O Livro Negro de Arda – Parte 2 Capí­tulo 1

Escrito por Fábio Bettega
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A Valinor/Lothlórien tem a honra de dar continuidade à publicação de O
Livro Negro de Arda, publicando os comentários da tradutora e o primeiro capítulo da segunda parte, chamado AQUELE QUE SE ATREVE A VER. Leia mais sobre esta obra aqui na Valinor e confira os demais capítulos já publicados, no índice da obra
 
 

Notas da Tradutora

Sobre a transliteração e a pronúncia

No livro, há um bom número vocábulos – nomes de pessoas e lugares principalmente – originais. Esforçarei-me ao máximo para adequá-los ao padrão de Tolkien. Mas, por via das dúvidas, listarei algumas coisas aqui:

CH – igual o escocês loch ou alemão puch, não o ch português ou inglês, a transliteração oficial do russo seria um KH ou um H.

Y – i curto: um i breve, nunca acentuado, semelhante ao j de algumas línguas nórdicas, a transliteração oficial é j. Basicamente, eu usaria um i se estivesse totalmente certa da acentuação das palavras – e colocaria o acento, mas como não tenho vontade para escrever para a autora – ela é uma imensa mala sem alça, por sinal – e perguntá-la sobre isso, usarei o y.

Algumas observações gerais

Uma breve introdução aos padrões de beleza russos. Existe, naquela terra, uma adoração generalizada aos indivíduos de pele clara e cabelos escuros. De modo geral, pele clara (mais clara do que a média) é considerada um grande trunfo: é um resquício do czarismo – os nobres ficavam em casa e eram branquinhos, e os servos trabalhavam no campo e ficavam bronzeados. Como todo mundo, os russos têm um gosto por tudo aquilo que é raro na terra deles. Por exemplo, o nariz levemente aquilino. Atente ao levemente, estamos falando de pessoas, não de Águias de Manwe. Ou, pelo menos, reto: nariz arrebitado é ordinário demais. Enfim, reflitam.

Na outra nota, havia falado sobre os 70 anos de socialismo. Bem, 70 anos é muito somente para algumas coisas mesmo. Além desse rolo todo de cor de pele, há um conceito totalmente nobre de mãos bonitas, e um interesse bem maior por essa parte do corpo do que, digamos, no Brasil. Diferentemente da Europa, o ponto não eram mãos e pés pequenos, mas mãos finas de dedos longos. Novamente, é algo que os camponeses não tinham.

Gostaria de chamar a atenção também para os pseudônimos que as autoras escolheram. Nekrasova é Illet e Vassilyeva é Niennach. Elche Niennach, mais exatamente. Preste atenção nesse último e lembre-se sempre dele durante a leitura.

 

PARTE SEGUNDA. MANDARAM ESQUECER
AQUELE QUE SE ATREVE A VER. A ERA DAS TREVAS

…Não restaram mais nomes.

Foi ordenado esquecer.

Somente pegadas na areia – na areia de diamantes, nos fragmentos pontiagudos e cortantes – pegadas sangrentas de pés descalços. Mas o mar lavou também as pegadas, e o vento as secou também…

Nada.

Quando as Lâmpadas ruíram, um tremor correu pelo corpo de Arta, como se um toque de ferro em brasa a acordasse. Crescendo surdamente, um rugido subiu ao céu das profundezas dela; e o sangue de fogo jorrou em chafarizes; e línguas de fogo dos vulcões lamberam o céu. Quando as Lâmpadas ruíram, elementos até então adormecidos rasgaram as correntes que os prendiam. Vento raivoso e ardente arrancava a purulenta coberta de vegetação morta do corpo de Arta, arrancava as montanhas das profundezas dela, borrava pelo céu nuvens de fuligem e lama.

Quando as Lâmpadas ruíram, relâmpagos rasgaram o céu cego, e a chuva negra, derrubando tudo no caminho, desabou ao encontro das chamas que se elevavam na direção do céu. As rachaduras da terra incharam de lava, e rios de fogo arrastaram-se ao encontro das águas tiradas do lugar, e nuvens escuras de vapor se elevaram. E chegou a hora do Escuro, e não havia mais céu, e faíscas vermelhas afogaram as pesadas nuvens baixas, e relâmpagos branco-azulados rasgavam os farrapos de fumaça. E não havia mais sons, pois o gemido de Arta que se contorcia em dores do parto era tal que o ouvido já não o percebia. E em silêncio caíam e erguiam-se montanhas, arrancavam-se placas de terra, e novos rios batiam contra as rochas quentes. Como se uma mão invisível esmagasse o mundo como argila, e o modelasse novamente. E, muda, elevou-se uma onda mais alta do que as montanhas mais altas de Arta, e correu silenciosamente – onda de água sobre as ondas da terra… E a carne de Arta acalmou-se, e a respiração irregular de fogo da terra tornou-se audível.

