Em ordem cronológica:
Claro Enigma (Carlos Drummond): você pode espernear, pode chamar a mamãe, pode pedir seu vale-birra de volta... Mas esses são pura e simplesmente os versos mais belos da literatura brasileira toda todinha todona: "Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos, / assim te levo comigo, tarde de maio". Ferreira Gullar também assina em baixo nisso que eu disse (vide o Roda Viva mais recente). Mas enfim. Livro titânico, livro que alcança uma altura que só Fernando Pessoa e Camões conseguiram alcançar em poesia de língua portuguesa. Poesia de estirpe épica onde não se sabe o que mais se admira: se a beleza dos versos, se a vastidão do tema, se a profundidade com que ele é tratado... Na boa, se você ainda não leu, tá pagando de bocozão. "A Máquina do Mundo" já foi eleito o melhor poema de nossa literatura, pra não citar outros como "Relógio do Rosário" ("O amor não nos explica. E nada basta, / nada é de natureza assim tão casta // que não macule ou perca sua essência / ao contacto furioso da existência.") ou "Campo de Flores" ("Deus me deu um amor no tempo de madureza, / quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme."). Enfim. Quando dizem que Drummond é o maior poeta brasileiro... Olha, os caras sabem do que estão falando.
Fedra (Jean Racine): no começo do ano eu li teatro até morrer. Aí eu ressuscitei e hoje estou purpurinado. O fato é que Racine é fantástico; o dramaturgo mais apaixonante que conheci desde Shakespeare. A força analítica de suas obras é ímpar, e Fedra ainda hoje me desconcerta em algumas passagens que me fazem desancar em lágrimas (quero dizer; sou um típico macho alfa, então falei no sentido figurado). Cheguei até mesmo a escrever uma resenha em duas partes pro finado Meia Palavra, onde analisei a ideia do Millôr de que Fedra é a tragédia da palavra: isto é, Fedra só é uma peça trágica porque a palavra "incesto" possui conotações trágicas. Mas enfim. O fato é que Fedra é daquele tipo de coisa que você decide sublinhar o que gostou. Aí termina o texto pensando: "esse povo devia imprimir o texto todo sublinhado já..."
Leonor de Mendonça (Gonçalves Dias): conhecemos Gonçalves Dias poeta, com todos os louvores de sua excelência versificatória. Mas desconhecemos o Gonçalves Dias dramaturgo. Pode? Pode, se a Companhia Celi-Autran em pleno século XX deu uma nova roupagem a essa peça que é considerada a maior do nosso teatro do século XIX (mas que foi miseravelmente encenada no mesmo século)? Não, não pode. A peça é linda. É forte. A consciência de Gonçalves Dias do ofício dramatúrgico pode ser atestado no Prefácio que ele escreveu; mas ele pode ser sentido na própria leitura da peça, de enredo simples e absurdamente impactante... Se teatro é criar uma tensão, então eu não sei o que diabos é Leonor de Mendonça, visto que, no final, o leitor está tão preso e fascinado ao texto que qualquer mudança mínima no comportamento de Leonor é sentido em nossa espinha dorsal. E se isso não é bom teatro... Como diria Luisa Marilac, se isso é teatro ruim, que quer dizer teatro bom?
Cyrano de Bergerac (Edmond Rostand): na boa, não quero falar dessa peça. Eu me emociono. Já li ela, oficialmente, umas quatro vezes... Mas, não oficialmente, umas boas dezenas. O fato é que a peça é linda, a tradução do Gullar está fodástica (o prêmio Molière criou uma categoria para premiá-la), os personagens, a situação, os versos... Não vou conseguir comentar. Leiam.
Romeo and Juliet (William Shakespeare): pude ler algumas coisas de Shakespeare no original. Essa peça, que o recém-falecido Décio Pignatari classificava como seu rosebud pessoal, continua fascinante, deslumbrante. Não que não existam boas traduções: a tradução de Onestaldo de Pennafort para essa peça é considerada a melhor tradução de Shakespeare já empreendida no Brasil (e não sou eu que digo; é um carinha chamado Ivo Barroso, caso não saibam...). Mas no inglês... É somente no inglês que podemos sentir o impacto de versos como: "(...)such soon-speeding gear / As will disperse itself through all the veins / That the life-weary taker may fall dead / And that the trunk may be discharged of breath / As violently as hasty powder fired / Doth hurry from the fatal cannon's womb." Assim, se você acha que Romeu e Julieta é só o eu-te-gosto-você-me-gosta de que fala Drummond, parabéns, você está errado. Weeeeeeee!... Está errado pois Romeu e Julieta possui de tudo; até monólogos de um teor horripilante que muita literatura de terror ainda hoje não consegue... Pra não dizer em trocadilhos de caráter sexual, por exemplo: pois, se Romeu e Julieta não fazem o tchetchererê explicitamente, o que tem de neguinho querendo fazer naquilo ali você tá é louco, viu! 50 Tons de Cinza? Nas primeiras linhas, você lê coisa tipo assim: "therefore I will push Montague's men from the wall, and thrust his maids to the wall." Essa peça é excitante.
