Meus dois centavos...
Quando a Sinéad O'Connor rasgou a foto do Papa João Paulo II durante uma apresentação no Saturday Night Live, cantando "War", composta por Bob Marley, confesso que fiquei fascinado: lá estava ela rasgando a imagem de um dos homens mais queridos e amados do mundo, na frente de milhões de pessoas. A coragem que ela teve e a frase "fight the real enemy" foram surpreendentes. Obviamente, muita gente ficou chocada e não (quis) entender o ato em si. Para quem conhece a história da cantora, no entanto, o ato ganhou relevância justamente pela influência da igreja na Irlanda, a qual 1) por questões político-religiosas, quando do divórcio de seus pais, colocou-a sob os cuidados da mãe, tendo sofrido abusos durante o período em que viveu sob sua guarda, 2) ao cometer um furto, foi mandada para um asilo de Madalena, e 3) durante 85% do papado de Woytila, o bendito polonês que derrotou o comunismo não fez m**** nenhuma para ajudar as vítimas de abusos por parte das instituições ligadas à ICAR. Isso, claro, foi uma forma de iconoclastia - um deslocamento/anulação de um referente popular ligado ao objeto. Contudo, não vi o mesmo ocorrendo domingo.
Eu entendi as motivações, entendo o apoio que muitos dão ao ato, mas não consigo ver ali algo que não tenha sido gratuito. Por que digo isso? A iconoclastia é acompanhada de um discurso que a justifica - como no caso de O'Connor. Qualquer subversão de uma imagem, sagrada ou secular, é acompanhada de um discurso tal - paródias, releituras, etc. Quando Godard fez seu "Je Vous Salus, Marie", vimos ali apenas uma tentativa de mostrar a dimensão humana de Maria - uma mulher comum explorando seu lado humano, seu lado sexual. (O mesmo foi visto em "A Última Tentação de Cristo", de Kazantzákis/Scorsese.) A quebra realizada foi apenas isso - uma quebra. Então, qual o problema? Tirando a provocação, problema nenhum, já que os católicos conseguem ver além da imagem... Mas as imagens são uma lembrança de uma meta, de um alvo. As imagens de santos são uma forma de inspirar os fieis a procurarem esse ideal de santidade. Quebrasse um monumento da Santa Sé e até que teríamos um discurso mais efetivo para tal iconoclastia.
Aliás, me impressiona uma coisa: a imagem quebrada era de uma mulher. Chamem-na de machista, mas lembremos de uma coisa: era uma mulher. Aliás, se formos pensar na história dela, uma mulher cuja coragem ainda inspira muitos - em tempos de desespero, basta muitos lembrarem dos riscos que ela correu para assumir o ministério religioso. Se a quebra foi um ato de contestação ao poderio católico, ela também foi um ato desnecessário e que atentou contra aqueles que nela se inspiram justamente para fazer valer seus direitos e sua dignidade. Do meu lado, prefiro tentarmos convencer "corações e mentes" da necessidade da luta a correr o risco de fortalecer as alas conservadoras.