Quando as Lâmpadas ruíram, não havia luz, não havia escuro, mas este era o momento do Nascimento do Tempo. E a vida começou a andar.

Quando as Lâmpadas ruíram, o pavor dominou os Poderes de Arda, e, amedrontados, eles ergueram muralhas de medo em torno de si. E do fundo do Grande Oceano, do corpo de Arda, eles arrancaram um pedaço de carne viva e criaram para si um mundo, e deram-lhe o nome – Aman. De agora em diante, Endore significava para eles – horror inimigo, e aqueles que não viraram as costas para ela não eram honrados pelos Valar…

Quando as Lâmpadas ruíram, a barreira que vedava os olhos com não-Luz deixou de existir. E ele, esquecido, perdido no mundo agonizante, viu o escuro. Ele estava assustado. Não havia lugar na terra que permanecesse firme e imutável, e ele corria, corria, corria, enlouquecendo, e o mundo louco desprovido de forma e de aparência pulava na frente dele, e os restos de razão e consciência o abandonavam. E ele caiu – criatura cega e impotente, e o seu fraco pedido de socorro não podia ser ouvido no rugido das ondas, postas para correr pelo furioso e feliz Ossë.

…E, muda, uma onda levantou-se, mais alta do que as montanhas mais altas de Arta, e no cume dela, como sobre um cavalo, gargalhando alegremente, voou Ossë. Por muito tempo, a calma morta do mundo pesou grandemente sobre os ombros dele, mas ele não se atrevia a desobedecer ao senhor Ulmo. E agora o coração dele encheu-se de imensa alegria, ao ver que o mundo ganhou vida. E ele não se importava mais com as ameaças de Ulmo – ele farejou o próprio poder. A onda ergueu-o sobre o mundo, ele viu o Vala Alado no topo de uma montanha alta. Melkor ria – e Ossë ria em resposta, sobrevoando Arda montado na onde. E naquele primeiro Dia, Maia Ossë tornou-se aliado do Vala Escuro.

A água ergueu o corpo insensível dele, rodou-o e o atirou para uma colina alta, e recuou novamente. E muitas vezes a água rolou por cima dele – fria, salgada como sangue, banhando-o, lavando a sujeira do corpo dele. O vento corria sobre ele, expulsando do céu a penumbra, lavando a fumaça dos vulcões, limpando o vidro negro da Noite. E quando ele abriu os olhos, a Noite olhava-o com milhares de olhos. Ele não podia compreender – o que é isso, onde, porquê? Isso é o Escuro? Isso é a Luz? E de repente disse – sim, isso é a Luz, Luz verdadeira, e não aquilo que enredou Arda como uma teia, exalado pelas Lâmpadas. A eternidade olhava para o rosto dele, ele ouvia o sussurro das estrelas e as chamava por nome, e elas, cintilando, respondiam-lhe. O Escuro carregava em si a Luz cuidadosamente, como a concha – uma pérola. Ele já estava sentado, com a cabeça jogada para trás, e sussurrava palavras incompreensíveis que vinham de algum lugar desconhecido, e o vento frio da Noite recém-nascida remexia os seus compridos cabelos dourado-escuros. E ele nomeou o Escuro – Ache, as estrelas – Gele, e as chamas vermelhas dos vulcões que estendiam as mãos rubras para a Noite – Ere. E parecia-lhe que Ere não é simplesmente Chama, mas algo ainda maior, mas o que – ele não conseguia compreender. E ele amou procurar palavras e dar nomes ao que existe – novos no mundo novo.

E ele pisou no chão pela primeira vez, e viu que ele está sólido, e caminhou em direção ao desconhecido. Ele viu e a primeira Alvorada, e o Sol, e o Pôr-do-Sol, e a Lua; surpreendia-se e alegrava-se, dava nomes e cantava… E ele pensava: “Será que isso é obra do Inimigo? Mas isso é belo! Será que o mal pode ser tão belo assim? E será que o Inimigo é capaz de criar, ainda mais algo assim? Talvez isso seja um erro, talvez simplesmente não o compreenderam? Então é preciso contar!” Ele não teve coragem para procurar Melkor ele mesmo, temendo o poderoso Vala, por isso resolveu retornar e contar sobre o que viu.

