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Há duas maneiras de se ler um livro. A primeira é pela história em si, pelo conteúdo, pelo que existe entre capas, não importando quem seja o autor ou o título da obra, deixando simplesmente que o leitor seja levado pela história e pelo jeito como ela é contada. A outra maneira é usar e abusar do material extra livro, analisando, por exemplo, o contexto em que foi escrito, a vida e outras obras do escritor, as críticas, resenhas e prêmios conquistados, bem como as fontes de inspiração. Em O filho eterno, livro de Cristovão Tezza, pode-se chegar a duas conclusões, dependendo do tipo de leitura escolhida. Veja uma breve explicação do porquê disso.
Se você ler O filho eterno como um romance
Na catalogação do livro, ele aparece como “romance brasileiro” e, portanto, deve ser lido como um romance, uma ficção, porque É uma ficção, mesmo que baseada em fatos reais. A ficção geralmente tem as pretensões de argumentar sobre pontos de vista comuns (ou incomuns), de educar, entreter, emocionar e para fazer pensar. Mas o principal – talvez até vital – objetivo da ficção é simplesmente contar uma boa história, que o leitor goste e que sinta vontade de ler de novo, de emprestar o livro para os amigos e parentes, e passe até a incorporar alguns trechos dela em sua vida, sentindo-se mais feliz por isso.
O livro de Tezza, sob esta ótica, poderia ser até uma grande lição de vida e um sucesso de público se não fosse extremamente comum. A história não traz novidades, seja em estilo, em escrita ou em originalidade. Lembrou-me o pensamento de um escritor (que não recordo o nome agora) e que já usei aqui antes: são poucas as histórias reais capazes de virarem bons livros, clássicos que resistirão ao tempo; e são menos ainda os escritores capazes de contar uma história simples transformando-a em um épico. E parece que Cristovão Tezza não consegue atingir estas situações no livro.
O principal fio narrativo da história começa nos anos 80 com um aspirante a escritor, que nunca teve emprego fixo na vida, que é sustentado pela mulher durante o período em que não publica nem vende nada, e que é surpreendido pela notícia do seu primeiro filho ter síndrome de Down. Já no hospital, no dia do nascimento, o pai assume o papel de anti-herói calhorda, hipócrita e insensível (ou simplesmente politicamente incorreto) ao rejeitar e menosprezar aquele filho diferente, o tratando como um estorvo para os seus planos de sucesso, liberdade e sociabilidade. Ele até torce para que o menino morra. E usa o repertório mais inimaginável de palavras para o filho que alguém em sã consciência jamais usaria: algo, a coisa, um ser insignificante, criança horrível, pequeno monstro, pedra inútil, deficiente mental, absolutamente nada, pequeno leproso, problema a ser resolvido, idiota, pequena vergonha, filho-da-puta.
A esposa, sempre chamada de ela, aparece em um papel secundário, ela é um meio para se chegar a um fim: sustentar ele enquanto não ganha dinheiro. Ou é a culpada por o filho ser diferente e tola por insistir nos tratamentos. Tanto é que o protagonista a toda hora se imagina largando a esposa e filho para recomeçar a vida sozinho, em outro lugar. Ele não conta como a conheceu, nem como se casaram, nem como ocorreu a gravidez e a gestação. Para ele, importa mais lembrar de uma paixonite adolescente que não deu certo. Mas a aversão dele não é só porque o menino é diferente, mas porque não queria filhos, indicando que a gravidez provavelmente não foi planejada e confirmando a hipótese ao mesmo tratamento insensível dispensado para a filha caçula, normal.
“A primeira criança de um casamento é uma aporrinhação monumental – o intruso exige espaço e atenção, chora demais, não tem horário nem limites, praticamente nenhuma linguagem comum, não controla nada em seu corpo, que vive a borbulhar por conta própria, depende de uma quantidade enorme de objetos (do berço à mamadeira, do funil de plástico às fraldas, milhares delas) até então desconhecidos pelos pais, drena as economias, o tempo a paciência, a tolerância, sofre males inexplicáveis e intraduzíveis, instaura em torno de si o terror da fragilidade e da ignorância, e afasta, quase que aos pontapés, o pai da mãe. É uma criança – como todo recém-nascido – feia . É difícil imaginar que daquela coisa mal-amassada surja como que por encanto algum ser humano, só pela força do tempo” (pg. 73-74).
