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Disputa de Autores (Segunda Fase)

Escolha os [SIZE=6][COLOR="#FF0000"][B]DOIS[/B][/COLOR][/SIZE] melhores!


  • Total de votantes
    17
  • Votação encerrada .
Trechinhos

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O Amor nos Tempos de Cólera

• "Rogou a Deus que lhe concedesse ao menos um instante para que ele não partisse sem saber quanto o amara por cima das dúvidas de ambos e sentiu a permanência irresistível de começar a vida com ele outra vez desde o começo para que dissessem tudo o que tinha ficado sem dizer, e fizessem bem qualquer coisa que tinham feito mal no passado. Mas teve que se render à intransigência da morte."
• “... nunca teve pretensões a amar e ser amada,
embora sempre nutrisse a esperança de encontrar algo que fosse como o amor, mas sem os problemas do amor.”
• "À merda o leque que o tempo é de brisa."
• “O desejo de esquecê-lo era o mais forte estímulo para se lembrar dele.”
• “... nunca teve pretensões a amar e ser amada, embora sempre nutrisse a esperança de encontrar algo que fosse como o amor, mas sem os problemas do amor.”
• “As pessoas que a gente ama deviam morrer com todas as suas coisas.”
• “Conversaram sem se preocupar com a hora, porque ambos estavam acostumados a compartilhar suas insônias...”
• “Já tinha então a impressão de conhecê-lo como se tivesse vivido com ele toda a vida, e acreditava que ele era capaz de mandar o navio voltar ao porto se isso pudesse curar sua dor.”
• “Coisa bem diferente teria sido a vida para ambos se tivessem sabido a tempo que era mais fácil contornar as grandes catástrofes matrimoniais do que as misérias minúsculas de cada dia.”
• “... à medida que aumentavam as ânsias de estar com ela aumentava também o temor de perdê-la, de modo que os encontros foram ficando cada vez mais apressados e difíceis.”
• “... caminhavam juntos, com seus passos contados, se amando sem pressa como noivos velhos...”

Depois posto mais obras ;)

____________________________

Agora eu tenho uma pergunta. Na página do Gabo na Wikipédia, existe um link onde estão publicados dois contos dele. Colocando as referências, eu posso postá-los aqui?
 
Passei só pra dar karma pra Ana pelo avatar.

Oh bliss! Bliss and heaven! Oh, it was gorgeousness and gorgeousity made flesh. It was like a bird of rarest-spun heaven metal or like silvery wine flowing in a spaceship, gravity all nonsense now. As I slooshied, I knew such lovely pictures!
 
Calib querendo ver as minhas polêmicas.


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Aproveitando ainda o tempo que temos para apresentar mais alguns aspectos do escritor que estamos defendendo, menciono alguns aspectos da vida e da obra de Dostoiévski.

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Tendo se envolvido politicamente, o autor foi condenado à morte após ser acusado de conspirar contra o Czar. Como sabemos, no último momento, antes de ser fuzilado, ocorre a comutação da pena. Dostoiévski é assim condenado a quatro anos de trabalhos forçados em uma prisão da Sibéria. Essa terrível experiência foi retratada em um de seus grandes livros, Recordação da Casa dos Mortos.

Um dos vícios que ele tinha eram os jogos de azar; a roleta lhe consumiu muito dinheiro. Devido a esse inconveniente, Dostoiévski acabou adquirindo uma enorme dívida e teve que fugir da Rússia. O tema do jogo lhe rendeu um outro grande romance chamado O jogador.

Deve-se ainda destacar uma das obras do autor russo preferidas pelo público, Crime e Castigo. Este romance narra a história de um jovem (Raskólnikov) que comete o assassinato de uma velha agiota e se vê perseguido pela incapacidade de continuar sua vida após o delito.

Porém, a sua magnum opus, sem dúvida nenhuma, é Os Irmãos Karamazovi; trata-se de um romance único, que alcança as profundezas e os mistérios da alma humana. Ali podemos encontrar temas como assassinato, guerra, miséria, suicídio, loucura, religião e ateísmo. Apesar de todos esses elementos já terem aparecido, em algum momento, em outros de seus livros, como Humilhados e ofendidos, O idiota e Os Demônios, etc., é nele que tais temas são abordados de uma maneira pormenorizada e que o transformou na maior obra da história, segundo ninguem menos que Sigmund Freud.
 
Pessouas, conversem com a gente. Vocês não tem perguntas sobre os autores?
 
Vou fazer comparações, não sei se fica legal, mas vamos lá.

Já li Camus, Dostoiévski e Lima Barreto, e gostei demais dos três.
Comecei a ler e não gostei de Nabokov (Lolita) e GG Marques (Cem Anos de Solidão) .

Porque eu deveria dar uma nova chance a esses dois?

E o contrário?
O que um leitor de GG Marques (por exemplo) acharia do Camus ou do Dostoiévski ou do Lima?
Não os acharia, sei lá, cruéis demais (pra não dizer deprimentes)?

E se eu leio Dostoiévski, pra que vou ler Lima Barreto e Nabokov?
Não é melhor ficar só no russo já que ele foi um dos que começaram com essa coisa toda de realismo e a vida como ela é, cheia de lágrimas, patetismos e filhadaputice?

