento, de tão atrapalhado que ficou com a questão do ovo. Mas mesmo assim era um grande desafio para o pobre Bilbo, que não tinha nada a ver com a água, a não ser por obrigação. Imagino que você saiba a resposta, e, caso não saiba, consiga adivinhá-la num piscar de olhos, já que está sentado em casa, e não existe o perigo de ser devorado para atrapalhar seus pensamentos. Bilbo sentou-se e limpou a garganta duas vezes, mas não saiu resposta alguma.


Depois de um tempo, Gollum começou a sibilar para si mesmo com prazer. “É bom, não é, preciosso? É suculento? Deliciosamente triturável?” E começou a espiar Bilbo, da escuridão.


“Um momento,” disse o hobbit, tremendo. “Eu acabei de lhe dar uma bela chance, um minuto atrás.”


“Ele deve se apressar, apressar!” disse Gollum, começando a descer do seu barco na margem para chegar até Bilbo. Mas quando colocou seu comprido pé de pato na água, um peixe se assustou e pulou para fora, caindo nos pés de Bilbo.


“Ugh!”, disse ele, “é gelado e viscoso!” – então ele adivinhou. “Peixe! Peixe!”, gritou. “É um peixe!”


Gollum ficou terrivelmente desapontado; mas Bilbo perguntou outra charada, tão rápido quanto pode, para que Gollum tivesse que voltar para o seu barco para pensar.

Sem pernas ficou sobre uma perna, duas pernas sentou próximo em três pernas, quatro pernas ganhou alguma coisa.

Não era o momento ideal para esse tipo de adivinha, mas Bilbo estava com pressa. Gollum poderia ter problemas para adivinhá-la, se tivesse perguntado em outra ocasião. Naquela circunstância, falando de peixes, sem pernas não era difícil, e, depois disso, ficava fácil de adivinhar.


“Peixe em uma mesa pequena, um homem à mesa, sentado em um banco e o gato fica com as espinhas.” era a resposta, e Gollum a deu rapidamente. Então ele pensou que havia chegado a hora de se perguntar algo horrível e difícil. Isso foi o que ele perguntou:

Essa é a coisa que a tudo devora
Feras, aves, plantas, flora.
Aço e ferro são sua comida,
E a dura pedra por ele moída;
Aos reis abate, à cidade arruína,
E a alta montanha faz pequenina.

O pobre Bilbo ficou sentado no escuro pensando em todos os nomes de gigantes e ogros que ouvira em contos, mas nenhum deles tinha feito todas essas coisas. Ele sentia que a resposta era totalmente diferente, e que ele deveria conhecê-la, mas não conseguia pensar nela. Ele começou a ficar com medo, e isso é ruim quando se está tentando pensar.

Gollum começou a sair do seu barco. Pulou na água e avançou até a margem; Bilbo podia ver seus olhos vindo em sua direção. Sua língua parecia presa em sua boca; ele queria gritar “Me dê mais tempo! Me dê tempo!”, mas tudo o que saiu num guincho repentino foi:

“Tempo! Tempo!”

Bilbo fora salvo por pura sorte. É claro que aquela era a resposta correta.  Gollum ficou novamente desapontado; e agora ele estava ficando com raiva, e também cansado do jogo. Aquilo o deixara realmente muito faminto. Desta vez ele não voltou para o barco. Ele sentou ao lado de Bilbo na escuridão. Isso deixou Bilbo terrivelmente desconfortável e atrapalhou o seu raciocínio.

“Tem que fazer outra pergunta pra nós, preciosso, sim, ssim, sssim.Ssó mais uma pergunta pra nóss adivinhar, sim, ssim.” Disse Gollum.

Mas Bilbo não conseguia pensar em nenhuma pergunta com aquela coisa nojenta, úmida e fria sentada ao lado dele, apalpando e cutucando. Ele se coçava, se beliscava e mesmo assim não conseguia pensar em nada.


“Pergunta pra nós! Pergunta pra nós!” Disse Gollum.


Bilbo se beliscava e se esbofeteava; ele segurou sua pequena espada; ele até apalpou o seu bolso com a outra mão. Ali ele encontrou o anel que pegara no corredor e do qual se esquecera.

“O que tenho em meu bolso?”, disse ele em voz alta. Ele estava falando consigo mesmo, mas Gollum pensou que era uma adivinha, e isso o deixou terrivelmente perturbado.