Manwë e Varda o receberam alegremente.

– Eu pensei que você morreu, que Melkor matou-o! – falou carinhosamente Varda. – Eu estou feliz em vê-lo novamente!

“Estranho. Eu sou um Maia, eu não posso morrer!” – pensou ele, surpreso. Alto, delicado, fino, ele era semelhante a uma vela, e os cabelos dourado-escuros eram como chamas. A aquele que o via, por alguma razão parecia que ele rapidamente se queimará, apesar de ser um Maia e a morte não possuir poder sobre ele. E quando ele cantava perante o trono do Rei do Mundo, seus enormes olhos dourados irradiavam luz, como se o pôr-do-sol da Terra-Média se refletisse neles.

Ele cantava sobre aquilo que viu, sobre aquilo que amou, e aqueles que o ouviam começavam, de repente, a mudar no coração, e algo acontecia com a visão deles – através da luz forte e constante do céu de Valinor eles distinguiam uma outra luz, e essa era – a Luz. E o medo saia das almas, e os corações aspiravam a Terra-Média, e Melkor já não parecia tão assustador. A canção cintilava, e ela criava o pensamento. Mas Manwë ergueu-se, e de repente aquele dos olhos dourados viu rosto contorcido dele e olhos amedrontadores. O Rei do Mundo agarrou o Maia pelos ombros, e as mãos dele eram mais duras do que as garras das águias. Ele atirou o Maia no chão e urrou:

– Você! Insignificância, besta… Como se atreve… Vendeu-se ao Inimigo! – provavelmente, Manwë bateria naquele dos olhos dourados, mas Varda o segurou:

– Acalme-se. Ele é somente um Maia, e é fraco de espírito. E Melkor é experiente na mentira e nas más visões, – carinhosa era a voz dela, mas o olhar – gelado.

Manwë sentou-se novamente.

– Vá, – ele falou severamente. – Que Irmo, com os sonhos mágicos dele, expulse os feitiços malignos da sua alma. Vá! E vocês, – ele olhou para todos os outros, – lembrem: traiçoeiro é o Inimigo, as mentiras dele corrompem até os mais sábios! Mas aquele, – ele elevou a voz, – que sucumbir à tentação, será castigado como um traidor! Lembrem-se disso!

O dos olhos dourados entrou na suave penumbra dos jardins de Irmo. Ele sentia amargura e dor; ele não podia entender – por quê? Não podia acreditar nas palavras de Manwe: “Tudo isso é uma alucinação; o Escuro é o mal, e atrás do Escuro há o vazio”. “Mas eu vi, eu vi!” – repetia ele, apertando a cabeça com as mãos, e as lagrimas de mágoa escorriam pelas suas faces. Alguém tocou levemente no ombro dele. O dos olhos dourados virou-se – atrás estava o amigo de longa data dele, discípulo de Irmo. O chamavam de vários jeitos: Mestre das Alucinações, Sonhador, Inventor, Mago. E tudo isso era verdade. Ele era assim mesmo, imprevisível e inesperado, todo cintilante. E agora o dos olhos dourados via-o vagamente na penumbra dos jardins. Somente os olhos prendiam a atenção, cinza-claros, límpidos. Parecia que ele sorria, era impossível capturar esse sorriso no rosto belo, vago na sombra da nuvem escura dos cabelos. As roupas dele eram suavemente acinzentadas, mas nas dobras elas brilhavam com ouro pálido e aço escuro. O dos olhos dourados olhou para ele, e na sua mente acendeu-se uma palavra nova – Ayo, e essa palavra significava tudo o que era o discípulo de Irmo.

– O que houve? – perguntou ele, e a voz dele era suave e profunda.

– Não acreditam em mim, – com um suspiro semelhante a um soluço disse o dos olhos dourados.

– Conte-me, – pediu Ayo, e o dos olhos dourados começou a falar – com dor, com mágoa, como se estivesse se confessando. E quando ele acabou, Ayo colocou as mãos sobre os ombros dele e olhou atentamente, seriamente nos olhos daquele dos olhos dourados, e o rosto dele nesse instante tornou-se definido – extraordinariamente belo e encantador.

– Não é uma alucinação, acredite-me. Isso não é uma alucinação. Eu é que sei o que é alucinação e o que – verdade.

– Mas por quê, então?..

– Eu não sei. Preciso pensar. Preciso ver eu mesmo…

– Mas eu… – ele não acabou de falar. Ayo tocou a tez dele com a mão e disse autoritariamente:

– Durma.

