Ana (e Cia.), nada contra preferir o Rodriguez (que eu ainda não vi), mas dizer que o Tarantino só fez homenagear a si mesmo em Death Proof é meio que passar atestado de não-entendi.
Eu entendo completamente alguém não gostar desse filme; ele é bizarro, lento, os diálogos são estilizados demais até pra Tarantino, etc. Mas tem coisas ali por baixo da superfície, e às vezes é só um caso de enxergar elas (se mesmo enxergando, o filme continua parecendo ruim, aí eu não posso fazer nada).
Enfim, o lance desse filme é como ele explora a temática. Não existem duas metades por acaso, e as duas metades não têm diferenças por acaso:
A primeira é a metade "grindhouse": Tarantino fazendo um símile de filmes exploitation tradicionais -- a imagem é suja, tem pedaços do filme "faltando", as mulheres só estão ali pra (spoiler) servir de vítimas, etc. É o Tarantino dizendo "esse é o tipo de filme que eu venho homenageando em toda a minha carreira, e todos eles eram mais ou menos assim" (claro que ele simplesmente não consegue não fazer algo muito mais sofisticado do que qualquer exploitation tradicional -- não existe, por exemplo, um filme "grindhouse" que use duração de forma tão enervante; geralmente eles vão direto ao ponto).
A segunda metade é o Tarantino justificando esse processo de apropriação de elementos do estilo para a produção de algo novo: é a partir do meio do filme que ele realmente começa a referenciar a si mesmo sem parar (na primeira metade alguém diz "Big Kahuna", mas é só isso), começando pelos personagens do KB fazendo aquele cameo. Reparem também que a partir daí a imagem fica limpa, não existem mais pedaços do filme "faltando", e as mulheres dessa vez não são vítimas, dando o troco pro vilão, que no final está agindo de forma completamente patética -- uma atitude inimaginável na primeira metade (não que ele seja um feminista, mas aqui o Tarantino está basicamente dizendo "no meu mundo, todo mundo pode brincar").
Outra coisa interessante a notar é que o primeiro grupo é composto de pessoas normais, e o segundo, de pessoas envolvidas com cinema. É o Tarantino explorando a mística criada em cima de pessoas que fazem parte desse mundo. Jungle Julia está apaixonada por um diretor que não dá bola pra ela (quando ele liga pra ela, o filme de repente pára, entra uma trilha romântica totalmente deslocada, etc). Na segunda metade, nós temos duas dublês (uma inclusive fazendo o papel dela mesma), uma atriz e... eu não lembro o que a Rosario Dawson é, exatamente, mas o importante é que ela está nesse mundo.
E o Stuntman Mike, como fica nessas? Bom, ele é um dinossauro, uma relíquia dessa época que o Tarantino está homenageando. Mas ele não está só homenageando (QED), a coisa é desvirtuada no final, fantasia machista vira algo completamente diferente (repare que a câmera não fica se alongando nos corpos das atrizes na segunda metade). De qualquer ângulo que você olhe, o vilão não é mais uma "pessoa cinematográfica" -- esteja ele mentindo ou não quando cita uma lista de trabalhos que fez, o fato é que ninguém ali ouviu falar de nenhuma dessas séries/filmes. Ele é a personificação de um cinema que não tem mais razão de existir -- em outras palavras, Tarantino está basicamente cometendo eutanásia cinematográfica.
Eu já vi o filme três vezes, e existem vários ecos entre os diálogos dos dois grupos (por exemplo: os dois falam de homens, mas o primeiro de forma mais ingênua -- "making out", etc). Eu não teria paciência de fazer uma análise mais aprofundada sem receber alguma espécie de compensação, mas acho que com o que tem aqui já dá pra brincar.