O videogame, a desigualdade, o fetiche e a teoria que explica o Brasil
O texto sobre
o papel da desigualdade social no preço do PS4 obviamente teve uma repercussão muito maior que a esperada. Também foi alvo de elogios e críticas, e por isso considerei pertinente completar as informações do texto anterior e responder a alguns questionamentos.
Basicamente, os críticos ao texto se dividiram em quatro argumentos, que acabam se misturando:
- Pessoas reclamando da imprecisão dos dados tributários levantados.
- Fãs da Sony defendendo a empresa.
- Liberais defendendo o argumento de que no livre mercado isso jamais aconteceria.
- Reclamações referentes à citação do conceito de “fetiche da mercadoria”, de Karl Marx, tanto por parte dos “alérgicos” a ele quanto por parte dos “especialistas” que consideram que o conceito foi mal empregado. (inclusive fizeram um
texto bem raivoso sobre)
Em relação aos que reclamaram da imprecisão dos dados levantados, admito meus parcos conhecimentos de Direito Tributário, e desde o princípio não pretendi trabalhar com valores exatos, apenas exemplificar, de forma didática, como o valor de R$ 4 mil é absurdo na comercialização do console.
Felizmente, existem pessoas com maior conhecimento tributário que o meu, e várias delas apareceram na caixa de comentários para dar suas opiniões. Dentre todas as opiniões dadas a respeito da tributação, a mais sensata me pareceu a do
Luis Fernando, com o cálculo resumido a seguir:
Custo no exterior: $400 (assumindo isso como PREÇO DE CUSTO – não adianta falar que é subsidiado porque se subsidiam lá, teriam que subsidiar aqui também)
Frete e seguro: $20 (chutando alto para uma gigante como a Sony)
Valor aduaneiro em dólares: $400 + $20 = $420
Cotação do dólar: R$2,1629
Valor aduaneiro em Reais: R$908,42
Imposto de Importação (20%): R$181,68
IPI (50%): R$545,05
PIS (1,65%): R$14,99
COFINS (7,60%): R$69,04
ICMS (18% para SP): R$377,38
Total do produto nacionalizado: R$2.096,56
É um valor maior que os R$ 1700,00 que eu havia sugerido no texto anterior. Mas não torna a margem de lucro da Sony menos absurda. Também não procede a informação de que o IPI de 50% é sobre o preço de venda, por um motivo simples: a legislação tributária diz o contrário. Conferindo os fatos geradores do IPI para pessoas jurídicas, é fácil verificar que nenhum deles pode ser aplicado à operação de venda do produto, e sim ao processo de importação:
1. FATO GERADOR
1.1 São duas as principais hipóteses de ocorrência do fato gerador do IPI:
1.1.1 Na importação: o desembaraço aduaneiro de produtos de procedência estrangeira;
1.1.2 Na operação interna: a saída de produto de estabelecimento industrial, ou equiparado a industrial.
Fonte:
http://www.receita.fazenda.gov.br/pessoajuridica/ipi/conceito.htm
Espero que os dados tributários estejam mais precisos agora. E também admito que cometi um ato falho ao dizer que “quem tem 87 vezes mais renda consome 87 vezes mais”. O certo seria “quem tem 87 vezes mais renda tem uma capacidade de consumo 87 vezes maior”. Com a ressalva de que, nesse caso, as pessoas não devem consumir muito menos que isso, em um país com pouca poupança interna como o Brasil.
Em relação aos fãs da Sony que tentaram defender a empresa, o argumento do fetiche da mercadoria cai como uma luva. Esse conceito de fetiche da mercadoria é, explicando de uma forma muito simplificada, a transformação de uma relação comercial em uma relação afetiva. Uma relação, que deveria ser meramente comercial, é encarada pelo sujeito que adquire o produto como uma relação pessoal. E é esse conceito que sustenta a diferenciação pelo consumo e a noção de “exclusividade” com base na aquisição de um produto que a maioria não pode adquirir.
É o conceito de fetiche da mercadoria que explica, por exemplo, a existência de “fãs da Sony” ou “fãs da Apple”. O que é um fã da Sony senão um sujeito que transforma uma relação comercial em uma relação afetiva? E obviamente só é um fã da Sony ou da Apple o sujeito que tem um poder aquisitivo bem maior que a média da sociedade e pode adquirir esses produtos. É por isso que é impossível dissociar a desigualdade social dos preços praticados pela Sony. O Brasil é o único lugar do mundo em que a renda ou a capacidade de endividamento dos “fãs da Sony” em comparação com o restante da sociedade faz com que valha a pena a comercialização de um console ao preço de R$ 4 mil.
Além disso, há um outro fator relevante: a expectativa de queda no preço do console. Quando o potencial de consumo dessa legião de “fãs da Sony” estiver esgotado, a empresa abaixará o preço do PS4 para atingir novos públicos. Lá pra 2017, quando o PS3 não estiver mais disponível (a Sony lançou o console em 11 de novembro de 2006 prevendo uma vida útil de dez anos para o mesmo), o PS4 finalmente atingirá o patamar de preço do PS3 hoje (e a Sony provavelmente estará se preparando para lançar o PS5). É pura estratégia empresarial da empresa, adaptada ao perfil do mercado brasileiro.