E o dos olhos dourados abaixou-se devagar; as pálpebras dele pareciam saturadas de chumbo, a cabeça caiu sobre o ombro… Ele dormia.

Yavanna disse, chorando amargamente:

– Será que tudo aquilo que eu fazia, está morto? Será que as belas Crianças de Ilúvatar acordarão numa terra vazia e amedrontadora?

E ergueu-se discípula dela, cujo nome era Folha Primaveril.

– Senhora, permita-me visitar as Terras Abandonadas. Eu olharei para aquilo que ali restou e contar-te-ei.

Yavanna concordou com aquilo, e a Folha Primaveril partiu para a escuridão.

O solo sob os pés era macio e ainda quente; ele estava coberto por uma grossa camada de fuligem expelida pelos vulcões. Como se alguém tivesse propositalmente preparado esta terra para que ela, discípula de Yavanna, tivesse a grande honra de testar aqui, nesse amedrontador e vazio, ainda não organizado mundo a própria arte. A tentação era imensa. Por um lado, ela deveria, claro, voltar a Valinor e contar sobre o vazio e abandono de Arda, mas por outro – tinha tanta vontade de fazer algo ela mesma, enquanto não há ninguém para proibir ou indicar o que fazer… Muita vontade. E ela pensou – não haverá grande mal se eu demorar. Só um porquinho, ninguém vai perceber. Ela não pensava que agora está seguindo o caminho do Vala Escuro – tentando criar o algo próprio. Ela não sentiu que vê. Vê aonde não deveria, porque na Terra-Média está o Escuro, e ela sabia disso, e é impossível ver no escuro. Mas agora ela não tinha tempo para isso. Ela ouvia a terra. E aquela esperava as sementes. E Folha Primaveril ouviu e notou as vozes das plantas não nascidas e pensou, feliz – significa que nem tudo foi destruído quando as Lâmpadas ruíram. Aquilo que era capaz de viver no mundo novo – sobreviveu. Ela pegou um punhado de terra morna, macia, de grãos soltos, e esta era negra como o Escuro, e como o Escuro ocultava em si a vida. E Folha Primaveril caminhou pela terra, acordando as sementes. Ela via o Sol e a lua, as Estrelas – mas não se surpreendia. Por alguma razão, não se surpreendia. Não tinha tempo. E ela nem podia perceber isso – por enquanto. E tudo crescia, esticava-se para o alto, e junto com as árvores e ervas, o olhar dela subia em direção ao céu. E ela esqueceu sobre Valinor, tomada pela beleza do mundo vivo.

Mas apesar de tudo, ela tinha tédio, sozinha. E por isso apareceram no mundo as árvores que cantam e flores que falam, flores que viravam as suas cabecinhas para o Sol sempre, mesmo em dias nublados. E havia flores que se abriam somente de noite, não podendo suportar o Sol, mas cumprimentando a Lua. Havia flores que floresciam somente num dia eleito, – e nem todos os anos isso acontecia. Na Noite da Feitiçaria, ela caminhava entre as ameaçadoramente rubras flores cintilantes dos fetos, às quais ela dotou de uma alma adormecida, capaz de realizar os sonhos. Mas isso ocorria somente na hora eleita. Do fundo das lagoas emergiam nenúfares prateadas e oscilavam lentamente sobre a água negra, e ela caminhava vestida com uma coroa de flores aquáticas cintilantes. Ela dava almas às plantas, e elas falavam com ela. E os espíritos do vivo tomavam formas e voavam pelo céu, balançavam nos galhos e riam nas lagoas e rios.

E ela criou plantas nas quais queria expressar a duplicidade do mundo. Nas raízes delas, nas folhas e flores viviam ao mesmo tempo a morte e a vida, pois elas estavam cheias de veneno que, utilizado sabiamente, poderia trazer a cura. Mas melhor de tudo lhe saiam plantas que eram totalmente inúteis, e cujo sentido estava somente na beleza delas. Perfume, cor, forma – ela gostava tanto de fazer mágicas com elas! Ela estava feliz, e pensava horrorizada sobre o retorno. Parecia-lhe que tudo o que ela criou será lhe tirado e destruído… Mas ela tentava afugentar esses pensamentos.

Naquele dia ela conversava com as flores do campo.

– E então, para que é que vocês servem? O que nos diremos à senhora Yavanna em sua defesa, hein? Nenhuma utilidade… Só os seus olhinhos que são tão lindos… O que é que nos vamos fazer? Como justificar a nossa existência para que não nos expulsem?