E pra que vou ler sobre gente feia, suja e malvada e choro e ranger de dentes neste vale de lágrimas (Dostoiévski, Camus, Lima) se posso ficar com GG Marques que (pelo que a devogada Liv falou) é delicado, romântico e tchutchu?

E o GG Marques, não é fofucho demais? Cadê realismo nele?
Um leitor de Camus ou do Lima não ficaria meio :blah: com o colombiano?
 
Ganhou um ótimo pelas perguntas. Todas ótimas. Ainda hoje posto as respostas =]
 
E se eu leio Dostoiévski, pra que vou ler Lima Barreto e Nabokov?
Não é melhor ficar só no russo já que ele foi um dos que começaram com essa coisa toda de realismo e a vida como ela é, cheia de lágrimas, patetismos e filhadaputice?

Em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto, pelo voz do personagem, cita os autores e as obras que lhe influenciaram:

" Estão ali O Crime e o Castigo, de Dostoiévski, um volume dos Contos de Voltaire, A Guerra e a Paz, de Tolstói..."

Ou seja, o homem se fez com Dostoiévski. Aliás, pelo bem da verdade, há que se dizer que todos, principalmente os bons, se fizeram com o russo. E alguns com recomendação do próprio Lima Barreto.

Ele, que sofreu com o descaso dos literatos durante praticamente toda a carreira, tendo que se fazer publicar na raça, não desejou semelhante sorte à ninguém. Todos os escritores iniciantes que o procuravam eram prontamente atendidos. Em resposta a uma, das inúmeras cartas que recebia, escreveu: "Leia sempre russos: Dostoiévski, Tolstói, Turguêneff, um pouco de Górki; mas, sobretudo, o Dostoiévski da Casa dos Mortos e do Crime e Castigo".

Mas, faz a ressalva, ler, por ler, tanto faria os russos como Coelho Neto, seu desafeto. A leitura, por ela mesma, é nula e vã. Lima Barreto continua: "É preciso incorporar as suas leituras a si mesmo e elas aparecerão mais belas, pois surgirão transfiguradas por um pensamento de moço e seu ".

Tudo isso pra dizer que, mesmo conscientes da importância de Dostoiévski, é, para nós, tão ou mais importante ler Lima Barreto, pois o sangue do russo encontrou nas veias do brasileiro vivências próprias e muito nossas, terminando numa ressignificação mútua, que nos permite um entendimento de nós mesmos e da nossa condição, passada e atual. Lima Barreto trilhou aquele processo de leitura que tão bem definiu Paulo Freire: "a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele ".

No mais:

" Lima Barreto é um dos primeiros momentos em que a literatura se transforma em voz do preterido, do marginalizado, em arma de ataque a uma cúpula política e intelectual elitista e burocratizada."
Luiz Roncari

" Lima Barreto viu e registrou o avesso do regime, o fundo podre, com olhos que nada tinham de falsamente brasileiros, como os da maioria dos escritores seus contemporâneos. E o fez sempre com sinceridade e com coragem, e não raro com grandeza."
Francisco de Assis Barbosa

" Temos que ler Lima Barreto porque somos um país socialmente injusto. Somos um país onde os pobres continuam pobres e as elites continuam no lugar delas."
Antônio Arnoni Prado

E pra que vou ler sobre gente feia, suja e malvada e choro e ranger de dentes neste vale de lágrimas (Dostoiévski, Camus, Lima) se posso ficar com GG Marques que (pelo que a devogada Liv falou) é delicado, romântico e tchutchu?

O García Márquez diz do amor e diz bem. Porém, a meu ver, seu tema predileto é a velhice e as limitações naturais que impõe ao homem. Convenhamos, não é um assunto dos mais agradáveis. A perda de vigor físico é foda e é muito mais real do que aquele refrão do "toda idade tem prazer e medo", muito embora o Márquez tente, no fim das contas, já que não tem jeito mesmo, demostrar isso. E há, no enredo, reflexões acerca de episódios da história colombiana, bem como das lendas do Caribe e suas manifestações no imaginário. De modo que o salto para o Lima, pois não posso dizer dos outros dois, não é tão grande. O tema social e a militância no brasileiro é enorme, é a marca principal de suas linhas e ninguém, em minha opinião, se equipara a ele. Porém Márquez também traz lá suas ponderações sócio-políticas e mesmo o tema da escravidão, embora com outra ótica, já que cada contexto é único, marca presença na sua obra. Só para exemplificar, em "Do amor e outros demônios" aborda-se o preconceito contra a religião afro e o combate ao sincretismo. Concluo que, embora diferentes, não deixam de guardar algumas semelhanças e podem até ser complementares se pretendermos entender o Brasil e a América Latina através da literatura.

Em tempo: Lima Barreto, nessa disputa, chegou ao lugar que tanto buscou. Está entre os grandes. Lima Barreto, García Márquez, Dostoiévski, Camus, Nabokov.

Que honra pro Barreto, hem! E que honra pra esses quatro.
 