Em relação aos liberais que consideram o livre mercado ideal para que não ocorram aberrações do tipo, e tem certa repulsa ao conceito de desigualdade social, lembrem-se: estamos no Brasil, que tem uma história nacional muito peculiar. Se pudéssemos resetar a sociedade, recomeçá-la do zero e garantir que todas as pessoas tivessem boa índole, eu seria o primeiro sujeito a apoiar o livre mercado. No entanto, estamos em uma sociedade com uma história de desigualdade mal resolvida desde a colonização. É óbvio que os impostos também tem efeito nesse preço absurdo. Acabamos de ver, pelos cálculos do Luís Fernando, que um console que deveria entrar no país por cerca de R$ 1000 acaba custando mais de R$ 2 mil. É muita coisa.
Mas como confiar no empresariado brasileiro, que historicamente é um dos mais dependentes do setor público? Um exemplo: dos países do G-20, o Brasil é um dos únicos cinco em que
o setor público investe mais em pesquisa científica que o setor privado. E não dá pra dizer que são “os impostos que inibem a pesquisa por parte das empresas”. Existem diversas linhas de financiamento e programas de incentivo ao empreendedorismo no país. E a grande maioria deles é proveniente do setor público. É irrisória a quantidade de investidores privados no setor produtivo no Brasil. E quando eu digo investidores privados, não estou falando do empresário que investe em sua própria planta, e sim no empresário que acredita em uma ideia e investe nela. Ao invés disso, os investidores privados daqui preferem deixar seu dinheiro investido em bancos ou em outros ativos fixos, como imóveis. Quando vão investir em alguma coisa que envolve risco, investem em ações, e não no setor produtivo.
E é nesse ponto que eu queria chegar para mostrar o que esse caso do PS4 de R$ 4 mil diz sobre o Brasil. É comum cairmos na “tentação da explicação única”, mas nesse caso isso é impossível. É nítido que esse preço, no console, envolve uma soma de fatores: a empresa que quer maximizar seus lucros, o governo historicamente protecionista, a desigualdade social sistêmica, vinda desde os tempos da colônia. E é a soma de todos esses fatores que explica o preço extorsivo do videogame.
O Brasil não é explicado pelo livre mercado, e também não é explicado pela intervenção estatal. E isso porque os cenários ideais em ambos os modelos econômicos pressupõem a boa índole dos atores envolvidos. No livre mercado, em tese, a livre concorrência regularia os mercados, produzindo uma sintonia fina entre oferta, demanda, preços, capacidade de consumo, poupança interna e em todos os aspectos da economia. Por outro lado, a intervenção estatal faria com que o montante arrecadado servisse para propiciar serviços públicos de qualidade e toda uma estrutura de bem-estar social, em um modelo comparável ao praticado nos países escandinavos.
Nada disso acontece por aqui. E quem deu a explicação para isso foi o ecologista Garrett Hardin, em uma matéria publicada na revista Science em 1968, intitulada
“A Tragédia dos Comuns”. Quando Hardin publicou esse estudo, ele se aplicava especialmente à ecologia e à biologia, mas se tornou abrangente a ponto de explicar questões políticas e sociais.
Capa da Science, de 2003, perguntando se o mundo
não se transformou em uma grande tragédia dos comuns.
A “tragédia dos comuns” é uma situação específica, no contexto da Teoria dos Jogos. Na prática, funciona assim: existe um grupo de pessoas que pode agir de maneira a maximizar seus benefícios individuais ou de maneira a maximizar os benefícios do grupo como um todo em um cenário em que não existem resultados totais individuais possíveis, apenas resultados coletivos. Como em um país, por exemplo.
Por exemplo, em uma conta de restaurante. Se, em um grupo de vinte pessoas que pagarão uma única comanda, dezenove pedem um prato de R$ 20 e um pede um prato de R$ 100, a conta total dá R$ 480, com R$ 24 por pessoa e pouco prejuízo geral. No entanto, se dezenove pessoas pedem um prato de R$ 100 e só uma pede um prato de R$ 20, todos terão que pagar R$ 96. Ou seja, se a maioria das pessoas tiver uma postura abusiva, todas acabam pagando por elas.
O Brasil é uma enorme “tragédia dos comuns”. Enquanto os governos historicamente são intervencionistas e fazem uma gestão pouco eficiente dos recursos, favorecendo o clientelismo e o patrimonialismo, os empresários e a classe produtiva tentam maximizar seus lucros de todas as formas possíveis, reinvestindo uma baixa porcentagem de seus lucros na sociedade, e até a população em geral busca levar algum tipo de vantagem, burlando regras sempre que pode. É o conhecidíssimo fator cultural do
jeitinho brasileiro, explicado com precisão por diversos autores durante nossa história.
Essa “tragédia dos comuns” é responsável pelo preço exorbitante do PS4, pelo preço absurdo dos carros, pelas taxas bancárias abusivas, pela especulação imobiliária recente nas grandes cidades e até pelos preços exorbitantes que devem ser cobrados durante eventos como a Copa do Mundo de 2014.
E como reverter isso? Da mesma forma que os biólogos usam para reverter as “tragédias dos comuns”: fazendo com que a cooperação valha mais a pena do que a atitude egoísta. Em 2006, o biólogo Martin A. Nowak descreveu as
motivações biológicas para a cooperação. Elas podem ser revertidas para a economia e para a sociedade, como ocorreu com a tragédia dos comuns? Certamente? Mas, para isso, o primeiro passo é convencer a sociedade de que vale mais a pena adotar uma postura cooperativa do que buscar apenas os interesses individuais, como sempre fizemos historicamente, seja no governo ou no setor privado.
Enquanto não aprendermos, enquanto país, a sermos mais cooperativos e menos individualistas, continuaremos sendo uma “tragédia dos comuns”. E isso vai se refletir em tudo: do preço dos videogames ao serviço público que os cidadãos recebem.
Aleatório, Eventual & Livre