“Não é justo! Não é justo!”, ele sibilou. “Não é justo, meu precioso, é justo perguntar pra nós o que tem no bolsso nojento dele?”


Bilbo viu o que estava acontecendo e, sem nada melhor para perguntar, insistiu na sua pergunta: “O que tenho em meu bolso?”, falou ainda mais alto.

“Ssssssss”, sibilou Gollum, “Tem que nos dar três chances, meu preciosso, três chancesss.”


“Muito bem! Tente adivinhar!” disse Bilbo.


“Mãoses!”, disse Gollum.


“Errado”, disse Bilbo que, por sorte, acabara de tirar as mãos dos bolsos. “Tente de novo!”


“Sssssss”, disse Gollum, mais decepcionado do que nunca. Ele pensou em todas as coisas que levava em seus bolsos: espinhas de peixe, dentes de goblins, conchas molhadas, um pedaço de asa de morcego, uma pedra afiada para afiar as suas presas e outras coisas nojentas. Ele tentou pensar em coisas que outras pessoas carregam em seus bolsos.


“Faca!”, disse finalmente.


“Errado!”, disse Bilbo, que havia perdido a sua há algum tempo.

“Última chance!”


Agora Gollum estava em uma situação muito melhor do que quando Bilbo lhe perguntou a questão do ovo. Ele sibilou, resmungou e balançou para frente e para trás, batia os pés no chão, se contorcia e se entortava todo; mas mesmo assim não ousava desperdiçar sua última tentativa.


“Vamos!” disse Bilbo, “Eu estou esperando!” Ele tentou soar corajoso e confiante, mas não tinha muita certeza de como o jogo iria terminar, quer Gollum acertasse, quer não.


“O tempo acabou!”, disse ele.


“Barbante, ou nada!”, guinchou Gollum, o que não foi muito honesto – tentar duas respostas de uma só vez.

“Errou as duas,” gritou Bilbo, muito aliviado; e levantou-se imediatamente, apoiando as costas na parede mais próxima e desembainhou sua pequena espada. 3 Mas curiosamente ele não precisava ter se assustado. Pois se havia uma coisa que Gollum tinha aprendido há muito tempo atrás era que nunca, nunca se deve trapacear num jogo de adivinhas, que é um jogo sagrado e de imensa antiguidade. E também havia a espada. Ele simplesmente se sentou e sibilou.


“E o presente?” perguntou Bilbo. Não que se importasse muito, mas ainda pensava que havia vencido de forma justa e com muita dificuldade.


“Devemos dar a ele a coisa, preciosso? Ssim, nóss tem. Nós tem que buscar, preciosso, e dar o presente como prometemoss.”, disse Gollum, remando de volta para o seu barco, e Bilbo pensou que seria a última vez que ouviria falar dele. Mas não. O hobbit já estava pensando em voltar pelo corredor – ele já tinha aturado o suficiente de Gollum e da margem da água escura – quando o ouviu lamentando e guinchando na escuridão. Ele estava em sua ilha (do que, obviamente, Bilbo nada sabia), fuxicando aqui e ali, procurando e buscando em vão e revirando seus bolsos.


“Onde está? Onde esstá?” Bilbo o ouviu guinchar.


“Perdido, perdido, meu preciosso, perdido, perdido! Droga e praga! Nós não temos o presente que prometemos, e nós não temos nem pra nós mesmos!”


Bilbo se virou e esperou, imaginando qual seria o motivo de tamanha algazarra. Isso se provou um lance de sorte, no fim das contas. Pois Gollum retornou e sapateou e sussurrou e resmungou, e no fim, Bilbo concluiu que Gollum tinha um anel – um anel maravilhoso, muito bonito, um anel que havia sido dado como presente de aniversário, eras e eras atrás, quando tais anéis não eram tão incomuns. Algumas vezes ele guardava no seu bolso; geralmente ele deixava em um buraco na pedra em sua ilha; algumas vezes ele o usava – quando estava realmente faminto e cansado de peixe, e se esgueirava pelos corredores escuros atrás de goblins errantes. Então ele se aventurava até por lugares iluminados por tochas que incomodavam seus olhos e os deixava doloridos; mas ele estaria seguro. O sim! Seguro o bastante, pois se você colocasse o anel em seu dedo, você ficaria invisível e só poderia ser visto na luz do sol, e mesmo assim apenas sua sombra seria vista, e seria uma sombra fraca e trêmula.