Última edição:
E aqui vai mais do homem que refletiu em Clara dos Anjos:

" Os frequentadores dessa ou daquela natureza lá iam sem sem nenhuma repugnância, pois é próprio do nosso pequeno povo fazer uma extravagante amálgama de religiões e crenças de toda a sorte, e socorrer-se desta ou daquela, conforme os transes e momentâneas agruras de sua existência. Se se trata de afastar atrasos de vida, apela para feitiçaria; se se trata de curar moléstia tenaz e renitente, procura a espírita; mas não falem à nossa gente humilde em deixar de batizar o filho pelo sacerdote católico, porque não há, dentre ela, quem não se zangue: "Está doido! Meu filho ficar pagão! Deus me defenda!" "

" Na vida, ele só via o seu prazer, se esse prazer era o mais imediato possível. Nenhuma consideração de amizade, de respeito pela dor dos outros, pela desgraça dos semelhantes, de ditame moral o detinha, quando procurava uma satisfação qualquer. Só se detinha diante da força, da decisão de um revólver empunhado com decisão. Então, sim... "

" Todas as moças, das mais diferente cores, que, ali, a pobreza e a humildade de condição esbatiam e harmonizavam (...)"

" (...) havia na vida, ou por outra, nas relações entre os homens, um guia silencioso e secreto, que pesava os nossos atos e pedia, para dar-lhes apoio e encaminhar-nos para uma paz interior e um contentamento conosco mesmos, o emprego, em todas as nossas ações, do Justo, do Leal, do Verdadeiro e do Generoso; e esse guia - ele via agora no caso de Marramaque - dava força aos fracos, coragem aos tímidos e uma seráfica e íntima satisfação, quando cumpríamos o nosso dever com honra e dignidade. Esse guia era a Consciência. "

" Pairei sempre no ideal; e se este me rebaixou aos olhos dos homens, por não compreender certos atos desarticulados de minha existência; entretanto, elevou-me aos meus próprios, perante a minha consciência, porque cumpri o meu dever, executei a minha missão (...) A arte só ama a quem a ama inteiramente, só e unicamente; e eu precisava amá-la, porque ela representava não só a minha Redenção, mas toda a dos meus irmãos, na mesma dor. "

" Na sua cabeça, não entrava que a nossa vida tem muito de sério, de responsabilidade, qualquer que seja a nossa condição e o nosso sexo. Cada um de nós, por mais humilde que seja, tem que meditar, durante a sua vida, sobre o angustioso mistério da Morte, para poder responder cabalmente, se o tivermos que fazer, sobre o emprego que demos a nossa existência. "

" Não havia, em Clara, a representação, já não exata, mas aproximada, de sua individualidade social; e, concomitantemente, nenhum desejo de elevar-se, de reagir contra essa representação."

" O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade (...) e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. "
 
Última edição:
Vou fazer comparações, não sei se fica legal, mas vamos lá.

Já li Camus, Dostoiévski e Lima Barreto, e gostei demais dos três.
Comecei a ler e não gostei de Nabokov (Lolita) e GG Marques (Cem Anos de Solidão) .

Porque eu deveria dar uma nova chance a esses dois?

Bom, agora quem fala é a Liv, não a "adevogada". Eu li metade de Lolita e larguei, não gostei. Sei bem como é isso. LOL

Eu acho que o problema foi ter começado por "Cem anos de solidão" e novamente, digo isso baseada na minha experiência porque precisei de uma tabelinha com o nome dos personagens. Lá no meio da leitura, já não sabia quem era filho de quem. Por isso que eu acredito na progressão das coisas. Te indicaria um livro "menor" como Memórias de minhas putas tristes ou Do amor e outros demônios, onde as histórias não são cheias de personagens e reviravoltas, aí se você gostar, pega os tubarões. (Aliás, se você quiser ler Gabo, eu ficaria feliz em orientar =] )

Eu acho que você deveria dar uma chance ao Gabo, porque eu acredito que todo livro deve ser lido pelo menos uma vez. Li três livros do Paulo Coelho e agora sei que eles não prestam pra mim, não li nenhum do Graciliano Ramos, mas sei que ele é maravilhoso. Me culpo por isso. Qualquer tipo de leitura agrega, seja pra rir da história tosca ou para se emocionar. Todos os livros do Gabo me tocaram de forma positiva e eu acho que eles podem agregar coisas boas pra você também. =]

E o contrário?
O que um leitor de GG Marques (por exemplo) acharia do Camus ou do Dostoiévski ou do Lima?
Não os acharia, sei lá, cruéis demais (pra não dizer deprimentes)?

Eu só posso responder Gabo - Lima.
Eu li o livro "Contos completos" do Lima e adorei. É mais ou menos o que o Cantona falou no post dele, concordo com tudo =]


E pra que vou ler sobre gente feia, suja e malvada e choro e ranger de dentes neste vale de lágrimas (Dostoiévski, Camus, Lima) se posso ficar com GG Marques que (pelo que a devogada Liv falou) é delicado, romântico e tchutchu?

A vida não é rosa. Gabo não é só tchucthu e Cem anos de solidão é um exemplo disso. A metade da galera se ferra. O amor nos tempos do cólera, também. O cara espera uma vida toda por uma mulher e eles estão bem no centro de uma epidemia de cólera, né. Ninguém escreve ao coronel, idem, digamos que o coronel pode ser considerado um "aposentado no Brasil" sem perspectivas para o futuro e sem nenhuma esperança.

