Na página passada todo mundo parecia ter tanta certeza sobre qual é melhor e qual é pior, eu me sinto obrigado a dizer que na minha honesta opinião a série foi ficando progressivamente melhor, e sim, isso definitivamente inclui
Mostly Harmless.
O primeiro é legal, mas não é tão maduro, e ainda sofre pela narrativa episódica (a coisa começou como uma série de rádio, não?) e propositalmente* aleatória. *Sim, essa aleatoriedade reflete a ação do principal mecanismo de impulsão da narrativa (o Gerador de Improbabilidade), o que além de refletir as limitações do conhecimento do homem sobre a natureza do universo também funciona como um comentário metalingüístico sobre a dificuldade de se criar situações e resoluções em histórias fictícias, mas o fato é que isso cria uma distância emocional -- não dá pra se importar muito com ninguém ali já que eles estão sendo jogados de um lado para o outro por causa de eventos arbitrários, e não pelos seus próprios desejos e/ou buscas pessoais. Ainda é hilário, claro.
O segundo já melhora bastante, primeiro porque o Adams não tenta enfiar muita trama na história, deixando as cenas fluírem pelo tempo necessário (obviamente o extenso interlúdio no Restaurante vêm à cabeça), mas principalmente porque a partir do momento em que nós começamos a caminhar para uma "resolução", as coisas começam a ficar realmente
especiais: Zaphod, Trillian e Zarnwoop conhecem o Homem que Rege o Universo, e Arthur e Ford descobrem o segredo sobre as origens da civilização no Planeta Terra. Esses dois eventos em particular fazem a coisa dar um salto filosófico para um patamar que o primeiro livro não chega a atingir em nenhum momento. A imaginação do Adams continua maluca, mas agora ela está mais focada, menos ingênua e aleatória, com mais peso emocional. E sem perder um iota do humor (na verdade ele provavelmente evoluiu nesse sentido também).
E aí... o livro 3. É aqui que as coisas começam a ficar
chiques. Aqui o Adams não apenas cria uma narrativa muito mais focada e empolgante (na verdade ela é empolgante
por ser focada), com conflitos amarrados em um único ponto antagônico altamente desenvolvido (Krikkit (lol)), bem como esse ponto antagônico em si é um conceito extremamente original que ilustra de forma fantástica um dos temas principais da série: a idéia de que o Universo é uma questão de
perspectiva. Claro que isso já havia sido explorado desde o primeiro livro (com coisas como verbetes do Guia), passando pelo segundo (com o Vértice de Perspectiva Temporal (ou algo assim)), mas Krikkit leva essa idéia a lugares muito mais profundos, filosóficos, poéticos e (sim) emocionantes. Eu não vou me aprofundar nisso porque o objetivo desse post é simplesmente descrever as minhas preferências, e não fazer uma análise temática de coisa, mas basta dizer que a complexidade da frustração humana é proporcional ao avanço de suas descobertas. Em outras palavras, quanto mais se sabe, menos se sabe. (Isso tudo sem falar na evolução do Adams como escritor -- os neologismos humorísticos no capítulo 9 (aquele do colchão) fazem um interlúdio "irrelevante" se tornar uma das melhores e mais hilárias passagens da obra toda --, e na sua habilidade em criar conceitos fundamentalmente insanos que de alguma forma parecem fazer total sentido (
bistromática???))
O livro 4... eu entendo porque algumas pessoas têm uma certa impaciência com ele. É um desvirtuamento considerável nas prioridades narrativas, mas a apreciação desse desvirtuamento é uma questão de investimento por parte do leitor, já que tematicamente a história continua numa progressão totalmente coerente: ele ainda está falando da Vida, e esse tipo de coisa (amor/sexo) é uma parte importantíssima da Vida. Considerando ainda o tema da perspectiva que eu mencionei acima, fica claro que o desvirtuamento nas prioridades é completamente coerente: Arthur está apaixonado. Ele já viajou pelo Tempo e pelo Espaço, pelos confins do Universo, descobriu as origens da civilização humana, viu seu planeta ser destruído e depois o viu ressurgido como se nada tivesse acontecido, mas no momento ele está, digamos, pouco se lixando pra tudo isso. Fenchurch (
) é o Universo dele, o resto pode se ferrar. Também é um livro mais focado e conciso, mas os periféricos, apesar de mais esparsos e efêmeros, são extremamente inspirados (o "Deus da Chuva", "Wonko, o São" e o "asilo", a velha da rifa, a velha que vê os dois amantes na asa do avião, etc, etc, etc). Eu acho que consideraria esse equivalente ao terceiro.
E aí, depois de vários anos, o Adams lançou a obra-prima dele. É besteira não considerar Mostly Harmless parte da série. É definitivamente não só uma parte, mas também uma conclusão perfeitamente satisfatória. Em termos de ritmo é definitivamente o melhor dele, alternando de Ford para Arthur em momentos-chave, construindo uma narrativa muito mais controlada e elegante que em todo resto da série (eu que geralmente considero Pratchett superior nesse aspecto, acredito nesse aqui o Adams está no mesmo nível); e em basicamente todos os outros aspectos também é o melhor dele. Nunca os temas do Adams estiveram tão em evidência e apresentados de forma tão sincera, e nunca os personagens dele foram tão humanos. O mais importante é a dinâmica entre Arthur e Random (a menina se chama
Random!
), que funciona em pelo menos mais de um nível: em termos dramáticos trata-se obviamente do choque entre gerações ("filhos" sendo a próxima coisa na lista das "coisas que acontecem na vida" -- é por isso que esse é tão parte da série quanto os outros; a ênfase na confusão temporal é uma dica de que o Tempo é uma questão de perspectiva (saca?)), mas há mais por baixo da superfície: observe a ênfase na complexidade do trabalho artesanal (a paixão com que ele descreve o trabalho do Fazedor de Sanduíches é tão hilária quanto inspiradora), em contraste com a confusão e incerteza da vida moderna, personificada por Random. Repare na busca de Arthur, começando com uma perda terrível, passando por uma procura por respostas, chegando em uma estabilidade confortável, quebrada por uma descoberta quase igualmente terrível à perda anterior (só que de outra forma), gerando mais procura por respostas, e assim por diante. É a vida. Imperfeita, incerta, e definitivamente diferente de qualquer coisa que você tenha planejado. O único pensamento reconfortante é que você nunca vai entender nada completamente mesmo, então pra que se preocupar? Enfim, basicamente cada capítulo desenvolve algum conceito hilário/inspirado (Colin, o Pássaro-Guia, os Oráculos, esquilos, etc, etc, etc), mas o mais importante é que dessa vez os conflitos estão intimamente ligados à busca de Arthur por um sentido na vida, e os problemas são mais palpáveis e identificáveis. Na minha opinião.