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Enquanto eles não vêm

Luciano R. M.

vira-latas
Eu gostaria de ser mais corajoso. Eu gostaria de ter feito algo que não esconder-me com meu caderno e ficar em silêncio. Eu gostaria de ser mais corajoso e ter feito algo- ter gritado, ter chorado, até mesmo ter amaldiçoado aos sussurros.
Mas eu não fiz nada. Não tive forças para fazer nada, apenas fiquei em silêncio, escondido. Como um rato. Um rato em uma chaminé. Um rato que deixou seu bando ser apanhado por um gato, um grande e gordo gato.
Fui o único que eles não levaram: fui rápido o suficiente para esconder-me e, aparentemente, o fiz melhor do que todos os outros. De meus pais e esposa, apenas restam os gritos, que ecoam dentro de minha cabeça, que transformam-se lentamente de rogos em acusações.
Mas o que eu teria feito? O que eu poderia fazer? Nunca fui um homem forte, nunca fui um homem de ação: sempre observei e abandonei-me a reflexões, mas nunca tomei uma decisão, nunca lutei. Eu poderia acabar morto, eu poderia fazer com que aqueles que eu queria proteger fossem mortos.
Não há dúvida de que eles podem morrer, e eu me tornar viúvo e órfão apenas por ser demasiado covarde, por ter preferido ficar encolhido em meu buraco com meu caderno e meus poemas à tentar salvá-los. Mas assim eles certamente tem algum tempo. Eles certamente tem alguma chance. Se eu tivesse tentado salvá-los eu morreria e eles morreriam: não haveria então nenhuma esperança.
Ou talvez isso tudo sejam apenas vãs justificativas para minha covardia, para meu medo. Eu não agi pois temi aumentar o perigo? Ou foi apenas pela minha própria segurança que eu prezei? Quiçá seja pior ainda- eu sou um homem mau e egoísta, eu prezei pelo meu orgulho: não queria a humilhação de falhar em protegê-los, não queria humilhação de que os fatos mostrassem o quanto sou fraco, o quanto sou inepto para o mundo eminentemente físico em que vivemos.
Não sei porque eu fiz isso. Ou melhor, não sei porque não fiz nada. Podem ter sido todos esses motivos, pode não ter sido nenhum. Mas, agora, eu me arrependo. Agora eu me escondo com meu caderno e escrevemo meus poemas e me arrependo. Entre quatro paredes e cheio de fuligem, eu me arrependo.
Eu queria ter tido coragem. Coragem para cuidar, para proteger, para dizer alguma coisa. Queria ter sido mais homem. Mas eu agi como um garotinho assustado, e, agora, sabe-se lá se não é tarde demais.
Restam-me os poemas: eles não servem de nada, nunca serviram e nunca servirão. É tolice pensar que a poesia pode lutar contra o medo, contra o horror, contra a morte. O mundo não se importa com um punhado de versos, o mundo não se importa se eu organizo as palavras de modo belo e crio um sentido superior: o cheiro da fuligem é mais forte, o gosto de sangue na boca é mais forte.
E eu, eu nunca fiz nada, nunca tive coragem para nada. A poesia foi a minha chaminé. Agora foi superada.
Não tenho nada para comer, não tenho nada para beber. No começo eu chorava, agora meus olhos estão secos. No começo eu gemia, agora minha dor é silênciosa. Quase não tenho mais forças. Abandonei os cadernos em algum buraco na parede, não os encontrei mais: é certo que não procurei.
Eu queria poder, ao menos, procurá-la. Ela. Mas deve ser tarde demais, foi levada e nunca mais voltará. E eu não tive forças para protegê-la, para cuidar dela, para escondê-la. Eu poderia ter tentado lutar, eu poderia ter morrido tentando. Seria melhor do que escrever, seria mais poderoso do que qualquer poesia. Apenas o sangue derramado tem poder, tudo que se escreve são apenas mentiras, são apenas sonhos.
E eu estou acordado, coberto em fuligem. E eu estou acordado, coberto em fuligem e sozinho. Quanto tempo mais até que me descubram? Ou será que morrerei de fome, de frio, de tristeza, antes? Nunca fui um homem forte.
Nunca fui um homem forte, mas achava que era corajoso. Agora sei que não. Agora sei que fui incapaz de mover um dedo em nome daqueles com os quais eu supostamente me importo, agora sei que falhei- uma vez mais.
Orgulho e covardia, é tudo o que eu sou. E a marca maior disso é a poesia: poetas são todos covardes, literatos são todos uns idiotas. Eu sempre tive medo de viver e por isso me refugiei na escrita. Eu sempre tive medo de ser alguma coisa e, por isso, criei ilusões.
Quanto tempo mais até que eles venham e me encontrem, ou será que vou morrer antes? Morrerei de fome, de frio, de tristeza. Nunca fui um homem forte. Tampouco tive coragem algum dia.
Agora, só resta o arrependimento. Mas ouço passos. Talvez ainda haja tempo. Talvez.
 

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