As histórias de amor são maravilhosas, mas as personagens sofrem muito pra ter um final digno. Nem de longe podem ser considerados romances água-com-açúcar.

E o GG Marques, não é fofucho demais? Cadê realismo nele?
Um leitor de Camus ou do Lima não ficaria meio :blah: com o colombiano?

Acho que respondi ali, né. Mas se quiserem, posso falar mais =]

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Eu achei dois contos que eu adoro na internet. Vou postar o site de referência e etc e tal, mas se for contra as regras do fórum, podem editar esse post.

O avião da Bela Adormecida

Era ela, elástica, com uma pele suave da cor do pão e olhos de amêndoas verdes, e tinha o cabelo liso e negro e longo até as costas, e uma aura de antiguidade que tanto podia ser da Indonésia como dos Andes. Estava vestida com um gosto sutil: jaqueta de lince, blusa de seda natural com flores muito tênues, calças de linho cru, e uns sapatos rasos da cor das buganvílias. "Esta é a mulher mais bela que vi na vida", pensei, quando a vi passar com seus sigilosos passos de leoa, enquanto eu fazia fila para abordar o avião para Nova York no aeroporto Charles de Gaulle de Paris. Foi uma aparição sobrenatural que existiu um só instante e desapareceu na multidão do saguão.

Eram nove da manhã. Estava nevando desde a noite anterior, e o trânsito era mais denso que de costume nas ruas da cidade, e mais lento ainda na estrada, e havia caminhões de carga alinhados nas margens, e automóveis fumegantes na neve. No saguão do aeroporto, porém, a vida continuava em primavera.

Eu estava na fila atrás de uma anciã holandesa que demorou quase uma hora discutindo o peso de suas onze malas. Começava a me aborrecer quando vi a aparição instantânea que me deixou sem respiração, e por isso não soube como terminou a polêmica, até que a funcionária me baixou das nuvens chamando minha atenção pela distração. À guisa de desculpa, perguntei se ela acreditava nos amores à primeira vista. "Claro que sim", respondeu. "Os impossíveis são os outros" Continuou com os olhos fixos na tela do computador, e me perguntou que assento eu preferia: fumante ou não-fumante.

— Dá na mesma — disse categórico — desde que não seja ao lado das onze malas.

Ela agradeceu com um sorriso comercial sem afastar a vista da tela fosforescente.

— Escolha um número — me disse. — Três, quatro ou sete.

— Quatro.

Seu sorriso teve um fulgor triunfal.

— Nos quinze anos em que estou aqui — disse —, é o primeiro que não escolhe o sete.

Marcou no cartão de embarque o número do assento e me entregou com o resto de meus papéis, olhando-me pela primeira vez com uns olhos cor de uva que me serviram de consolo enquanto via a bela de novo. Só então me avisou que o aeroporto acabava de ser fechado e todos os vôos estavam adiados.

— Até quando?

— Só Deus sabe — disse com seu sorriso. O rádio avisou esta manhã que será a maior nevada do ano.

Enganou-se: foi a maior do século. Mas na sala de espera da primeira classe a primavera era tão real que havia rosas vivas nos vasos e até a música enlatada parecia tão sublime e sedante como queriam seus criadores. De repente pensei que aquele era um refúgio adequado para a bela, e procurei-a nos outros salões, estremecido pela minha própria audácia. Mas na maioria eram homens da vida real que liam jornais em inglês enquanto suas mulheres pensavam em outros, contemplando os aviões mortos na neve através das janelas panorâmicas, contemplando as fábricas glaciais, as vastas plantações de Roissy devastadas pelos leões. Depois do meio-dia não havia um espaço disponível, e o calor tinha-se tornado tão insuportável que escapei para respirar.

Lá fora encontrei um espetáculo assustador. Gente de todo tipo havia transbordado as salas de espera e estava acampada nos corredores sufocantes, e até nas escadas, estendida pelo chão com seus animais e suas crianças, e seus trastes de viagem. Pois também a comunicação com a cidade estava interrompida, e o palácio de plástico transparente parecia uma imensa cápsula espacial encalhada na tormenta. Não pude evitar a idéia de que também a bela deveria estar em algum lugar no meio daquelas hordas mansas, e essa fantasia me deu novos ânimos para esperar.

Na hora do almoço havíamos assumido nossa consciência de náufragos. As filas tornaram-se intermináveis diante dos sete restaurantes, as cafeterias, os bares abarrotados, e em menos de três horas tiveram de fechar tudo porque não havia nada para comer ou beber. As crianças, que por um momento pareciam ser todas as do mundo, puseram-se a chorar ao mesmo tempo, e começou a se erguer da multidão um cheiro de rebanho. Era o tempo dos instintos. A única coisa que consegui comer no meio daquela rapina foram os dois últimos copinhos de sorvete de creme numa lanchonete infantil. Tomei-os pouco a pouco no balcão, enquanto os garçons punham as cadeiras sobre as mesas na medida em que elas se desocupavam, olhando-me no espelho do fundo, com o último copinho de papelão e a última colherzinha de papelão, e com o pensamento na bela.

