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Uma Ode

Pescaldo

Penso, logo hesito.
Natural se pensar que algumas pessoas têm crenças tão arraigadas nas raízes de seu ser que, com quase toda a certeza existente, não poderiam transpô-las e, até mesmo, transformá-las. Normalmente o ser humano costuma ser uma definição de si mesmo, batido com uma pitada de preconceito, um bocado de intolerância, um tanto de amor e outro tanto de ódio temperado com duas colheres de influência familiar, meia xícara de verdadeiras amizades e mídia a gosto.

Claro que falo de pessoas normais, o natural, o rotineiro. Algumas pessoas conseguem quebrar as correntes do conformismo e conseguem fazer alguma coisa realmente grande, algo que poderia balançar o mundo e o tornar um lugar melhor (pelo menos no seu ponto de vista um pouco menos limitado) para os demais. Curioso que a rotina não é completamente eliminada por esses poucos, visto a naturalidade que ocorrem suas transgressões. Quase diárias.

Entretanto, o que podemos dizer sobre Despertos? Pessoas que, geralmente, são aqueles que têm uma visão mais ampla dos problemas que afetam nosso mundo e aqueles que, provavelmente, são os que comandam o mundo.

Não falo de donos de corporações (apesar de que alguns o são), mas sim daquele professor que emana uma estranha sensação, ou um apaixonado jogador de futebol, um escritor famoso que nunca deixou de praticar a Arte ou um artista marcial que ensina gratuitamente numa comunidade carente. Esses Despertos, por lidarem com pessoas, as tocam com mais facilidade, e, como artistas, tem uma abrangência maior. Você já se deparou com um quadro da Monalisa, se encantou com jogadas de Garrincha e Pelé, leu Shakespeare ou quis lutar como Bruce Lee, eles fizeram com que você fizesse algo, te inspiraram a alguma coisa.

Não que esses supracitados devam ter sido Despertos (já encontrei com Pelé e tomei algumas cervejas com Garrincha e, garanto, que, pelo menos eles, não são), mas foram alguns dos seres humanos que realmente fizeram Mágika sem serem Despertos e, o que torna alguém importante ou não, é o fato de tocarem as pessoas pela Arte (seja ela a que for).

Nasci na cidade de São Paulo, no Brasil, no começo do século, e, com pais evangélicos, sempre fui muito religioso. Não éramos abastados, então morávamos numa parte mais pobre da cidade e, desde aquela época, eu sempre tive contato com uma ou outra Arte, sempre sacras, claro, pois não era permitido louvar ou admirar outra coisa que não a Deus e suas manifestações.

Minha educação foi dada por meus pais e, devo dizer, bastante satisfatória em vários pontos. Entretanto, como sempre tive curiosidade e algo artístico dentro de mim, pediram para um professor da igreja para me ensinar Artes. Seu nome era Bartolomeu, um senhor negro de já avançada idade, tocava muito bem violão, viola e violino e sabia bastante sobre poesias e pinturas. Ele dizia ter conhecido Cruz e Souza, mas eu duvido dessa sua afirmação. Por efeito, foi o primeiro poeta que tive contato, sua versão musicada de Violões Que Choram foi uma das coisas mais sinceras e mais belas que eu ouvi na minha vida, muito provavelmente meu primeiro contato com a Mágika.

Seu Bartolomeu (como era conhecido) dizia ser “um visionário, alguém que não se importa muito com as convenções gerais”, por conta dessas e outras afirmações, eu acredito que ele fosse um Desperto, até porque, assim como apareceu em minha vida, o idoso também sumiu, deixando-me um presente: o Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli.

Ah sim! Quase esqueci. Meus pais, quando descobriram o que ele me ensinava (por uma inocência minha), o proibiram de falar comigo, porém eu continuei a visitá-lo e, um dia, acordei com a imensa pintura em meu quarto. Rapidamente a tranquei no porão (um sacrilégio, eu concordo), mas foi necessário, caso contrário ela sofreria do fogo sagrado.

Meu coração se balançava entre a Arte e Deus. Não entendia como uma representação pagã pudesse ser tão bela, culpava-me por adorar o Diabo em segredo e temia que minha carne queimasse no Inferno quando morresse, apenas Deus deveria ser aquele que eu adorasse, mas, cada vez mais, aquele quadro maldito me chamava, cada vez mais eu passava mais tempo no porão quase convertido em meu quarto. Lá, junto da pintura maléfica, estavam meu violino e a partitura inicial do que viria a ser a minha primeira ópera e o meu Prelúdio Mágiko: A Beleza de Vênus. Por Deus! Eu compunha em nome daquela representação pagã! Eu, sempre tão fiel a Jesus Cristo e aos meus pais! A culpa me atormentava.

Eu já pregava com dezessete anos, nosso templo crescia e precisava de mais pastores. Fui indicado como um dos principais nomes, mesmo tão jovem, pela minha habilidade incomum de compor belíssimas melodias e fazer discursos inflamados que tocavam o coração dos fiéis. Mal eles sabiam que Deus era uma belíssima mulher, nua, e vinha dos mares por uma concha. E que Deus! Cada vez mais aquela demoníaca atraía meus olhares, cada vez mais eu jurava o amor por Ela e, quando dei por conta, estava violando meu corpo por ela.

Com 22 anos, já com a alma completamente corrompida, sem comer, dormir e com a saúde desgastada por conta de minha corrupção, eu chorava e clamava para que Ela me deixasse ir, para que Ela me libertasse, que me tirasse essas correntes impostas por sua Beleza e que eu pudesse ser um com Jesus novamente.

