É consenso entre os críticos machadianos que nos textos do escritor fluminense nada é aleatório. Esse, talvez, seja um dos motivos pelos quais os textos deste Bruxo despertem, tanto, a nossa curiosidade e, claro, nos deixem sem rumo. Memórias póstumas de Brás Cubas, ainda bem, é uma fonte inesgotável de maravilhosas interpretações literárias. E as argumentações que melhor se sustentam são as que partem deste já tão comentado, mas que não pode ser esquecido, narrador.
Aqui, recorro a Roberto Schwartz, que chama Brás Cubas de narrador volúvel, que muda de assunto com a velocidade de um piscar de olhos, que insulta o leitor, e que tem todo o poder narrativo para passar por escolas literárias e tradições filosóficas de modo superficial e voltar ao vazio, porque esta é a FORMA do livro. E isso tem um propósito: colar a forma do romance: fragmentado — com adornos que encobrem vazios — à constituição da sociedade brasileira.
Os adornos, os arroubos filosóficos vazios são a elite — forjada pela farsa, pela parecença, da qual nasceu a flor chamada Brás Cubas. E personagens açoitados por esta elite, violenta e que se ornamenta como cordial (vou acenar para o Sério Buarque, aqui), são, dentre tantos outros, Dona Plácida — que precisa se submeter aos caprichos da elite para sobreviver, mesmo que isso custe seu caráter e Eugênia, a flor da moita. É importante olharmos o epíteto da Eugênia, aqui, porque ele tem uma jogada muito típica do texto machadiano.
A locução adjetiva da moita esconde e revela mais do que conseguimos perceber numa primeira leitura. Inicialmente, entendemos que a ideia da moita, daquilo que fica escondido sob as plantas é a concepção espúria da moça, mas há mais coisas nesta moita: sob a fina flor da ironia oculta-se o significado do nome da Eugênia: boa raça, bons genes. (Eugenia?): ela era coxa. O Brás era um cretino hipócrita, como todo burguês safado. Ele "se safa" com reflexões vazias e já vai para outro "assunto"; já "sugou" dessa flor o que pôde.
E assim, Brás fica em um trampolim: vai de assuntos cotidianos, negócios miúdos, à metafísica, mas não se aprofunda em nenhum, porque a ideia é reforçar a nulidade. Melhor dizendo, a ideia é tecer um irônico elogio à mediocridade, o que, a meu ver, é o conselho que o pai dá ao filho, no conto "Teoria do medalhão". Em suma, o conto é um diálogo entre o pai e o filho, Janjão. O pai, que também protagoniza o conto, deseja que o filho seja um medalhão na sociedade, isto é, um figurão, uma pessoa importante. Então ele vai elencando conselhos para que o filho figure na sociedade e exerça "a arte de pensar o pensado", isto é, não se envolva, efetivamente, em nada, apenas dê um jeito de aparecer, de atrair publicidade, mas que evite quaisquer coisa que o faça pensar, ter ideias.
— Se for ao parlamento, posso ocupar a tribuna?
— Podes e deves; é um modo de convocar a atenção pública. Quanto à matéria dos discursos, tens à escolha: — ou os negócios miúdos, ou a metafísica política, mas prefere a metafísica. Os negócios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela chateza de bom-tom, própria de um medalhão acabado; mas, se puderes, adota a metafísica; - é mais fácil e mais atraente. Supõe que desejas saber por que motivo a 7ª companhia de infantaria foi transferida de Uruguaiana para Canguçu; serás ouvido tão-somente pelo ministro da guerra, que te explicará em dez minutos as razões desse ato. Não assim a metafísica. Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória. Em todo caso, não transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade.
(
Teoria do medalhão).
O conto acima faz parte de Papéis avulsos. Esta coletânea de contos, tal qual Memórias Póstumas, é uma divisora de águas e aponta para a fase da obra machadiana classificada como realista. O romance foi publicado em 1881 e o livro de contos em 1882. Na "advertência" do livro, o autor indica que este título de Papeis Avulsos parece negar ao livro uma certa unidade; faz crer que o autor coligiu vários escritos de ordem diversa para o fim de os não perder. A verdade é essa, sem ser bem essa. O crítico português Abel Barros Baptista comenta que, num primeiro sentido, "avulso" é o que foi arrancado do todo, a folha separada da coleção a que pertencia; mas "avulso" tem um outro sentido, cuja consideração é indispensável quando está em causa o livro: a folha que nunca integrou nenhuma coleção, nenhum conjunto, que nunca se destinou ao livro.
Tomo emprestadas essas reflexões sobre Papéis avulsos para compartilhar com vocês uma intuição. Não é novidade que a crítica recebeu mal as Memórias Póstumas num primeiro momento. Esse romance só começou a ser lido criticamente por ocasião do lançamento de Quincas Borba. E se vocês derem uma rápida passada de olhos pela fortuna crítica machadiana, verão que há dificuldade de encaixar as obras desse escritor, pós 1881, pura e simplesmente no Realismo.
A partir disso, da leitura de Memórias Póstumas que vocês fizeram/estão fazendo, dos comentários iniciais que fiz neste tópico e de demais leituras e conhecimentos que vocês têm sobre o Bruxo do Cosme Velho, o que me dizem de chamarmos, por ora, o Realismo machadiano de Realismo avulso? Parece-me que se trata de um realismo-folha que nunca integrou nenhuma coleção, nenhum conjunto, que nunca se destinou ao livro-regras do realismo como o concebemos.
Vocês acham que essa reflexão faz sentido? Em caso afirmativo, que pistas textuais, além das já apresentadas no tópico, vocês poderiam trazer para aprofundarmos essa reflexão?