Todas as defesas apresentadas foram boas, mas como se vota em dois, fui de Lima Barreto e García Márquez.
O voto do Márquez tava pendendo pro Nabokov, mas aquela foto de Caçador de Borboletas foi demais.
Bom, como ainda é dia de votação, vamos então às últimas campanhas de boca de urna, que aqui a prática não é criminosa.
Primeiro, um parêntese: Para aplacar a sede de Brasil que sempre tive, Lima Barreto me foi fundamental. Há, também, José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos, mas nenhum destes teve tanto impacto quanto Lima Barreto.
Triste fim de Policarpo Quaresma, que a escola quase destruiu, é hoje o livro que eu queria ter escrito, caso tivesse a capacidade e, principalmente, as vivências do seu autor. Sim, pois cada linha do homem é confessional; cada personagem e narrador traz suas experiências cotidianas e professa seus ideais. Há quem nisso veja pecado, diminuindo o valor do escritor. Não poucos críticos literários pontuam negativamente suas obras por serem excessivamente diretas, carentes de metáforas e abstrações. São críticas válidas até a página dois, pois não consideram o fim específico que Lima Barreto pretendeu à sua literatura, bem como igualmente ignoram os tempos de mudanças vividos e, como já dito, as próprias experiências do escritor e sua relação com as tradições e a febre de modernidade que tomou grandes formas com a Proclamação da República. Para ilustrar, em
Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, quando este é informado da atitude personificada em Deodoro, na manhã chuvosa de 15 de novembro de 1889, responde num curto diálogo que vale a pena reproduzir:
- “Seu” Gonzaga, hoje não se trabalha; o Deodoro, de manhã, proclamou a República do Campo de Sant’Ana.
- Mas qual? – perguntou.
As suas reminiscências de história não lhe davam de pronto a ideia nítida do que fosse república. Sabia de tantas e tão diferentes...”
Num período de “falsa euforia” como aquele, tenho comigo que Lima Barreto, pela personalidade combativa, não existiria para a posteridade caso se escondesse em sua literatura, caso ignorasse o papel político-social do escritor, sendo essa sua crença máxima.
Agora, vamos ao romance
Clara dos Anjos, que escolhi para esta segunda fase, publicado postumamente em folhetim.
Como já disse em outro post,
Clara dos Anjos foi uma das obsessões do escritor. Em seu
Diário Íntimo existem os planos para fazer da estória da mulatinha pobre dos subúrbios, seduzida por um mau caráter branco e de posição social superior a sua, a obra pela qual seria reconhecido ao longo dos anos. No objetivo inicial, o narrador acompanharia Clara vida afora, com gerações se sucedendo, firmando a ideia do drama social transmitido pelos genes, já que a estrutura de poder permanecia inalterada. Infelizmente, não teve tempo para tanto, já que faleceu com apenas 41 anos. Porém, mesmo distante do projeto inicial,
Clara dos Anjos, além de nos fornecer traços biográficos do autor, desnuda aspectos de uma época. Um deles, que salta aos olhos, é a questão do subúrbio. Há uma frase que sintetiza bem a ideia:
“O subúrbio é o refúgio dos infelizes.“
Este é o primeiro romance passado totalmente no subúrbio. A exceção de um capítulo, dedicado ao centro da cidade (que aparece com o intuito de reforçar o contraste entre os extremos), toda ação acontece ao longo dos bairros populares localizados ao redor da estrada de ferro Auxiliar, Leopoldina, Rio do Ouro e da Central. Bairros que o andarilho Lima Barreto conhecia muito bem.
Esse subúrbio, pela construção, deixa de ser apenas o local dos acontecimentos. Torna-se personagem, interfere no enredo, nos destinos de quem por ele transita. É dinâmico, heterogêneo, cheio de distinções de classe social e racial. Lugar ao mesmo tempo aprazível e violento. Lá, convivendo, estão os pobres e a aristocracia suburbana, a classe média,
“dominante entre os dominados e dominada entre os dominantes”. Essa última afirmativa se torna evidente quando Cassi Jones, o canalha de
“aridez moral e sentimental”, membro de família com deleites aristocráticos, sendo estes caracterizados pela mãe, Salustiana Baeta de Azevedo, suposta neta de Lord inglês e com irmão figurão do Exército. À ela, Lima Barreto dirigiu toda sua injúria contra a classe que representa. Mas, dizia, essa divisão social se revela fortemente quando Cassi Jones vai ao Centro. Lá, o galã suburbano é somente mais um entre tantos que desembarcam na estação, vindo da periferia. Anônimo, perdido em meio a rapazes e garotas que discutem um mundo alheio ao seu, perde o ar de absoluto que ostenta entre os bairros cujo eixo é a linha férrea. Lima Barreto, assim, delimita bem o alcance dessa aristocracia suburbana, anulando-a por contraste com a verdadeira elite de Botafogo e da Tijuca.
