Daí vem as noções modernas de espírito que não tem NADA a ver com o espírito dos espíritas, e espiritualistas e outros bichos estranhos mas também não tem muito mais a ver com o espírito dos povos tradicionais.
Sim, até porque poucos conceitos foram tão mal-compreendidos, alterados, mexidos, zoados, estraçalhados e deturpados como o de 'espírito'. E o espiritismo não tem monopólio sobre ele nem o espiritualismo. Aliás, poucos o deturparam mais que religiões tão modernoides como o espiritismo e esses espiritualismo que no sentido de adaptação de doutrinas tradicionais (leia-se 'zoeragem sem fim') a ideias modernas são mestres.
Deturpação ou ressignificação dentro de outras bases filosóficas? Depende do lugar do qual você olha. Conceitos são polissêmicos e possuem historicidade. São dinâmicos como as sociedades e estão sujeitos a transformações, ressignificações e apropriações as mais diversas como respostas à própria dinâmica social, política, cultural e econômica de uma época. É verdade o que você diz quanto ao conceito de "espírito" não ser monopólio do espiritismo ou de outras formas de espiritualismo. Tampouco é monopólio de católicos ou protestantes. Mas ele se insere no contexto de cada doutrina de maneira específica, dentro de um quadro conceitual, um aparato filosófico que lhe dá sentido e coerência. Naturalmente que os tradicionalistas, pretensos representantes de uma ortodoxia, alegarão a deturpação, a usurpação e a corrupção do conceito, posto que há uma concepção que aponta, como em diversas doutrinas, para o monopólio da verdade.
Essas bases foram esboroadas pela modernidade, com o declínio das autoridades, o avanço do profano e o processo de descristianização do Ocidente, que começa a ganhar contornos mais nítidos já em princípios do século XVIII, conforme o historiador marxista Michel Vovelle. E nisso o processo de secularização do pensamento político foi central.
Curioso ver como algumas religiões mais modernas, como espíritas/espiritualistas e evangélicos PRECISAM o tempo todo recorrer ao campo do sensível para se valer como crença. Seja pastores curando deficientes ou espíritos se manifestando em cartas ou em possessões. Weber nos falou que o protestantismo tinha conseguido "desencantar o mundo", acabando com todo o carater místico das religiões cristãs e trazendo a tona a real necessidade da ascese e da vida vpela essência, e não pela aparência. Parece que andamos na contra-mão da história em alguns momentos...
Isso ocorre, seguindo a linha de Guenon, exatamente por serem modernas. Os traços mais marcantes desse neo-espiritualismo e do espiritismo como um todo é essa obsessão 'fenomenista', essa tara por querer explicar os maiores mistérios do universo e mesmo Deus através da 'experiência', do 'rigor científico', como se houvesse alguma possibilidade de uma experiência metafísica, ora, os próprios termos se excluem um ao outro. Nada metafísico pode ser sensível ou 'científico' e vice-versas, são domínios de realidade completamente distintos. Isso, como o evolucionismo, o utilitarismo, enfim, esse cientificismo dessas religiões modernas (note-se como certos imbecis se pavoneiam ridiculamente dizendo que o espiritismo não é religião, mas uma 'ciência', como se isso fosse alguma vantagem e não uma grosseira idiotice) é um sintoma característico que atesta como elas são modernas mesmo, e são até, frequentemente, como materializações da vida espiritual, basta ver como são grosseiramente materiais as descrições do 'pós-vida' em diversos autores espíritas antigos, alguns (como os fraternistas) chegam a esboçar que até mesmo Deus evolui!
puke
Autores espíritas antigos? A quem se refere, Pagz? Eu fiquei intrigado quando você falou em "espiritismo clássico pré-kardecista", mas como não era essa a discussão, não me manifestei. O que você entende por "espiritismo clássico"?
Como espírita, não concebo a existência de um espiritismo pré-kardecista. Naturalmente o espiritismo não surgiu do nada, tendo convivido com outras formas de espiritualismo na Europa moderna. Na própria introdução de O Livro dos Espíritos, escrito em 1857, Kardec faz uma discussão conceitual entre o espiritualismo e a nova doutrina que ganhava corpo, cunhando o termo espiritismo. Diz-se que espiritismo foi um neologismo. Desconheço usos anteriores. Mas ainda que existam, estamos tratando de uma conceituação específica. Por isso, parece-me que falar em espiritismo pré-kardecista é uma extrapolação.