Eu não sei quantas vezes Gollum pediu desculpas a Bilbo. Ele ficava dizendo “Nós sente muito; nós não queria trapacear, nós queria dar nosso único, único presente, se ganhasse a competição.” Ele até se ofereceu para pegar uns peixes suculentos para Bilbo como compensação.


Bilbo estremeceu só de pensar nisso. “Não, obrigado!”, disse ele, o mais educadamente possível.


Ele estava pensativo, e lhe ocorreu a idéia de que Gollum devia ter perdido o anel em algum momento e que ele devia tê-lo encontrado, e que ele tinha aquele anel em seu bolso. Mas ele resolveu não contar para Gollum.


“Achado não é roubado!”, disse para si mesmo; e ,estando em uma situação delicada ouso dizer, ele estava certo. De qualquer forma o anel pertencia a ele agora.


“Não se preocupe.”, disse. “O anel seria meu agora se você o encontrasse, então você teria perdido ele de qualquer forma. E eu vou deixar para lá com uma condição.”


“Ssim, qual é? O que quer fazer, precioso?”


“Me ajude a sair deste lugar.”, disse Bilbo.


Agora Gollum teve de concordar com isso, já que não costumava trapacear. Ele ainda queria muito descobrir se o estranho era saboroso ou não; mas agora ele tinha que desistir dessa idéia toda. Pois ainda tinha a pequena espada; e o estranho estava bem desperto e atento, não desprevenido como Gollum gostava das coisas que atacava. Então, talvez era melhor deixar assim.

E foi assim que Bilbo descobriu que o túnel acabava na água e não seguia adiante para o outro lado, onde a parede da montanha era escura e sólida. Ele também descobriu que devia ter passado por uma das passagens para a direita antes de chegar ao fundo; mas ele não podia seguir as indicações de Gollum para encontrar o caminho para fora novamente, e então ele obrigou a criatura infeliz a lhe acompanhar e mostrar o caminho.

Enquanto caminhavam juntos pelo túnel, com Gollum saltitando ao seu lado, Bilbo ia caminhando delicadamente, pensando se devia experimentar o anel. Então o anel escorregou para o seu dedo.


“Onde está? Para onde foi?”, disse Gollum imediatamente, olhando ao redor com seus grandes olhos.


“Aqui estou, atrás de você.”, disse Bilbo, tirando o anel de seu dedo e se sentindo muito feliz por tê-lo e por descobrir que realmente faz o que Gollum disse.


Agora retomaram a caminhada, enquanto Gollum contava os túneis para a esquerda e para a direita. “Um à esquerda, um à direita, dois à direita, três à direita, dois à esquerda”, e assim seguiram adiante. Ele começou a ficar mais e mais agitado e assustado enquanto se afastavam mais e mais da água, mas finalmente ele parou próximo a uma pequena abertura à esquerda (que levava para cima) – “seis à direita, quatro à esquerda.”

“Aqui está a passagem”, ele sussurrou, “tem que se espremer para entrar e andar abaixado. Nós não vai junto, preciosso, nós não vai. Gollum!”


Então Bilbo se esgueirou pelo arco e disse adeus à criatura nojenta, e ficou muito feliz em fazê-lo. Ele não se sentiu à vontade até que tivesse certeza de que ela tinha ido embora, e manteve a cabeça para fora no túnel principal ouvindo até que não mais escutasse os passos de Gollum retornando para o seu barco. Então ele entrou no novo túnel. Era um túnel estreito e mal feito. Mas era perfeito para um hobbit, a não ser quando, no escuro, batia o pé em pedras escuras e nojentas no chão; mas devia ser um tanto baixo para goblins. Mas ele não sabia que mesmo os goblins eram acostumados a esse tipo de coisa, e que se moviam rapidamente, caminhando abaixados com suas mãos quase tocando ao chão.


Isso fez Bilbo esquecer do perigo de encontrá-los, então seguiu rápida e temerariamente.