Contos (Machado de Assis): Machadão é Machadão. Esse argumento dispensa qualquer outro. É mais eficiente que o Exodia, que Master Ball, que Gameshark, que ter o quadrado emperrado e jogar God of War... Enfim.
No caminho de Swann (Marcel Proust): eu já disse tudo o que tinha que dizer sobre o Em Busca num tópico anterior. É escuso querer repeti-lo aqui... Marcel Proust é divino. Nenhum prosador tem uma habilidade tão magnífica quanto ele. Pois ninguém consegue manter o leitor extasiado por 3 mil e lá vai cacetada de páginas onde quase nada acontece... Sim, quase nada acontece. É um tal de comer bolinho pra cá, de tia que não consegue sair do quarto, de descrição de jardim, de pirralhada andando de gelo, de tiozão casando com prostituta (essa parte é legal hehe), de fedelho que não quer dormir... Ai Deus, ô coisa entediante! É... E que deliciosa, que magnífica! Nenhum prosador do século passado chegou ao nível de Proust. Há dois anos atrás eu estava fuzilando James Joyce nessa pessoa; mas hoje... Tadinho de Joyce!
50 Poemas Escolhidos pelo Autor (Manuel Bandeira): persisti com Manuel Bandeira e venci. Vi, vim, vinci. Era assim que Leonardo da Vinci se apresentava, e é assim que posso, hoje, ver beleza inexcedível e poemas como "O Cacto", dos mais exorbitantemente belos, áspero e intratáveis de nossa poesia. Para não dizer nos poemas traduzidos, nos sonetos, nos poemas de amor tão simplesinhos, coitados!, como o do porquinho-da-índia... Manuel Bandeira é o protótipo de poeta perfeito. Conciso. Exato. Vasto. Universal.
Elegias de Duíno (Rainer Maria Rilke): com a ajuda de algumas pessoas queridas, como de minha martorëmedeiros, aprendi a gostar de um poeta que já amava mesmo antes de ler. Porque gente, fala sério: o cara escrevia poemas num castelo. Cas-te-lo. Isso é sonho demais... E o Rilke é um poeta brutal. A dimensão de seu pensamento é vasta, vasta a tal ponto que chamá-lo de um dos maiores poetas do século XX é dizer o óbvio. O que está dito ali é visceralmente verdade. Negar a certeza e a plenitude de seus versos é negar a própria alma... Sei lá, é dar um tiro no pé, coisa assim. Pois se a poesia mostra nossas vísceras, ao contrário da prosa que cria um mundo paralelo e tudo mais, querer negar as vísceras que a poesia de Rilke nos expõe é, no mínimo, um suicídio (o Réquiem ao Poeta Wolf von Kalckreuth, aliás, fala desse tema... Aí já viu, né? Não tem saída, cara. Perdeu. Vai ler, playboy.).
Em alguma parte alguma (Ferreira Gullar): minha última paixão desse ano, Ferreira Gullar me cativou sobremaneira com os Sete Poemas Portugueses. Deles eu fui pra obra completa e hoje sou dependente químico de Gullar. Não passo, literalmente, um dia sem ler alguma coisa que seja dele. E não falo do Gullar político, ainda que muita coisa do que ele diga deva ser levada em consideração pelos esquerdopatas (dentre os quais me incluo); mas do Gullar poeta, do Gullar teórico, dessa mente brilhante que possui uma lucidez mais lúcida e luzente que um relâmpago, metáfora que sempre gosta de usar para se definir e definir as coisas. Se escolhi o último livro dele como leitura do ano, é porque vejo nele uma gama de ensinamentos e respostas que a poesia contemporânea precisa acatar ou ao menos considerar para sair do lodo em que se encontra (não tentem negar uma coisa tão notória como essa). Tudo o que costumam dizer que falta na produção poética de hoje está lá, está de alguma forma alguma neste que muito provavelmente será o último livro do Gullar: basta para isso observar que, de 2010 pra cá, Gullar afirma que não escreveu nada, visto que só escreve quando a poesia o convoca. E essa, de resto, é uma coisa que eu acho sensatíssima, pois dá dignidade ao poeta e não o permite produzir apenas por produzir, como muitos infelizmente produziram no final de suas vidas, por maiores que tenham sido...