Eu assisti esse vídeo e ele faz uma análise muito boa da obra. Também irei deixar um outro vídeo que considero excelente.
Até é interessante, embora esteja eivada com um espirito mérito-empreendedor que corrompe a relação saber-experiencia/teoria-prática, transformando-os em polos opostos e irreconciliáveis, e isto de rejeitar uma única e generalizante "noção de verdade" é um pressuposto de qualquer obra literária, mesmo a mais vagabunda, e, portanto, nem pode ser considerada o resultado de uma análise critica
per si.
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O ambiente onírico, os jogos de palavras, os personagens bizarros e os elementos recorrentes (o "quem é você?" da lagarta ou os "coma-me" ou "beba-me" mágicos) fazem de
Alice uma vitima ideal para versões fílmicas e teatrais. Justamente por estas razões, quem se dispusesse a comparar as películas produzidas por épocas e diretores distintos, encontraria farto material de caráter ideológico sutilmente contrabandeado dentro do prestigio gozado pela obra-prima de Carroll. Darei um exemplo a seguir.
A animação produzida nos "anos dourados" da década de 50 pelos estúdios Walt Disney tem forte apelo ainda hoje no imaginário de muita gente, e tenho de confessar que o meu primeiro contato com o País das Maravilhas se deu através deste clássico. O tema de abertura, tanto no original quanto na dublagem brasileira, bem como as outras canções criadas especialmente para o filme e os poemas de Lewis adaptados musicalmente, são, na minha opinião, o trunfo maior do espetáculo. Os demais aspectos, porém, mostram-se inegavelmente problemáticos.
DOIS REIS
No livro de Carrol, não há nenhuma indicação quanto à altura do rei de copas, ficando subtendido a irrelevância desta informação na história, tanto é que John Tenniel desenhou o rei com uma altura normal, e mesmo uns centímetros superior à rainha, em vista de que o homem tende a ultrapassar, por um fenômeno puramente biológico, a mulher em termos de estatura -- em todo caso a diferença entre ambos é inessencial: a rainha é intempestiva e o rei é mais apaziguador, mas o humor da trama provém exclusivamente do
nonsense em que Alice está mergulhada, sendo o imanente absurdo da coisa toda o responsável por temperar a mania (ou a loucura) individual de cada personagem.
Na animação de 1951, num período já imerso pelas "perigosas" rebeliões feministas e/ou de reivindicação da igualdade entre gêneros, a imagética trazida por Walt Disney deixa patente um elemento estranho ao livro original: a discrepância enorme da altura do monarca ao lado da rainha de copas. O fato de aqui ser apresentado um rei "nanico" configura uma infiltração ideológica, a qual tem por intuito representar, através de uma sutil satirização, a aberração e o ridículo que é uma mulher sobrepujando (literal e simbolicamente) um homem.
A sátira é uma forma específica do humor, e como tal visa provocar o riso por meio da interposição do que é em face do que deveria ser. A Alice de Carrol não pode ser considerada uma história de viés satírico, pois este modelo requer uma sociedade onde leis gerais válidas de procedimento, acordadas por todos seus membros (seja de forma escrita ou verbal) choquem-se com a conduta real do sujeito. Um juiz do parlamento britânico, de caráter corrupto, falastrão e que deturpe à norma em favor de seus interesses escusos, presta-se-á como um excelente material satírico; o tribunal composto pelos bichos na Wondeland, por seu turno, remetem muito fracamente a qualquer tensão satírica, porquanto inexistem leis estáveis e amplamente reconhecidas por seus membros.
Nesse momento o rei, que por algum tempo estivera escrevendo atarefado em seu bloco de anotações, gritou: "Silêncio!" e leu de seu bloco: "Regra quarenta e dois. Todas as pessoas com mais de um quilômetro e meio de altura devem se retirar do tribunal.
"
Todos olharam para Alice.
"Não tenho um quilômetro e meio de altura", disse ela.
"Tem sim", disse o Rei.
"Tem quase três quilômetros", acrescentou a Rainha.
"Bem, seja como for, não vou sair", disse Alice; "aliás, essa regra não é válida: você acaba de inventá-la"
"É a regra mais antiga do livro", observou o Rei.
"Então deveria ser a Número Um", disse Alice
O rei ficou pálido e fechou seu bloco rapidamente.[...]
Neste sequência do tribunal, torna-se evidente a nula importância de normas morais ou da própria hermenêutica jurídica -- o rei de copas sai incólume e tranquilo da grave acusação de arbitrariedade (
"essa regra não é válida: você acaba de inventá-la"), para acabar envergonhado por uma objeção puramente lógica acerca da ordem cronológica das regras. Se, como diz o gato de Cheshire, naquele país todo mundo é maluco, então lá também concretiza-se a teoria das mônadas de Leibniz, onde cada qual vive isolado dos demais, presos em sua própria lógica estrita,
sem jamais formarem relações que não sejam acidentais. O chapeleiro, a lebre e o caxinguelê unem-se apenas pela corrente implacável da lógica do chá interminável, ou seja,
um evento lógico -- pois rotineiro -- os unem, mas não faz deles amigos, colegas ou companheiros. Hannah Arendt, ao divisar os mecanismos dos aparelhos totalitários estatais nazista e stalinista, localiza justamente na pura lógica o modus operandi capaz de fornecer a manutenção do terror total, assim, poder-se-á pensar que o sonho de Hitler era suplantar a Alemanha por um País das Maravilhas, local onde todos são loucos (guiados pela lógica) e, moto contínuo, não há nem Verdade nem relações afetivas reais, senão castas e classes -- na melhor das hipóteses.
O diminuto rei de copas da animação de 1951, por sua vez, escamoteia uma latente veia satirizante e, convenhamos, extremamente deslocada do contexto da obra de 1865. Em Lewis há um rei e uma rainha de copas, ponto; com a Disney existe um rei e uma rainha, que desembocam numa representação de marido e esposa e, em última instância, homem e mulher. O protagonismo feminino e independente de Alice (ao contrário da maioria massacrante de heroínas cinematográficas dos estúdios Disney, Alice prescinde de par romântico, já que ela nem é princesa de nascimento nem plebeia por destino, mas tão somente uma garotinha comum da classe média vitoriana) provavelmente incomodou os diretores da época e, afim de "neutralizar" o impacto de uma fêmea solta vivendo aventuras sem a tutela de nenhum macho, canalizou-se para a figura do rei de copas a expressão máxima do recalque masculino frente ao movimento crescente das lutas femininas.
Aqui traduz-se em redução drástica de estatura o que foi percebido (in)conscientemente como pouca virilidade do rei de copas, o qual, por nunca promover altercações com a rainha, por deixar que ela interrompa suas ponderações com gritos súbitos de "cortem-lhe a cabeça!",
é tachado sutilmente de fraco e submisso através de seu encolhimento físico e, por conseguinte, tal característica torna-se índice mesmo de seu encolhimento moral.
A sátira e a ideologia se infiltram aí,
pois se um homem domina uma mulher, ou isto é tratado como algo natural ou como trágico. Uma mulher subjugando um homem é sempre tratado de forma cômica. Esta fórmula, com a qual encerro meu comentário, pode ser observada em toda sua plenitude logo nas páginas iniciais do
Livro das Mil e uma Noites, na história em que o pai de Sherazade, vizir do cruel Xariar, emprega para dissuadi-la do intento de casar-se com o sultão.