O vôo para Nova York, previsto para as onze da manhã, saiu às oito da noite. Quando finalmente consegui embarcar, os passageiros da primeira classe já estavam em seus lugares, e uma aeromoça me conduziu ao meu. Perdi a respiração. Na poltrona vizinha, junto da janela, a bela estava tomando posse de seu espaço com o domínio dos viajantes experientes. "Se alguma vez eu escrever isto, ninguém vai acreditar", pensei. E tentei de leve em minha meia língua um cumprimento indeciso que ela não percebeu.

Instalou-se como se fosse morar ali muitos anos, pondo cada coisa em seu lugar e em sua ordem, até que o local ficou tão bem-arrumado como a casa ideal, onde tudo estava ao alcance da mão. Enquanto fazia isso, o comissário trouxe-nos o champanha de boas-vindas. Peguei uma taça para oferecer a ela, mas me arrependi a tempo. Pois quis apenas um copo d'água, e pediu ao comissário, primeiro num francês inacessível e depois num inglês um pouco mais fácil, que não a despertasse por nenhum motivo durante o vôo. Sua voz grave e morna arrastava uma tristeza oriental.

Quando levaram a água, ela abriu sobre os joelhos uma caixinha de toucador com esquinas de cobre, como os baús das avós, e tirou duas pastilhas douradas de um estojinho onde levava outras de cores diversas. Fazia tudo de um modo metódico e parcimonioso, como se não houvesse nada que não estivesse previsto para ela desde seu nascimento. Por último baixou a cortina da janela, estendeu a poltrona ao máximo, cobriu-se com a manta até a cintura sem tirar os sapatos, pôs a máscara de dormir, deitou-se de lado na poltrona, de costas para mim, e dormiu sem uma única pausa, sem um suspiro, sem uma mudança mínima de posição, durante as oito horas eternas e os doze minutos de sobra que o vôo de Nova York durou.

Foi uma viagem intensa. Sempre acreditei que não há nada mais belo na natureza que uma mulher bela, de maneira que foi impossível para mim escapar um só instante do feitiço daquela criatura de fábula que dormia ao meu lado. O comissário havia desaparecido assim que decolamos, e foi substituído por uma aeromoça cartesiana que tentou despertar a bela para dar-lhe o estojo de maquiagem e os auriculares para a música. Repeti a advertência que a bela havia feito ao comissário, mas a aeromoça insistiu para ouvir de sua própria voz que tampouco queria jantar. Foi preciso que o comissário confirmasse, e ainda assim a aeromoça me repreendeu porque a bela não havia colocado no pescoço o cartãozinho com a ordem de não ser despertada.

Fiz um jantar solitário, dizendo-me em silêncio tudo que teria dito a ela, se estivesse acordada. Seu sono era tão estável que em certo momento tive a inquietude que aquelas pastilhas não fossem para dormir e sim para morrer. Antes de cada gole, levantava a taça e brindava.

— À tua saúde, bela.

Terminado o jantar, apagaram as luzes, mostraram um filme para ninguém, e nós dois ficamos sozinhos na penumbra do mundo. A maior tormenta do século havia passado, e a noite do Atlântico era imensa e límpida, e o avião parecia imóvel entre as estrelas. Então contemplei-a palmo a palmo durante várias horas, e o único sinal de vida que pude perceber foram as sombras dos sonhos que passavam por sua fronte como as nuvens na água. Tinha no pescoço uma corrente tão fina que era quase invisível sobre sua pele de ouro, as orelhas perfeitas sem os furinhos para brincos, as unhas rosadas da boa saúde e um anel liso na mão esquerda. Como não parecia ter mais de vinte anos, me consolei com a idéia de que não fosse a aliança de um casamento e sim de um namoro efêmero. "Saber que você dorme, certa, segura, leito fiel de abandono, linha pura, tão perto de meus braços atados", pensei, repetindo na crista de espuma de champanha o so neto magistral de Gerardo Diego.

Em seguida estendi a poltrona na altura da sua, e ficamos deitados mais próximos que numa cama de casal. O clima de sua respiração era o mesmo da voz, e sua pele exalava um hálito tênue que só podia ser o próprio cheiro de sua beleza. Eu achava incrível: na primavera anterior havia lido um bonito romance de Yasumari Kawabata sobre os anciões burgueses de Kyoto que pagavam somas enormes para passar a noite contemplando as moças mais bonitas da cidade, nuas e narcotizadas, enquanto eles agonizavam de amor na mesma cama. Não podiam despertá-las, nem tocá-las, e nem tentavam, porque a essência do prazer era vê-las dormir. Naquela noite, velando o sono da bela, não apenas entendi aquele refinamento senil, como o vivi na plenitude.

— Quem iria acreditar — me disse, com o amor-próprio exacerbado pelo champanha. — Eu, ancião japonês a estas alturas.

Acho que dormi várias horas, vencido pelo champanha e os clarões mudos do filme, e despertei com a cabeça aos cacos. Fui ao banheiro. Dois lugares atrás do meu, jazia a anciã das onze maletas esparramada mal-acomodada na poltrona. Parecia um morto esquecido no campo de batalha. No chão, no meio do corredor, estavam seus óculos de leitura com o colar de contas coloridas, e por um instante desfrutei da felicidade mesquinha de não os recolher.

