E sabe não sei por que isso me lembra de quando eu era criança e eu não sei o que eu tinha, mas eu vivia com náuseas e vivia vomitando, mas não aquele vômito pesado, sabe, substancial, era só uma gosma amarela, daqueles amarelos orgânicos do tipo que só podem sair de dentro de ti, e às vezes eu vomitava duas, três vezes por hora e eu sei lá eu não queria que ninguém descobrisse, principalmente a minha mãe, mas eu não queria que ninguém ninguém descobrisse mesmo. Eu devia ter uns oito anos. Às vezes quando eu tava na sala vendo tevê e eu via que o vômito ia subir e eu não podia sair da sala sem levantar suspeitas, principalmente se tava dando alguma coisa boa na tevê, tipo a novela das oito, ou algum filme que a minha mãe já tinha visto e tinha gostado, eu simplesmente guardava o vômito na boca até o intervalo, porque eu sabia que no intervalo, meu pai ia levantar pra ir pra cozinha fumar e a minha mãe ia pro banheiro-- mas, tipo, o negócio de não poder sair no meio da novela ou do filme é que logo que eu levantasse do sofá, ou antes ainda, quando eu fizesse menção de levantar do sofá, a minha mãe ia me olhar e dar um risinho como se eu tivesse fazendo alguma atrocidade e ia me dizer “não levanta agora que essa parte é boa”, ela falava isso não importa o que tivesse passando, mesmo que fosse a imagem de um jardim ou sei lá, mas ela sempre falava isso e eu sabia que se eu tentasse levantar ela ia fazer isso e não ia me deixar levantar e se eu tivesse que explicar, ia acabar mostrando que tava guardando o vômito na boca, então eu esperava os dois saírem, e daí eu levantava e ia até um vaso grande de espada de são jorge que tinha na entrada logo depois da porta, e me abaixava ali e fazia um furinho na terra com o dedo e cuspia o vômito ali, depois cobria com um pouco de terra e limpava o dedo no bolso da bermuda ou da calça se fosse inverno. O bom de ver tevê com o meu pai e a minha mãe é que a gente não costumava conversar sobre o filme nem nada disso, a minha mãe só falava comigo ou com o meu pai se um dos dois ameaçasse levantar, fora isso ela só comentava o filme ou a novela com ela mesma, sabe, ela reforçava o que os atores diziam, por exemplo, a mocinha do filme diz “tu nunca me amou”, e a minha mãe repetia “nunca amou”, fazendo sinais de positivo com a cabeça, ou então ela comentava coisas absurdamente óbvias sobre o enredo, do tipo “quando tá lúcida ela é muito inteligente”, ou “ele tá traindo ela esse tempo todo”, isso me dava um certo tédio, eu lembro de rolar os olhos discretamente a cada comentário desses, mas eu já tava acostumado, e o meu pai não falava nada, ele geralmente só ria, e ele ria muito, principalmente em filmes de ação, ele gargalhava de chegar a chorar, e ele nem sentava no sofá, ele sentava numa mesinha de centro, de madeira, que não era assim tão pequena, mas era baixinha, sabe, uns cinquenta, sessenta centímetros, ele sentava na mesa porque assim ficava mais perto da tevê, isso porque ele enxergava mal e ouvia mal também. Aliás, acho que ele é surdo ou quase surdo do ouvido esquerdo, mas acho que não sei exatamente por que, sei lá, tenho que perguntar. E esse tipo de coisa vem e vai, sabe, como uma época uns dois anos atrás em que eu pensava que toda tomada que eu me aproximasse ia acabar explodindo, sabe, quando eu plugava e desplugava as coisas da tomada, e era um pensamento automático, não era pânico nem nada, simplesmente a cada vez que eu plugava ou desplugava alguma coisa eu pensava vai explodir, e existiam algumas variações disso, por exemplo no chuveiro, que era elétrico, toda vez que eu ligava eu achava que ia explodir e cair na minha cabeça e me eletrocutar, mas não era paranoia, sabe, era diferente, porque realmente eu já tinha visto um chuveiro explodir, mas por causa da pressão da água e uma tomada geralmente solta uma faisquinha de vez em quando, então, sabe, são dessas coisas que ficam incrostadas na periferia da nossa memória sem que a gente lembre e sem que esqueça e essas coisas voltam de vez em quando com uma abruptude-- sabe, tem uma dessas que vive voltando, é uma memória de quando eu tinha uns seis, sete anos e eu tava vendo um filme de pirata na tevê que eu agora não faço a menor ideia de qual era mas que na época eu gostava, e eu tava comendo um pacote de chocolate granulado que tinha sobrado de algum doce que a minha mãe tinha feito, e isso me volta com tanta força que eu chego tremer os dentes e chega a doer o meu maxilar.
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O mudinho despencou mas ninguém tava olhando pra ele na mesa então a mudinha começou a mexer os braços que nem louca e a gente via que ela tava tentando gritar porque em uns dois segundos a cara dela ficou um pimentão, mas não saía som nenhum então ela só balançava os braços até que ela se tocou que a gente ali na plateia tava vendo tudo, daí ela começou a abanar os braços pra gente e uns dois caras se levantaram correndo pra ajudar mas eu fiquei rindo e o pessoal que tava ali comigo ficou rindo também, mas só quando os caras saíram correndo que o pessoal da mesa se tocou que o mudinho tinha despencado, e foi um pessoal lá acudir, dando uns tapinhas no rosto dele, quer dizer é o que eu imagino pelo menos porque ficou todo mundo agachado atrás da mesa e não dava pra ver nada.