– Talvez, dizer que somos bonitas, que as abelhas beberão o nosso néctar, que aqueles que ainda não nasceram nos usarão para falar… Cada flor será uma palavra. Não é assim?

Folha Primaveril virou-se. Alguém estava atrás dela – alto, olhos verdes, cabelos cor de noz madura. A roupa dele era cor de casca de árvore, a corneta de caçador estava presa ao cinto dele. Os braços fortes estavam desnudados até o ombro, os cabelos presos com um cordão fino. Folha Primaveril olhou, surpresa, para o forasteiro.

– Quem é você? – perguntou ela. – Porque está aqui?

– Eu sou Caçador. E por que… Talvez porque cansei de ver como Oromë torce o nariz para minhas criaturas.

– Como assim? – riu ela. Palavras engraçadas – “torce o nariz”.

– Diz que os meus animais são inúteis. Ele gosta de cavalos, de cães ele gosta – para caçar os animais de Melkor. Mas existem mesmo esses animais? E em Valinor ele treina os bichanos dele caçando as minhas criaturas… Eu falei para ele – não seria melhor adestrar os cães em Endore mesmo, com animais malignos… E ele mata os meus. Então eu dei-lhes chifres, dentes e garras – para se defender. E ele ficou irado e me expulsou. Aí eu fui para a Terra-Média. E estou aqui – ele deu um sorriso largo. – Pelo menos, aqui ninguém me impede de criar o inútil – assim é que ele chama os meus animais. E eu acho – aquilo que é bonito não é inútil mesmo que seja somente por ser bonito. Veja você mesma!

E ela viu os veados, as raposas – de cor vívida, como pequenas chamas; viu os lobos – o Caçador disse que eles ainda vão dar trabalho aos cães de Valinor. E o pai deles era o Lobo Negro – lobo imortal, lobo falante. E eles iam pela Terra-Média: ela – sobre o Tigre Branco, ele – montado no Lobo Negro. E eles não queriam se separar – eles criavam a Beleza. O Caçador criou pássaros para as florestas dela e insetos multicolores – para as flores e ervas; animais de campo e de floresta, e víboras que se arrastavam pelo chão; e peixes para os lagos e rios. Tudo tinha um lugar próprio, todos dependiam uns dos outros, e cada vez mais fortemente a Beleza Viva ligava o Caçador e a Folha Primaveril. Mas aqui e ali, eles encontravam estranhos seres, desconhecidos para eles: pássaros-borboletas semelhantes a pedras preciosas rodopiavam sobre flores esquisitas, ou um peixe alado de repente subia sobre as águas do mar, ou um animalzinho orelhudo, semelhante a uma raposa, com grandes olhos inteligentes, espiava cautelosamente por traz de um monte de areia; e uma vez, tendo subido para o alto das montanhas, eles acharam ali, entre as rochas frias, uma flor que lembrava uma estrela prateada… Como se alguém estivesse por perto, e esse “alguém” gostava de surpreendê-los com dádivas inesperados; e algumas vezes ele ria-se bondosamente deles – como quando eles estavam sentados na beira de um córrego quente e preguiçoso, e de repente um peixinho de olhos arregalados subiu sobre a raiz de uma árvore e ficou olhando para eles, estranhando. Iti até soltou um grito de surpresa, e depois riu involuntariamente – a criatura era demasiadamente bizarra, e na rajada repentina de vento ouviu-se o riso de mais alguém, mas de quem – eles não sabiam… Entre si eles chamavam este desconhecido de amigo, e pensavam que, provavelmente, mais alguém vaga pela terra, semelhante a eles, e cria milagres – alegres ou de uma tristeza límpida; só que por alguma razão não quer se mostrar para eles.

E aconteceu assim: na noite, eles viram algo incompreensível, preocupante e belo. Duas flexíveis sombras aladas flutuavam silenciosamente no céu, rodopiando nos raios do luar. Isso era uma dança – lenta, mágica, e eles ficaram por muito tempo parados, enfeitiçados, não se atrevendo e não desejando se mexer, e uma estranha música surda soava nos corações deles.

– O que é isso? Quem é este? – num sussurro de surpresa, perguntou a Folha Primaveril, olhando com olhos enormes para o rosto do Caçador.

– Não sei… Isso não é meu. Oromë também não é capaz de criar algo assim…

E eles se entreolharam, fulminados pelo pensamento súbito: “Será o Inimigo?” Mas conseguiria ele criar, ainda mais algo assim? E os Pais dos Animais correram para o nordeste, levando aqueles que os montavam para os domínios amedrontadores do Inimigo.

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