Porém, a coisa muda, um pouco, antes da metade do livro. Tempo e a convivência fazem o pai olhar o filho diferente, comparando características e limitações do menino às que ele possui como pai, pessoa e escritor. Ele não admite mudar por causa do filho, mas que se resignou com a situação, como sempre fiz na vida.
O interessante é que muitas das limitações do filho descritas, como a limitação visual de dez metros, o trabalho e as motivações artísticas, o sexo, etc. como se o pai visse no filho exatamente aquilo que há dentro dele. As passagens a seguir são sobre o filho, mas poderiam ser sobre o pai.
“A criança parece não responder ao seu afeto; vive na sua própria redoma – parece que nada do que há em volta toca a ela de fato” (pg. 127).
“Ele não gosta do imperativo, nem mesmo para si próprio, ao espelho: ninguém me dá ordens. Um orgulho idiota, um pequeno teatro: passou a vida obedecendo, tentando se ajustar a alguma coisa que ele não sebe o que é” (pg. 199).
É uma tendência natural tomarmos partido pelos fracos e indefesos, ainda mais se o ataque é injusto. O humor (negro) que o protagonista repete várias vezes como a sua melhor característica, quando faz alguma observação mordaz, na verdade são sarcasmo e ironia egoístas de quem tem medo de enfrentar a realidade de frente.A antipatia que protagonista gera – fórmula perfeita com efeitos imediatos no leito no começo – cai quando o foco da trama se desloca para a ingenuidade do filho.
Além da relação pai e filho, é contada paralelamente as aventuras do pai quando jovem em Portugal (Coimbra), França (Paris) e Alemanha (Hauptbahnhof) como mochileiro que trabalhava em subempregos que conseguia só para ter o que comer e onde dormir, e que lia mais do que aproveitava o lugar. Ou, no Brasil, em um grupo de teatro interrogado por policiais durante a ditadura militar (em São Paulo) e quando se apaixona platonicamente pela primeira vez (em Antonina, Paraná). Tais passagens não acrescentam nada, talvez a vida da maioria dos jovens hoje seja mais emocionante.
O conformismo do pai, que durante a juventude desejava ser um rebelde bem ao estilo Nietzsche de ser, tenta justificar a perda de tempo que a sua vida sempre foi. Ser um marmanjo desempregado sustentado pela mulher é apresentado como não aderir ao sistema e persistir o sonho de tornar-se escritor. Mas cede ao sistema e vai trabalhar como professor público universitário. Não aceitar o filho deficiente, desejando que o menino morra ou abandonar a família para recomeçar sozinho em outro lugar são motivos para alegrá-lo em seus devaneios libertários. Mas só demonstram a vida e pensamento mesquinho do protagonista, quer ele reconheça ou não isso.
O ritmo do livro flui de maneira leve e ágil. Mas não é o suficiente para torná-lo um referencial. Ele usa e abusa da intertextualidade – as referências a outros livros, filmes, pinturas, desenhos animados, etc. – mas fora duas comparações mais acertadas (e perfeitas), como a da rotina diária do menino e a maldição de Sísifo e a do intelecto do filho ao dos bebês incubados em Admirável Mundo Novo, o restante é basicamente só citação.
O narrador, onipresente, alterna entre épocas, lembrando as desventuras do pai adolescente nos anos 70, vivendo o nascimento e crescimento do filho nas décadas de 80 e 90, terminando a história em 2006. A história principal começa com o pai tendo 28 anos e termina com o filho perto dessa idade. Os primeiros capítulos são quase seqüências de eventos, para depois ir se pulando dias, semanas, meses e anos.
O livro é escrito em capítulos que parecem contos reunidos, escritos aleatoriamente em épocas diferentes. Tanto é que capítulos poderiam ser retirados do livro sem que sentisse falta. Algumas características aparecem mais visíveis em alguns capítulos, indicando que foram escritos na mesma época. Um deles é o uso excessivo dos dois-pontos. No primeiro capítulo o escritor abusa deles, aparecendo até quatro vezes em um parágrafo. Inicialmente, pode até parecer uma forma particular de escrita de Tezza, uma marca registrada sua, assim como o faz José Saramago em seus romances, mas quando não aparece nos capítulos seguintes, só mais adiante (nas páginas 83 e 199) mostra que foi só uma febre de estilo passageira e não um recurso proposital.