Então senti algo correndo pela minha espinha, um arrepio, uma dor, um orgasmo, uma vontade, uma confusão de sentidos digno de Mallarmé. Desmaiei. Quando acordei estava deitado em uma relva com um vento quente a soprar meu rosto, ouvi algumas vozes e resolvi levantar minha fronte. Conforme ia erguendo a face, ondulações alaranjadas em fios marítimos subiam acompanhados por planícies alvas, alguns relevos delicados e rios laranja mais fortes até deparar-me com a fronte levemente sorridente e doce de um demônio.

Balbuciei e não pronunciava uma palavra por tremor, em seguida um manto vermelho já cobria seu corpo e uma mulher com vestido branco e detalhes em verde se ia. Algumas rosas caíram sobre meu rosto e, assustadoramente, sentei-me. Estava maravilhado, mas demorara a entender o que estava acontecendo. As pessoas se moviam e tudo era bastante verossímil para mim. Apoiei-me numa árvore para regurgitar e, depois de erguer a cabeça, vi uma praia com uma concha gigante estacionada com delicadeza na areia. Na época não sabia, mas hoje reconheço que era o litoral de Chipre. Voltei-me para Ela, irritado. O Inimigo havia me capturado e eu não podia fazer nada. Pior! Eu havia morrido e minha alma, por conta de minha culpa e desespero, foi tragada praquilo que foi minha ruína! Sentia raiva como nunca havia sentido, sentia amor, compaixão e paz. Sentia tudo o que poderia sentir olhando para Ela, a Perfeição. Sentei-me de costas a um loureiro e vi uma águia a planar despreocupadamente, voltei meus olhos para Ela, sentada delicadamente numa pedra próxima, uns três corpos de distância.

Encaramo-nos. Jesus Cristo! Eu flertava com o Demônio! Consumido por culpa e tomado por um momento de loucura, peguei algo duro que se encontrava ao meu lado (um galho da oliveira, descobri segundos depois) e parti, decidido, para cima do Infernal. Chegando próximo a Ela, perfurei seu ventre na tentativa vã de assassinar o Anticristo. Seu olhar de dor, a lágrima persistente em sua face e o sangue jorrando de seu ventre foram o suficiente para eu ter remorso e, perceber, que o que eu havia feito era errado. Senti algo entrando em minha barriga e meu olhar, encontrando o dela em seu sofrimento, também lacrimejou pelo lado oposto ao da Deusa. Meu sangue escorreu junto com meu corpo junto ao dela e, o galho que antes nos estava separando, nos uniu, perfeitamente. Meus lábios encontraram os dela e, nossas lágrimas se evaporaram quando nossos olhares de júbilo se confluíram. Enquanto ficávamos unidos sobre a pedra, esta se envermelheceu com nosso sangue, o líquido da vida também cobriu nossos corpos enquanto nos esfregávamos. Enquanto de lado, metade do galho saiu pelas minhas costas e a outra metade pela dela, em seguida nossa carne se reconstituiu e, enquanto ela se encontrava por cima, eu senti um ar quente invadindo meus pulmões como se eu estivesse respirando pela primeira vez.

Ela, marmórea, estava reluzindo com o sol que ainda nascia pelas suas costas. Eu estava coberto de sangue, meu e dela, dela e meu. Ela me beijou mais uma vez e, então, eu adormeci aos poucos e, antes de adormecer, ouvi sua voz doce dizer “Augusto”.

Acordei no porão de minha casa e senti um fogo queimar dentro de mim. Levantei-me e, de uma vez, terminei de compor minha ópera. Passei cerca de três dias escrevendo sem parar, mas foi o jeito que achei de extravasar todo o meu sentimento, toda a minha certeza de que a Arte e, apenas ela, é o Caminho. Deus apenas é uma Verdade, não é a Verdade, ele é um símbolo, algo que nos diz alguma outra coisa: alguma lição, alguma vida, e, a partir dele, nós temos um momento de (o que eu não sabia no instante por falta de estudos) Catarse, de Epifania (como minha amiga veio bem a descrever depois), mas tudo isso só é possível pela Arte, pela manifestação artística.

E, depois que terminei de compor, informei minha decisão de abandonar o culto pros meus pais. Fato que não aceitaram muito bem até eu começar a contribuir com algum dinheiro depois que consegui algumas aulas quando estava na Europa. Minha mãe morreu cedo, pouco depois dos meus trinta anos, mas meu pai sobreviveu o bastante para saber que eu já não envelhecia há algum tempo e que, de certa forma, isso não se devia à minha alimentação balanceada (inexistente) e preparo físico (de um enxadrista). Uma espécie de orgulho intolerante tomou conta dele e, na última vez que conversamos antes dele morrer de infarto, pediu que eu usasse a Benção de Deus a favor da humanidade, mas, que deveria, de vez, abandonar essas maldições que desgraçaram a minha vida.

Mal sabia ele que, antes mesmo de sair do porão e contar a eles que abandonaria o culto, eu já tinha a certeza que minha vida seria pela e para a Arte, elevá-la em sua forma mais sublime e instrumentalizá-la como meio de elevar o ser humano desse mundo corrupto e medíocre. O Divino, Deus, Éden, Paraíso, Olimpo ou o que você quiser chamar, papai, é o estado de espírito em que seu corpo se encontra quando é tocado pela Arte, o Inferno, Diabo, Tártaro ou qualquer outro nome é o momento em que o homem é privado da boa Arte, é a situação que não permite o homem ser tocado pela Arte, a bolha quase que inviolável daquilo que o homem chama de mundo moderno.

Eu já estou em contato com Deus, sempre estou em contato com ele. Desde que Seu Bartolomeu me ensinou o primeiro acorde no violão.

E sou uma parte de Deus, desde que, naquela noite, Vênus me encontrou e me contou do que o mundo é realmente feito.
 

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