É nas ruas poeirentas dos subúrbios, onde a arquitetura se faz na base do puxadinho, que milhares vivem, totalmente esquecidos pelo poder público. Utilizando das palavras do autor:
“Por esse intricado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma grande parte da população da cidade, a cuja existência o governo fecha os olhos, embora lhe cobre atrozes impostos, empregados em obras inúteis e suntuárias noutros pontos do Rio de Janeiro.”
O trecho acima foi retirado do ótimo capítulo VII, onde se trata com riqueza de detalhes o cotidiano desses locais. Prova de que Lima Barreto amou o Rio de Janeiro. O subúrbio, principalmente com
Clara dos Anjos; o centro, em
Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá; o Rio por inteiro em todos os seus escritos. Foi alguém, ao contrário dos doutores do assunto, que pensou a cidade para as pessoas, sem exceções, denunciando e refletindo o uso do espaço urbano. Para ele,
“toda cidade deve ter sua fisionomia própria”, pois,
“isso de todas se parecerem é gosto dos Estados Unidos”. O Rio deve ser
“lógico com ele mesmo”. Criticava, evidentemente, as reformas iniciadas por Pereira Passos e continuadas por sucessores, com o intuído de nos europeizar. Ou melhor, tornar Paris a cidade que as elites frequentavam, ao mesmo tempo que a sorte do subúrbio era na base do resolvam-se por si mesmos.
Temos, aí, que a falta de planejamento urbano também foi bandeira defendida. Não conheço o Rio, mas o descaso com o espaço público é, ainda, mania nacional. São Paulo, que explodiu com o tosco plano das avenidas de Prestes Maia, com a loucura da retificação do Tietê, culminando com os vermes Paulo Maluf, Celso Pitta, José Serra e Gilberto Kassab, continua sua saga bandeirante na base do bumba-meu-boi, patrocinado pelo próprio governo, agora lacaio de empreiteiras. É cidade cuja arquitetura não possibilita o encontro, antes segrega e cria condomínios fechados, micro-cidades quase autossuficientes. A bola cantada por Lima Barreto continua rolando.
Voltando do salto no tempo para
Clara dos Anjos, a grande população do subúrbio também nos é apresentada. Desde a família do carteiro, pai da garota, e seus compadres, a Cassi Jones e seus comparsas, temos todo um leque dos tipos que habitam a região. Em cada um deles, como não poderia deixar de ser, encontramos Lima Barreto, suas crenças e aversões. Porém, há dois personagens que se destacam pelo grande traço autobiográfico: o dentista Meneses e o poeta Leonardo Flores. Do primeiro, o vício da bebida. Através de Meneses vemos a degradação que o álcool lhe legou, a luta e a derrota contra o vício que abrevia a vida. Em seu
Diário Íntimo, registra:
“ De há muito sabia que não podia beber cachaça. Ela me abala, combale, abate todo o organismo, desde os intestinos até à enervação. Já tenho sofrido muito com a teimosia de bebê-la. Preciso deixar inteiramente.”
Com Meneses, em
Clara dos Anjos, assume a derrota:
“ A irmã não se conteve, que não exclamasse:
- Ah! Santo Deus! Essa parati é uma desgraça...
- Não há dúvida, mana; mas, agora, não posso mais parar, senão morro...”
Em Leonardo Flores, vemos nítido o escritor: mulato, de parente demente, alcoólatra, amante da arte:
“ Pois tu não sabes que tenho sofrido tudo, dores, humilhações, vexames, para atingir o meu ideal? (...) tudo isto eu fiz com sacrifício de coisas mais proveitosas, não pensando em fortuna, em posição, em respeitabilidade (...) A arte só a ama quem a ama inteiramente, só e unicamente; e eu precisava amá-la, porque ela representava não só a minha Redenção, mas toda a dos meus irmãos, na mesma dor. “
Para finalizar, uma sentença que vale menção:
- Nós não somos nada nesta vida.
A estória é conhecida. Seduzida por Cassi Jones, Clara é abandonada grávida. Recheando as páginas, o já dito subúrbio e seus moradores, tudo muito bem pontuado por críticas sociais, semelhantes as do esboço de 1904, apresentado no primeiro post sobre Lima Barreto para essa segunda fase.
A frase acima foi dita por Clara, após conhecer sua condição frente à sociedade. Lima Barreto, ao contrário do conto, a redige no plural, pois o drama de Clara não é particular, mas atinge muitas mulheres em situações análogas à sua.