Mas há pontos positivos, o livro não é de todo ruim. Por exemplo, o jeito escolhido para apresentar as informações médicas e científicas sobre a síndrome de Down é perfeita: ora o pai relembra uma dissertação de mestrado que revisou para um amigo geneticista, ora ele procura em dicionários, ora são os médicos que lhe explicam nas consultas. A história traz alguns lampejos filosóficos sobre a profissão de escritor, pinceladas históricas sobre a política e economia do Brasil nas décadas de 80 e 90 e sobre a revolução dos Cravos em Portugal, em 1976.
Se você ler O filho eterno como uma autobiografia
Tezza confessou que escreveu o livro baseado em sua vida. Ele tem um filho com síndrome de Down. Por isso, está sendo elogiado por ser cruelmente honesto em mostrar seus pensamentos e sentimentos mais íntimos, mesmo os que deixem o leitor contra ele. Mas, como citado antes, ao optar pela “autobiografia ficcionada”, não se pode encarar o livro como uma biografia, mas como um romance, uma ficção, sob o risco de cair em um laço feito pelo escritor. Por exemplo, se você acusar Tezza de ser ou ter sido um pai insensível, egocêntrico e mau-caráter, ele pode simplesmente sair pela tangente dizendo que esta parte foi ficção, inventada só para deixar a obra mais chamativa e não é a realidade. Até provaria esta afirmação arrolando os outros personagens que aparecem no livro como testemunhas de defesa, porque os pensamentos mesquinhos e egoístas do pai não são compartilhados com outros, são só pensamentos. Ninguém que conheceu Tezza na época do nascimento e crescimento do filho poderia dizer que ele era um crápula. Até porque no livro, o pai escritor mantém as aparências diante dos outros. “A idéia – ou a esperança – de que a criança vai morrer logo tranqüilizou-o secretamente. Jamais partilhou com a mulher a revelação libertadora” (pg. 39). Fica a eterna dúvida: Tezza, como pai, pensava realmente aquilo ou foi só ficção acrescentada para vender o livro? Se ele era daquele jeito, foi preciso coragem para se mostrar publicamente como ele era de verdade e ninguém sabia. Mas, se ele inseriu tais características só para tornar o personagem odioso, mas que inexistem nele, talvez seja a grande sacada do livro, e talvez da vida, do escritor.
Outro exemplo que poderia ser levantado, mas que, ao considerarem a obra como autobiografia, o crítico poderá ser acusado de ser um monstro tão grande quanto o personagem do livro: o protagonista, no livro, é um escritor que não alcança o sucesso a medida que os anos (e os livros) vão passando. Se a realidade foi assim, então agora, com os prêmios e o sucesso de O filho eterno, pode-se afirmar que só por causa dos problemas do filho que o pai finalmente saiu limbo literário. O escritor aproveitou-se de uma situação e pessoa real para faturar em cima. Não que isso seja errado. O problema é que nem todos pensam assim.
Os prêmios literários e elogios da crítica
Confesso que conheci o livro por causa da Segunda Copa de Literatura Brasileira. Lá, como na edição anterior, disputam entre si livros favoritos, azarões, perdidos no espaço e aspirantes. Tezza virou favorito quando começou a ganhar prêmios e mais prêmios literários e receber elogios da crítica. Mas em uma disputa entre O filho eterno e Música perdida, vencedor da CLB de 2007, meu voto continuaria com o do ano passado.
Existem pessoas que têm a seguinte opinião sobre as indicações: os bons filmes são aqueles que os críticos falam mal e os ruins são os elogiados. A regra é fazer o oposto, pois nem sempre os mais premiados são os mais gostosos de ver. Isso talvez se dê porque o ponto de vista do crítico tende a ser diferente do da maioria das pessoas. Não que um esteja errado e o outro certo, pois quando se fala em classificar entre o bom e o ruim, o belo e o feio, o vulgar e o divino, parte-se do subjetivismo, seja o crítico seja a pessoa comum. Talvez a mesma regra seja válida em literatura contemporânea.
Ficha técnica
obra: O filho eterno, de Cristovão Tezza
edição: 2ª, Record (2007), 222 pgs
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