Qual a diferença no plano da existência entre as coisas animadas (com alma) e inanimadas (sem alma).
Bem, vejamos:
Ao endossar a sub-criação de Aulë (os anões), Ilúvatar referiu-se a eles como seus filhos (filhos de Ilúvatar) por adoção. Parece-me então, que os anões (pelo menos os anões) são Filhos (adotivos) de Ilúvatar. Outro trecho do mesmo capítulo do Silmarillion (de Aulë e Yavanna) fala mais ou menos a mesma coisa, mas com outras palavras:
Antigamente, dizia-se entre os elfos na Terra-média que os anões ao morrer, voltavam para a terra e a pedra da qual eram feitos; no entanto, não é essa a crença entre eles próprios. Pois dizem que Aulë, O Criador, que chamam de Mahal, gosta deles e os acolhe em Mandos em palácios separados; e que ele declarou a seus antigos Pais que Ilúvatar os abençoará e lhes dará um lugar entre os Filhos no final.
Sem desprezar a advertência da menina superpoderosa (Swanhild -hehehe
) lá de cima, de que os Ents e Águias talvez não tivessem o mesmo destino dos Anões, apesar dessas três espécies de seres pensantes serem tratadas (por razões editoriais) no mesmo capítulo, continuo pensando que Anões, Ents e Águias tinham alma e livre-arbítrio, exatamente da mesma forma que os Filhos (naturais) de Ilúvatar (Elfos e Homens).
As coisas só fazem sentido pra mim se adotarmos a premissa de que livre-arbítrio é praticamente a mesma coisa que alma. Ou melhor dizendo: quem tem alma tem livre-arbítrio. As outras coisas aparentemente animadas (aves, mamíferos, insetos, bactérias) não tem alma nem livre-arbítrio. Elas, de fato, só agem se os Poderes da Terra (os Valar) estiverem com seu pensamento voltado nelas.
Vejam este trecho do Valaquenta:
A esposa de Aulë é Yavanna, a Provedora de Frutos. Ela ama todas as coisas que crescem na terra; e guarda na mente todas as suas incontáveis formas, das árvores semelhantes a torres nas florestas primitivas ao musgo sobre as pedras ou aos seres pequenos e secretos que vivem no solo.
Acredito que tais seres pequenos e secretos que vivem no solo (imaginemos uma formiga, por exemplo) não fazem nada senão por obediência à vontade de Yavanna. Não tem alma, nem livre-arbítrio. Se a Provedora de Frutos não houvesse determinado em seu pensamento que as formigas devem guardar comida no verão, para sobreviver ao inverno estéril, elas não tomariam essa iniciativa por conta própria e morreriam.
As plantas e pequenos animais irracionais não fazem nada que a mãe natureza não lhes tenha programado para fazer, porque não tem alma (livre-arbítrio). Já os Filhos de Ilúvatar (os naturais e os adotivos), podem agir por conta própria, tomar iniciativas e fazer coisas sem a necessidade de os Poderes da Terra estarem com seus pensamentos voltados para eles, pois eles tem alma.
Não vejo outra explicação para o fato de seres tão poderosos como os Valar ficarem escondidos numa ilha distante enquanto o mundo ficava desgovernado. Acredito que o pensamento dos Valar tenha estado o tempo todo em Arda, cada um governando a sua província, ou seja: cada Valar com seu pensamento concentrado nos seus domínios (um na luz, outro nas águas, outro nos ares, etc.).
Yavanna, por exemplo, estava o tempo todo concentrada em programar os animais irracionais que amava, pois eles não tomariam iniciativa nenhuma sozinhos.
Já os Ents, que eram sub-criação de Yavanna, podiam agir (é o que eu penso, apesar da controvérsia) com livre-arbítrio, pois eles tinham alma e (arrisco novamente ir longe demais) podiam ser considerados (tal como os anões) Filhos de Ilúvatar, por adoção.
Aí está a diferença entre os objetos e os seres vivos: tanto uns como outros existiam, mas somente os seres vivos agiam.
Mas, dentre os seres vivos, uns agiam somente quando os Poderes da Terra estivessem com seu pensamento voltado para isso (os seres sem alma) e outros agiam com livre-arbítrio (os seres com alma: os Filhos de Ilúvatar).
Os Ainur existiam (pertenciam ao mundo que é) e tinham alma (livre-arbítrio), mas não estavam vivos (não estavam encarnados em Arda num hröa, num corpo mortal). Os Valar e Maiar podiam vestir-se com um corpo, se desejassem. Mas esse corpo (fana) não era uma encarnação verdadeira (exceto nos casos de Melian e Melkor, que optaram limitar-se a um hröa, por razões muito particulares).
Os Filhos de Ilúvatar, tanto os naturais (Elfos e Homens), quanto os adotivos (Anões, Ents, Águias e Orcs) existiam (pertenciam ao mundo que é), tinham alma (livre arbítrio) e estavam vivos (estavam encarnados em Arda num hröa).
Os animais irracionais e plantas existiam (pertenciam ao mundo que é), mas não tinham alma (livre-arbítrio), apesar de estarem vivos (estarem encarnados em Arda, num hröa). Para agirem, esses seres dependiam de que os Valar os governassem por meio de seus pensamentos.
Os objetos (pedras, terra, água) existiam (pertenciam ao mundo que é), mas não tinham alma nem estavam vivos (pois não tinham nem fëa nem hröa).
Obs1: Fëa = alma; hröa = corpo mortal; fana = corpo intagível, imortal. Posso ter grafado errado... mas acho que vocês vão entender o que quero dizer.
Obs2: Essa discussão a respeito da Existência das coisas lembra muito uma teoria proposta por um filósofo alemão chamado Immanuel Kant. Para ele, que escrevia inspirado por idéias aristotélicas, havia um mundo do ser (sein) e um mundo do dever-ser (dasein). Esses mundos seriam totalmente incomunicáveis (nada transita diretamente entre dever-ser e ser), a exceto por meio da linguagem. O mundo do dever-ser corresponde a o mundo das idéias, dos conceitos. O mundo do ser corresponde à realidade. A realidade só pode ser incorporada ao mundo das idéias (ao intelecto de uma pessoa ou grupo de pessoas) através da linguagem (que dá nome e confere sentido às coisas); as idéias só podem se transformar em realidade por meio de ações humanas (que são linguagem, mesmo que sem palavras) impregnadas de sentido (e o sentido só provém da linguagem).