Não quero, obviamente, dizer que o espiritismo tenha surgido do nada ou como se diz, tenha "inventado a roda". Diversas formas de espiritualismo e misticismo conviviam na Europa moderna. Para nós espíritas Kardec foi o Codificador da revelação dos espíritos, num contexto que Arthur Conan Doyle, também um curioso espiritualista, chamou de "a invasão organizada". Houve assim a organização de um aparato filosófico sistêmico que desse corpo a uma nova doutrina que os espíritas entendem como sendo a terceira revelação ao ocidente, com a característica de se tratar de uma revelação progressiva.
Embora o Pagz tenha colocado como crítica, eu concorda que haja, resguardadas devidas proporções, uma "obsessão 'fenomenista'". E isso vai de encontro ao que o Felagund levantou. Onde o espiritismo surge? Em círculos intelectuais e elitizados numa França que vive um processo de industrialização, secularização e inundada pelo otimismo racionalista oitocentista. Kardec não nega o aspecto religioso e filosófico da nova doutrina, mas em seu otimismo a chama de "nova ciência". Mas o conceito de religião utilizado de fato traz uma fundamentação moderna.
É esse racionalismo também que leva Kardec a escrever orientações no sentido da valorização da razão e da ciência, chegando a dizer que se algum dia a Ciência provasse que algum ponto da Codificação estivesse em equívoco, que abandonássemos esse ponto e abraçássemos os novos esclarecimentos. Nesse sentido, há um anti-dogmatismo semelhante ao que Jorge Grespan identifica no pensamento iluminista, quando fala da crítica à razão dogmática.
No início do Evangelho segundo o Espiritismo é dito que em nosso mundo coexistem Leis Físicas e Leis Morais. Uma vez que ambas têm sua origem em Deus, não seria lícito julgar que uma contradiz a outra e que, portanto, não haveria porque haver a separação entre ciência e religião. E que com o processo evolutivo chegará o momento em que o homem compreenderá e superará esse hiato. E nisso repousa a recusa ao materialismo, aqui entendido como o apego ao imanente. De certo modo, há uma realidade material e uma realidade espiritual. Mas ao mesmo tempo essa separação é complexa, posto que elas são intersticiais. Enquanto espírito reencarnado estou num plano material, mas simultaneamente vivo uma realidade que também é espiritual. E alguns têm uma maior percepção disso, como aqueles que pelos motivos mais variados reencarnam com mediunidade ostensiva. E a iluminação é justamente o "viver no mundo sem ser do mundo", buscando a transcendência e tomando contato com nossa essência divina, nossa individualidade profunda, "crística". E isso se processa através de diversas experiências reencarnatórias na senda evolutiva.
Ainda assim, dentro do próprio movimento espírita há uma crítica ao "fetiche do fenômeno", visando priorizar o aspecto moral da doutrina. Geralmente uma pessoa chega à casa espírita e a primeira coisa que ela diz é que quer participar de uma reunião mediúnica. Há casas que têm muito pouco cuidado com isso. Sincretismo, vaidade, espetáculo e mesmo charlatanismo são coisas que naturalmente se encontra em casas ditas espíritas. Foi por isso que no tópico sobre Espiritismo, disse à Amanda que é preciso muito cuidado e critério para escolher uma casa. Eu travei os meus primeiros contatos com o Espiritismo há seis anos, passando pela juventude e agora voltando a ela como coordenador e ainda assim nunca tomei parte em uma reunião mediúnica e nem acho que esteja preparado pra isso. E olha que foi justamente o fato de ter vivido experiências mediúnicas que me levou ao Espiritismo. Acho que tenho muito que estudar antes de caminhar nesse sentido. Enfim, desculpem por desvirtuar o tópico. Mas a própria discussão caminhou pra isso.
Mas enfim, não é o lugar pra criticar o espiritismo, ainda vou criar um tópico sobre um livro de Guenon (O erro espírita) sobre o assunto.
Lerei.