Depois de desafogar-me dos excessos de champanha me surpreendi no espelho, indigno e feio, e me assombrei por serem tão terríveis os estragos do amor. De repente o avião foi a pique, ajeitou-se como pôde, e prosseguiu voando a galope. A ordem de voltar ao assento acendeu. Saí em disparada, com a ilusão de que somente as turbulências de Deus despertariam a bela, e que teria de se refugiar em meus braços fugindo do terror. Na pressa estive a ponto de pisar nos óculos da holandesa, e teria me alegrado. Mas voltei sobre meus passos, os recolhi, os coloquei em seu regaço, agradecido de repente por ela não ter escolhido antes de mim o assento número quatro.

O sono da bela era invencível. Quando o avião se estabilizou, tive que resistir à tentação de sacudi-la com um pretexto qualquer, porque a única coisa que desejava naquela última hora de vôo era vê-la acordada, mesmo que estivesse enfurecida, para que eu pudesse recobrar minha liberdade e talvez minha juventude. Mas não fui capaz. "Que merda", disse a mim mesmo, com um grande desprezo. "Por que não nasci Touro?" Despertou sem ajuda no instante em que os anúncios de aterrissagem se acenderam, e estava tão bela e louçã como se tivesse dormido num roseiral. Só então percebi que os vizinhos de assento nos aviões, como os casais velhos, não se dizem bom-dia ao despertar. Ela também não.

Tirou a máscara, abriu os olhos radiantes, endireitou a poltrona, pôs a manta de lado, sacudiu as melenas que se penteavam sozinhas com seu próprio peso, tornou a pôr a caixinha nos joelhos, e fez uma maquiagem rápida e supérflua, o suficiente para não olhar para mim até que a porta foi aberta. Então pôs a jaqueta de lince, passou quase que por cima de mim com uma desculpa convencional em puro castelhano das Américas, e foi sem nem ao menos se despedir, sem ao menos me agradecer o muito que fiz por nossa noite feliz, e desapareceu até o sol de hoje na amazônia de Nova York.

Junho de 1982.

O texto acima foi extraído do livro "Doze Contos Peregrinos", Editora Record — Rio de Janeiro, 1999, pág. 79.

Me alugo para sonhar

Às nove, enquanto tomávamos o café da manhã no terraço do Habana Riviera, um tremendo golpe de mar em pleno sol levantou vários automóveis que passavam pela avenida à beira-mar, ou que estavam estacionados na calçada, e um deles ficou incrustado num flanco do hotel. Foi como uma explosão de dinamite que semeou pânico nos vinte andares do edifício e fez virar pó a vidraça do vestíbulo. Os numerosos turistas que se encontravam na sala de espera foram lançados pelos ares junto com os móveis, e alguns ficaram feridos pelo granizo de vidro. Deve ter sido uma vassourada colossal do mar, pois entre a muralha da avenida à beira-mar e o hotel há uma ampla avenida de ida e volta, de maneira que a onda saltou por cima dela e ainda teve força suficiente para esmigalhar a vidraça.

Os alegres voluntários cubanos, com a ajuda dos bombeiros, recolheram os destroços em menos de seis horas, trancaram a porta que dava para o mar e habilitaram outra, e tudo tornou a ficar em ordem. Pela manhã, ninguém ainda havia cuidado do automóvel pregado no muro, pois pensava-se que era um dos estacionados na calçada. Mas quando o reboque tirou-o da parede descobriram o cadáver de uma mulher preso no assento do motorista pelo cinto de segurança. O golpe foi tão brutal que não sobrou nenhum osso inteiro. Tinha o rosto desfigurado, os sapatos descosturados e a roupa em farrapos, e um anel de ouro em forma de serpente com olhos de esmeraldas. A polícia afirmou que era a governanta dos novos embaixadores de Portugal. Assim era: tinha chegado com eles a Havana quinze dias antes, e havia saído naquela manhã para fazer compras dirigindo um automóvel novo. Seu nome não me disse nada quando li a notícia nos jornais, mas fiquei intrigado por causa do anel em forma de serpente e com olhos de esmeraldas. Não consegui saber, porém, em que dedo o usava.

Era um detalhe decisivo, porque temi que fosse uma mulher inesquecível cujo verdadeiro nome não soube jamais, que usava um anel igual no indicador direito, o que era mais insólito ainda naquele tempo. Eu a havia conhecido 34 anos antes em Viena, comendo salsichas com batatas cozidas e bebendo cerveja de barril numa taberna de estudantes latinos. Eu havia chegado de Roma naquela manhã, e ainda recordo minha impressão imediata por seu imenso peito de soprano, suas lânguidas caudas de raposa na gola do casaco e aquele anel egípcio em forma de serpente. Achei que era a única austríaca ao longo daquela mesona de madeira, pelo castelhano primário que falava sem respirar com sotaque de bazar de quinquilharia. Mas não, havia nascido na Colômbia e tinha ido para a Áustria entre as duas guerras, quase menina, estudar música e canto. Naquele momento andava pelos trinta anos mal vividos, pois nunca deve ter sido bela e havia começado a envelhecer antes do tempo. Em compensação, era um ser humano encantador. E também um dos mais temíveis.