Logo a passagem começou a subir novamente, e depois de um tempo tornou-se íngreme, o que acabou atrasando Bilbo. Mas por fim a subida acabou e o túnel fez uma curva e foi pra baixo novamente, e lá, no fundo de um pequeno declive, ele viu, infiltrando-se por outra curva – um vislumbre de luz. Não uma luz avermelhada como da chama de uma tocha ou lamparina, mas uma luz pálida de ar livre. Então ele começou a correr. Correndo tanto quanto suas perninhas permitiam, ele fez a curva e chegou subitamente a um lugar aberto onde a luz, depois de tanto tempo na escuridão, parecia estonteantemente clara. Na verdade era apenas uma réstia de sol que entrava por uma soleira, onde uma grande porta, uma porta de pedra, fora deixada levemente aberta.


Bilbo piscou, e então subitamente viu os goblins, goblins em armaduras completas com espadas desembainhadas sentados logo na entrada, e observando com os olhos bem abertos, vigiando a passagem que levava até ali! Viram-no antes que ele os visse, e com um grito de deleite, partiram para cima dele.


Se foi um acidente ou presença de espírito eu não sei. Acidente penso eu, pois o hobbit não estava acostumado com seu novo tesouro. De qualquer forma, ele colocou o anel em sua mão esquerda – e os goblins pararam de súbito. Não conseguiam ver nem sinal dele. Então gritaram duas vezes mais alto que antes, mas não de deleite. 4

“Onde está ele?”, gritaram.


“Voltem para a passagem!”, gritavam alguns.


“Por aqui!”, berravam alguns. “Por ali!”, berravam outros.


“Vigiem a porta!”, gritou o capitão.


Soavam assobios, armaduras se chocavam, espadas tilintavam, goblins praguejavam, xingavam e corriam de um lado para o outro, caindo uns sobre os outros, cada vez mais furiosos. Azáfama terrível, tumulto e desordem.


Bilbo estava terrivelmente amedrontado, mas teve o bom senso de compreender o que acontecera e de se esconder atrás de um grande barril que continha bebida para os guardas-goblins, saindo assim do caminho e evitando que tropeçassem nele, que o pisoteassem até a morte ou que o capturassem pelo tato.


“Preciso chegar até a porta, preciso chegar até a porta!”, dizia a si mesmo, mas demorou muito até que se arriscasse a tentar. E então foi como um terrível jogo de cabra-cega. O lugar estava cheio de goblins correndo de lá para cá, e o pobrezinho do hobbit, esquivando-se para um lado e para o outro, foi derrubado por um goblin, que não conseguiu descobrir no que tropeçara, afastou-se de quatro, passou entre as pernas do capitão no último momento, levantou-se e correu para a porta.

Ainda estava aberta, mas um goblin a havia empurrado e ela quase se fechara. Bilbo fez força, mas não conseguiu movê-la. Tentou esgueirar-se pela fresta. Espremeu-se, espremeu-se e entalou. Foi horrível. Os botões de sua roupa se engancharam entre a borda da porta e o batente. Ele podia ver lá fora, o ar livre: havia alguns degraus que desciam por um vale estreito entre altas montanhas; o sol surgia por trás de uma nuvem e brilhava por trás da porta – mas ele não conseguia passar.


De repente, um dos goblins gritou lá dentro: “Há uma sombra ao lado da porta. Tem alguma coisa lá fora!”


Bilbo ficou com o coração na boca. Fez uma tremenda contorção. Os botões voaram em todas as direções. Passou, com um casaco e um colete rasgados, descendo os degraus aos saltos como um cabrito, enquanto os goblins perplexos ainda catavam seus belos botões de latão na soleira da porta.


É claro que logo vieram atrás dele, gritando, chamando e caçando em meio às árvores. Mas eles não gostam de sol: ele deixa suas pernas bambas e sua cabeça tonta. Não conseguiram encontrar Bilbo, que estava usando o anel, e entrava e saía furtivamente das sombras das árvores, depressa e em silêncio, e mantendo-se fora do alcance do sol; assim, logo voltaram, resmungando e praguejando, para guardar a porta.


Bilbo tinha escapado.

NOTAS:

1. Na primeira edição de O Hobbit (1937), Gollum usa a frase “meu precioso” apenas para referir a si mesmo. Na segunda edição (1951), na qual o papel de Gollum foi significativamente alterado, a frase pode ser tomada como referência ao Anel, como acontece em O Senhor dos Anéis. A palavra gull em norueguês arcaico significa “ouro”. Nos manuscritos mais antigos, aparece como goll. Uma forma flexionada seria gollum, “ouro, tesouro, algo precioso”. Também pode significar “anel”, como pode se perceber na palavra composta “fingr-gull”, “anel de dedo” – questões que podem ter ocorrido a Tolkien.

