Livro: Odisséia
Provavelmente dispensa apresentações essa obra do nosso querido Homero, mas também provavelmente é uma injustiça a ausência dela aqui no Cantinho dos Críticos.
Assume-se que tenha sido elaborada (cantada - a escrita ainda vai demorar um pouco para chegar) por volta do século VIII a.C.. Elementos de uma obra anterior, interpolações posteriores, ou mesmo um capítulo inteiro de autenticidade contestada encontram-se na Odisséia.
O ritmo da obra não obedece, naturalmente, aos nossos padrões contemporâneos, e por vezes ela soa prolixa. Não obstante, perdeu parte substancial de sua musicalidade.
Mas eu pergunto: e daí? Isso não compromete a obra. Recursos estilísticos, jogos de palavras, costumes da época, estão todos lá, bem como as regiões, ainda em seus devidos lugares na Grécia, e as crenças de um povo. Não suas lendas, mas sua história.
Idealizada e exagerada? Sim, mas e daí se até hoje é assim? Também nós temos heróis forjados, locais míticos e místicos. De Tiradentes a Beowulf, Camelot, cavaleiros em armaduras resplandecentes... Bruxas [e estas existiram. Covença as pessoas lá da Idade Média do contrário]. Rambos, o mito da "Resistência Francesa" na Segunda Guerra; convenhamos, não é só ao passado distante que tais exageros estão restritos.
Vê-se refletido nesses mitos as aspirações dos povos, ou os medos. De Héracles, que supera a mortalidade humana ascendendo a deus ao orgulho ferido de uma França há 50 anos. Heróis que continham toda a firmeza, honestidade, força e vontade que todo o resto dos helenos desejavam possuir; retratos dos valores; uma 'fuga da realidade', que com tanta freqüência buscamos hoje, ou mesmo uma fuga ao passado, seja a infância ou mais além.
Os helenos acreditavam de fato nas músicas de seus aedos. Por que desmerecer suas crenças? Por que eram pagãos? Por que também seus deuses geravam filhos mortais? Por que também eles creditavam aos deuses o que lhes era desconhecido? Sério, sem querer mesmo entrar na questão da religião, mas só pra fazer pensarmos um pouco: que moral temos nós para afirmar que nosso sistema religioso é superior ao deles? É uma questão puramente de fé.
Falando em deuses, eles estão lá na Odisséia, mas não de uma forma tão aparente quanto na Ilíada [que eu estou citando mas não li...
] A única deusa olímpica que dá as caras é Atena, mas mesmo assim na maioria das vezes assumindo a forma de um mortal, ou através de sonhos. Os outros deuses estão mais distantes, ainda que não alheios aos acontecimentos, e a ira de Posêidon é bem evidente.
Nosso industrioso herói é rei, e um bom governante; ama sua esposa e filho; é forte, valente, grande guerreiro, destaca-se nos jogos, mas, mais do que uma máquina de subir e descer a espada, mais do que um grande guerreiro matador, Odisseu é sagaz. É esse o seu diferencial sobre todos os demais; representa a vitória da inteligência sobre o força bruta. Ele é extremamente loquaz, e, importante, filho de mortais. Ele não chora à sua mãe porque lhe tomaram a escreva, nem faz pirraça porque seu ego é grande demais.
Quando convocado à guerra, vê-se entre o desejo de grandes feitos, de pôr a prova seu valor, e o desejo de permanecer em sua amada Ítaca rochosa, com seus também amados esposa e filho há pouco nascido. Escolhe a segunda opção e, surpreendentemente, fracassa em seus ardis.
E, sobre a guerra, limitar-me ei a falar o seguinte: predisseram que, para Tróia ser tomada, os helenos precisavam de Aquiles, do Paládio de Atena, encerrado em Ílion, das flechas de Héracles, então com Filoctetes. (matar o rei da Trácia e roubar seus cavalos fica fora da lista, né?) Foi Odisseu quem levou o filho de Peleu à guerra, e foi ele quem, com a ajuda do astuto Diomedes, realizou as outras tarefas. Ah, sim, tem o Cavalo de Tróia também... Em suma: os helenos precisavam de Odisseu.