Viena ainda era uma antiga cidade imperial, cuja posição geográfica entre os dois mundos irreconciliáveis deixados pela Segunda Guerra Mundial havia terminado de convertê-la num paraíso do mercado negro e da espionagem mundial. Eu não teria conseguido imaginar um ambiente mais adequado para aquela compatriota fugitiva que continuava comendo na taberna de estudantes da esquina por pura fidelidade às suas origens, pois tinha recursos de sobra para comprá-la à vista, com clientela e tudo. Nunca disse o seu verdadeiro nome, pois sempre a conhecemos com o trava-língua germânico que os estudantes latinos de Viena inventaram para ela: Frau Frida. Eu tinha acabado de ser apresentado a ela quando cometi a impertinência feliz de perguntar como havia feito para implantar-se de tal modo naquele mundo tão distante e diferente de seus penhascos de ventos do Quindío, e ela me respondeu de chofre:

— Eu me alugo para sonhar.

Na realidade, era seu único ofício. Havia sido a terceira dos onze filhos de um próspero comerciante da antiga Caldas, e desde que aprendeu a falar instalou na casa o bom costume de contar os sonhos em jejum, que é a hora em que se conservam mais puras suas virtudes premonitórias. Aos sete anos sonhou que um de seus irmãos era arrastado por uma correnteza. A mãe, por pura superstição religiosa, proibiu o menino de fazer aquilo que ele mais gostava, tomar banho no riacho. Mas Frau Frida já tinha um sistema próprio de vaticínios.

— O que esse sonho significa — disse — não é que ele vai se afogar, mas que não deve comer doces.

A interpretação parecia uma infâmia, quando era relacionada a um menino de cinco anos que não podia viver sem suas guloseimas dominicais. A mãe, já convencida das virtudes adivinhatórias da filha, fez a advertência ser respeitada com mão de ferro. Mas ao seu primeiro descuido o menino engasgou com uma bolinha de caramelo que comia escondido, e não foi possível salvá-lo.

Frau Frida não havia pensado que aquela faculdade pudesse ser um ofício, até que a vida agarrou-a pelo pescoço nos cruéis invernos de Viena. Então, bateu para pedir emprego na primeira casa onde achou que viveria com prazer, e quando lhe perguntaram o que sabia fazer, ela disse apenas a verdade: "Sonho". Só precisou de uma breve explicação à dona da casa para ser aceita, com um salário que dava para as despesas miúdas, mas com um bom quarto e três refeições por dia. Principalmente o café da manhã, que era o momento em que a família sentava-se para conhecer o destino imediato de cada um de seus membros: o pai, que era um financista refinado; a mãe, uma mulher alegre e apaixonada por música romântica de câmara9 e duas crianças de onze e nove anos. Todos eram religiosos, e portanto propensos às superstições arcaicas, e receberam maravilhados Frau Frida com o compromisso único de decifrar o destino diário da família através dos sonhos.

Fez isso bem e por muito tempo, principalmente nos anos da guerra, quando a realidade foi mais sinistra que os pesadelos. Só ela podia decidir na hora do café da manhã o que cada um deveria fazer naquele dia, e como deveria fazê-lo, até que seus prognósticos acabaram sendo a única autoridade na casa. Seu domínio sobre a família foi absoluto: até mesmo o suspiro mais tênue dependia da sua ordem. Naqueles dias em que estive em Viena o dono da casa havia acabado de morrer, e tivera a elegância de legar a ela uma parte de suas rendas, com a única condição de que continuasse sonhando para a família até o fim de seus sonhos.

Fiquei em Viena mais de um mês, compartilhando os apertos dos estudantes, enquanto esperava um dinheiro que não chegou nunca. As visitas imprevistas e generosas de Frau Frida na taberna eram então como festas em nosso regime de penúrias. Numa daquelas noites, na euforia da cerveja, sussurrou ao meu ouvido com uma convicção que não permitia nenhuma perda de tempo.

— Vim só para te dizer que ontem à noite sonhei com você — disse ela. — Você tem que ir embora já e não voltar a Viena nos próximos cinco anos.

Sua convicção era tão real que naquela mesma noite ela me embarcou no último trem para Roma. Eu fiquei tão sugestionado que desde então me considerei sobrevivente de um desastre que nunca conheci. Ainda não voltei a Viena.

Antes do desastre de Havana havia visto Frau Frida em Barcelona, de maneira tão inesperada e casual que me pareceu misteriosa. Foi no dia em que Pablo Neruda pisou terra espanhola pela primeira vez desde a Guerra Civil, na escala de uma lenta viagem pelo mar até Valparaíso. Passou conosco uma manhã de caça nas livrarias de livros usados, e na Porter comprou um livro antigo, desencadernado e murcho, pelo qual pagou o que seria seu salário de dois meses no consulado de Rangum. Movia-se através das pessoas como um elefante inválido, com um interesse infantil pelo mecanismo interno de cada coisa, pois o mundo parecia, para ele, um imenso brinquedo de corda com o qual se inventava a vida.