2. 1951: “e nós não responder, nós faz o que ele quer, que tal? Nós mostra o caminho da saída, sim!”

3. A partir deste ponto, o livro original se diferencia em muito da versão de 1951, publicada no Brasil. Não irei comparar as duas versões, portanto segue só a versão de 1937.

4. Aqui termina o trecho que difere da edição de 1951.

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CelsoRusso

Por mais que goste do Tolkien e ache que o SDA é uma das grandes obras primas da literatura mundial, não há como colocar O Hobbit no mesmo nível.

Mesmo com as adaptações que fez posteriormente para ajustar o anel que Bilbo encontrou ao Um Anel do SDA, a estória toda é muito fraca. É difícil acreditar que Gollum aceitaria uma adivinha tão sem sentido como essa de “O que eu tenho no meu bolso?”

E pior ainda, como alguém pode acreditar que Gollum iria dar o preciossssso a Bilbo, depois de não ter conseguido resolver a charada sobre o que havia no bolso deste? Ora, diz aqui esse texto que Gollum não costumava trapacear… tsc, tsc, tsc

O Hobbit é um livro gostoso de ler. Tem o mérito de ter apresentado ao mundo os hobbits, o mago Gandalf, o meio-elfo Elrond, os anões e outros personagens que nunca mais foram citados, como Beorn, Smaug e Bard, o arqueiro. Mas os elfos da Floresta Negra, onde vivia e era um príncipe Legolas, parecem um povo mau e vingativo, de cuja prisão os anões só fugiram graças a Bilbo e seu anel mágico. A personalidade de Legolas como descrito no SDA não combina absolutamente com a idéia que fazemos dos elfos de seu povo, lendo O Hobbit. Também achei a facilidade com que Bard matou Smaug um tremendo anticlímax, acho que Tolkien não teve paciência para elaborar um pouco melhor a morte do grande vilão da estória.

Enfim, minha opinião sobre O Hobbit à parte, como todo tolkiendilli eu acho que Tolkien “rules”! O SDA é fantástico, assim como o Silmarillion e os Contos Inacabados. Também gostei de Os Filhos de Húrin, mesmo não sendo uma leitura leve como o SDA. Mas considerar O Hobbit uma obra prima é um evidente exagero, que só o fanatismo por Tolkien pode explicar. Coloco ainda num nível abaixo d’O Hobbit os outros três que li, Roverandom, Mestre Gil de Ham e o que reúne Sobre Histórias de Fadas e Folha por Niggle.

Por outro lado, conhecendo a obra do Peter Jackson, acredito que os filmes que está fazendo sobre O Hobbit possam ser muito interessantes, pois certamente ele vai se permitir uma grande liberdade e adicionar personagens e situações que garantirão o interesse de quem assistir aos filmes, indepentemente de conhecerem e gostarem do Tolkien ou não. Só o fato de ter desmembrado a estória em dois filmes já é um bom indicativo de que vai rechear bem a narrativa…

Roliço-Bolseiro

Caro Celso,

Concordo com a maioria do que você escreveu. Realmente o Hobbit não é um livro épico como o SDA e Silmarillon e nem mesmo melhor que os Filhos de Húrin na minha opinião, apesar de ter um apreço por ele. Mas como você mesmo citou, o próprio Tolkien quando escreveu a história de Bilbo, não colocou aquele anel como o UM anel, ele veio se tornar o mesmo UM anel do SDA somente depois que o mesmo resolveu “unificar” as estórias.

Sobre Gollum aceitar a advinha “fajuta” de Bilbo eu discordo de você, acho que Bilbo foi esperto o bastante pra fazer Gollum responder, mas ao mesmo tempo que perdeu a adivinha, Gollum partiu pra cima do Hobbit para tentar matá-lo, ou seja, você se equivocou quando escreveu que Gollum cede o anel a Bilbo! Muito pelo contrário! Leia esse capítulo novamente que vai perceber o que estou falando.

Concordo também quando você cita que a forma como Bard mata Smaug é broxante. Tenho o mesmo sentimento. Por exemplo, a própria morte de Gollum no fim do SDA na minha opinião foi meio decepcionante.

No mais é isso, nós fãs de Tolkien vamos super valorizar suas obras sim! Eu mesmo supervalorizo o Hobbit, mas tenho noção que friamente analisado, é apenas um bom e divertido livro!

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