[Detalhe: esses dois últimos parágrafos não são narrados na Odisséia]
O mais interessante sa Odisséia é que, caramba, ela tem 2.800 anos de idade e nós ainda a lemos; ela não é um documento arcaico, ela transcendeu essa função: ela é uma obra literária. Permeada de valores, desejos e receios comuns a nós, do século XXI.
Poxa, é realmente fascinante isso.
Devemos achar que ainda não nos distanciamos significativamente de nossas raízes greco-latinas, ou seja, que a despeito das revoluções tecnológicas, nossa mentalidade ainda é muito próxima à da Grécia Antiga? Ou que interpretamos os valores do texto de uma forma substancialmente diferente? Ou, ainda, que a despeito do tempo decorrido, ou das revoluções tecnológicas e "mentais", tais valores são inerentes ao ser humano, imutáveis?
Bem, finda a guerra, o Laércio inicia sua jornada de volta que, mal sabia ele, duraria dez anos. Não vou falar o que aconteceu; isso dá pra achar em qualquer lugar. Basta saber que angariou o ódio imortal de Posêidon ao cegar o filho querido deste, Polifemo, só porque o ciclope quis matar Odisseu, veja só.
E é o Sacudidor da Terra quem faz nosso bravo herói errar sobre o brumoso mar em sua côncava nau. O mar. Alguns afirmam que a Odisséia é uma ode ao mar. E interessante que ainda hoje que ainda hoje o mar nos é em grande parte desconhecido, e sua imprevisibilidade nos assusta. E é entre escarcéus que o Rasamuros navega errante. O mar é ao mesmo tempo sua esperança de voltar para casa e seu impedimento, sua perdição por longo tempo. Chega sem nenhum dos companheiros à ilha de Calipso, onde permanece por anos, e onde "gastava a doce vida, os olhos nunca enxutos", tendo ao seu lado uma imortal, em tudo superior à Penélope, e que fa-lo-ia imortal também. Mas ele rejeita tudo isso. Lá, ele não chora por um orgulho ferido, mas por sua impotência, pela felicidade que, dia após dia, lhe é privada.
E os deuses parecem tê-lo abandonado. Especula-se que houvesse uma certa 'zona de influência' de cada um dos deuses. Como o mar era domínio de Posêidon... Somente após longo tempo, mediante um 'conselho olímpico', Palas pode intervir diretamente em favor do devastador de Ílion.
Mas não é só de Odisseu que o livro trata. É da maturidade que do Laércio o filho, Telêmaco deiforme, sai em busca, em sua empreitada aos salões de Menelau e Nestor. Há a sensata Penélope, "modelo de fidelidade conjugal", opondo-se a adúltera Helena e a assassina Clitemnestra; bela e também ela sagaz.
Poxa, e quando finalmente em Ítaca, após 20 anos, ao encontrar uma estranha (Atena disfarçada), Odisseu mantém-se desconfiado, tipo, está sempre alerta, sempre maquinando, sempre escondendo algo, sempre prudente. Cara, ele simplesmente não consegue parar e relaxar, está sempre se policiando. [a frase da Glaucópide merece ser citada: "Se aos mortais no juízo te avantajas, / Eu me avantajo aos deuses"]
Para não chatear muito mais, só mais uma consideração: já imaginaram como ele deve ter se sentido quando a Icária duvidou, após tudo acertado, que ele era mesmo seu esposo? Há aí o outro lado da moeda: também Penélope foi condicionada, pelos anos de sofrimento, a duvidar.
Odisseu esperava ser abraçado, reconhecido de primeira, naturalmente! Em que deve ele ter-se apoiado durante todo esse tempo? O desejo de viver por si, creio, não seria suficiente. Não obstante, ele sabia que sua esposa estava lá, que tinha sido fiel e que ainda o aguardava. Mas e Penélope, que apoiava-se numa esperança? E é interessante que nesse capítulo do reencontro, que, após esse não reconhecimento, Odisseu parece meio que chutar o balde, jogar tudo pro alto. Tipo, como se não tivesse mais força pra continuar, como se tivesse recebido um golpe de onde menos esperava. Bom, eu assim interpretei.
E pra fechar, há a bela imagem de a madrugada sendo prorrogada.