Não conheci ninguém mais parecido à idéia que a gente tem de um papa renascentista: glutão e refinado. Mesmo contra a sua vontade, sempre presidia a mesa. Matilde, sua esposa, punha nele um babador que mais parecia de barbearia que de restaurante, mas era a única maneira de impedir que se banhasse nos molhos. Aquele dia, no Carvalleiras foi exemplar. Comeu três lagostas inteiras, esquartejando-as com mestria de cirurgião, e ao mesmo tempo devorava com os olhos os pratos de todos, e ia provando um pouco de cada um, com um deleite que contagiava o desejo de comer: as amêijoas da Galícia, os perceves do Cantábrico, os lagostins de Alicante, as espardenyas da Costa Brava. Enquanto isso, como os franceses, só falava de outras delícias da cozinha, e em especial dos mariscos pré-históricos do Chile que levava no coração. De repente parou de comer, afinou suas antenas de siri, e me disse em voz muito baixa:

— Tem alguém atrás de mim que não pára de me olhar.

Espiei por cima de seu ombro, e era verdade. Às suas costas, três mesas atrás, uma mulher impávida com um antiquado chapéu de feltro e um cachecol roxo, mastigava devagar com os olhos fixos nele. Eu a reconheci no ato. Estava envelhecida e gorda, mas era ela, com o anel de serpente no dedo indicador.

Viajava de Nápoles no mesmo barco que o casal Neruda, mas não tinham se visto a bordo. Convidamos para mulher a tomar café em nossa mesa, e a induzi a falar de seus sonhos para surpreender o poeta. Ele não deu confiança, pois insistiu desde o princípio que não acreditava em adivinhações de sonhos.

— Só a poesia é clarividente — disse.

Depois do almoço, no inevitável passeio pelas Ramblas, fiquei para trás de propósito, com Frau Frida, para poder refrescar nossas lembranças sem ouvidos alheios. Ela me contou que havia vendido suas propriedades na Áustria, e vivia aposentada no Porto, Portugal, numa casa que descreveu como sendo um castelo falso sobre uma colina de onde se via todo o oceano até as Américas. Mesmo sem que ela tenha dito, em sua conversa ficava claro que de sonho em sonho havia terminado por se apoderar da fortuna de seus inefáveis patrões de Viena. Não me impressionou, porém, pois sempre havia pensado que seus sonhos não eram nada além de uma artimanha para viver. E disse isso a ela.

Frau Frida soltou uma gargalhada irresistível. "Você continua o atrevido de sempre", disse. E não falou mais, porque o resto do grupo havia parado para esperar que Neruda acabasse de conversar em gíria chilena com os papagaios da Rambla dos Pássaros. Quando retomamos a conversa, Frau Frida havia mudado de assunto.

— Aliás — disse ela —, você já pode voltar para Viena.

Só então percebi que treze anos haviam transcorrido desde que nos conhecemos.

— Mesmo que seus sonhos sejam falsos, jamais voltarei — disse a ela. — Por via das dúvidas.

Às três, nos separamos dela para acompanhar Neruda à sua sesta sagrada. Foi feita em nossa casa, depois de uns preparativos solenes que de certa forma recordavam a cerimônia do chá no Japão. Era preciso abrir umas janelas e fechar outras para que houvesse o grau de calor exato e uma certa classe de luz em certa direção, e um silêncio absoluto. Neruda dormiu no ato, e despertou dez minutos depois, como as crianças, quando menos esperávamos. Apareceu na sala restaurado e com o monograma do travesseiro impresso na face.

— Sonhei com essa mulher que sonha — disse.

Matilde quis que ele contasse o sonho.

— Sonhei que ela estava sonhando comigo disse ele.

— Isso é coisa de Borges — comentei.

Ele me olhou desencantado.

— Está escrito?

— Se não estiver, ele vai escrever algum dia — respondi. — Será um de seus labirintos.

Assim que subiu a bordo, às seis da tarde, Neruda despediu-se de nós, sentou-se em uma mesa afastada, e começou a escrever versos fluidos com a caneta de tinta verde com que desenhava flores e peixes e pássaros nas dedicatórias de seus livros. À primeira advertência do navio buscamos Frau Frida, e enfim a encontramos no convés de turistas quando já íamos embora sem nos despedir. Também ela acabava de despertar da sesta.

— Sonhei com o poeta — nos disse.

Assombrado, pedi que me contasse o sonho.

— Sonhei que ele estava sonhando comigo disse, e minha cara de assombro a espantou.

— O que você quer? Às vezes, entre tantos sonhos, infiltra-se algum que não tem nada a ver com a vida real.

Não tornei a vê-la nem a me perguntar por ela até que soube do anel em forma de cobra da mulher que morreu no naufrágio do Hotel Riviera. Portanto não resisti à tentação de fazer algumas perguntas ao embaixador português quando coincidimos, meses depois, em uma recepção diplomática. O embaixador me falou dela com um grande entusiasmo e uma enorme admiração. "O senhor não imagina como ela era extraordinária", me disse. "O senhor não resistiria à tentação de escrever um conto sobre ela". E prosseguiu no mesmo tom, com detalhes surpreendentes, mas sem uma pista que me permitisse uma conclusão final.

— Em termos concretos — perguntei no fim —, o que ela fazia?

— Nada — respondeu ele, com certo desencanto. — Sonhava.

Março de 1980

O texto acima foi extraído do livro "Doze Contos Peregrinos", Editora Record — Rio de Janeiro, 1999, pág. 89.


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