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Feijão e arroz

As memórias da infância invadiam a mente, um fluxo confuso e incessante. Aquele era o momento propício pra isso, acho. A maior parte delas não passava de borrões, distorcidos pelo espectro do tempo. Outras, a mínima parte, eram lembranças propriamente ditas: robustas, vívidas, banhadas de significado. E é remontando esses esparsos fatos ocorridos uns vinte anos atrás que acabo esboçando um sorrisinho irônico, para espanto de minha mãe sentada defronte meu leito.

Naquela época (dos meus nove ou dez anos), meus pais passavam por uma crise conjugal. Ou melhor, “a” crise conjugal. Aquela intransponível, que pôs um derradeiro ponto naquela convivência forçada pelos laços do matrimônio (como papai costumava dizer posteriormente). As ausências de meu pai eram cada vez mais rotineiras, ele se jogou no trabalho e nunca mais conseguiu emergir completamente.

A falta de uma figura paterna nunca chegou a me afetar, pelo menos não conscientemente. Mas a falta de uma figura marital afetava mamãe, e muito. Para o meu profundo terror, ela passou a canalizar as ausências de papai num cuidado excessivo comigo. Sem exagero algum. Aliás, “cuidado excessivo” já soa eufemístico perto do comportamento dela. Aquilo era uma obsessão, ela me tinha como um pequeno e frágil ídolo de ouro, que ela mesma lapidara com esmero e, com esse mesmo esmero, perseguia cada passo de minha vida. Era sufocante.

Das diversas situações capazes de figurar essa sociopatia de mamãe. Uma paira insistentemente e é a fonte de meu riso: nossos almoços. Foram nessas refeições que eu, no auge de minha perspicácia infantil, consegui perceber que havia algo errado com meus pais. Sentávamos um em frente ao outro e, entre nós, travessas de feijão, arroz e um silêncio significativo. Digo significativo por dois motivos. O primeiro deles era o fato de papai ter deixado de almoçar conosco, ele sempre almoçava em casa, na ponta da mesa. O segundo, e não menos relevante, era observável em minha mãe: ela tinha essa habilidade irritante de verter uma incontável torrente de palavras a qualquer tempo e sobre qualquer coisa, nenhuma banalidade escapava de seus monólogos. Mas ela se calara, não falava mais nada. Apenas comia, mecanicamente, aquilo depositado em seu prato. O silêncio dela não me incomodava, pelo contrário, sem o som de sua voz eu era capaz de concentrar atenções no meu próprio mundo. Pensando naquela época, chego a conclusão de que eu era provavelmente uma criança bem desagradável. Era insensível, não gostava de falar nem de qualquer outro tipo de interação social.

Só depois de ter saciado sua fome era que mamãe me olhava. Não com aquele olhar disperso, opaco. Me olhava como uma mãe olha pra um filho, e via não só o filho como seu prato ainda cheio. Era aí que o tormento iniciava.

“Alberto, você não sai dessa mesa enquanto não terminar o prato, e eu vou ficar aqui para assegurar isso!”, era sempre essa mesma ladainha. Eu resmungava qualquer coisa e continuava brincando com o garfo. Acho que já ficou evidente que eu não gostava de comer (encontrava-me magro como um graveto). Era uma tarefa enfadonha e ditada por convencionalismos baratos. Só que mamãe não compartilhava da mesma opinião.

Seu aviso dava início a nossa pequena contenda. Passávamos minutos trocando olhares repletos de eloquência, os de mamãe representando um misto de autoridade e raiva e eu, bem, eu não fazia a mínima questão de olhar nos seus olhos, mas quando assim o fazia, tentava esboçar a mais pura provocação de rebeldia. No fim, tudo aquilo se resumia a um teste de paciência e, na maioria das vezes, eu saia vitorioso. Mamão se empertigava depois de ficar uns vinte minutos olhando para minha completa inércia, esbravejava alguma imprecaução, tomava o garfo de minha mão e passava a forçar a comida na minha goela.

A partir daí, eu comia. Já tinha provado meu ponto mesmo: a superioridade de um garoto de dez anos perante uma mulher já feita, de seus trinta e poucos anos. Pois é, aquilo era um sadismo terrível de minha parte. Não consigo muito bem distinguir o porquê disso, nem mesmo hoje. Mas vê-la perder o controle daquele jeito era um tanto prazeroso.

E nossa rotina assim seguia. Uma mulher desnorteada pelos contratempos da vida, cujo único ponto cardinal era seu filho e, o garoto por sua vez, uma criança introspectiva e insatisfeita (contra todos os paradigmas da idade), talvez uma alma envelhecida num sustentáculo lépido.

Um desses almoços, porém, permanece latente nas veredas de minha memória. Papai e mamãe já deviam encarar o divórcio como iminente. O clima lá em casa estava bem pesado. No dia em questão, cheguei da escola num ímpeto de revelia ainda maior. Não tinha acontecido nada de peculiar, só estava com vontade de chatear mesmo. Pois bem, ela fez meu prato, sentou defronte a mim e começou a mastigar sua refeição. Eu não toquei no prato.

“Alberto, meu filho, pelo menos hoje coma seu almoço sem que eu precise gritar ou tomar qualquer outro tipo de atitude.”, havia quase um tom de súplica na voz dela. Aquilo era atípico, um presságio dum descontrole maior que os ordinários. Não preciso nem mencionar que isso despertou ainda mais a maldade destilada da manhã na escola. Nada respondi, apenas encarei sua triste face.

Não precisei esperar muito para constatar qualquer reação da parte dela. Começou num soluço seco depois, com as duas mãos no rosto, transformou-se numa torrente de pesadas lágrimas. Aquilo era inédito, nunca tinha visto minha mãe chorar. Mamãe não chorava, não podia chorar. Aquilo me despertou para algo novo. Pela primeira vez na vida senti algo como compaixão pelo meu próximo. Um sentimento de humanidade. Não sei o que deu em mim, mas ver mamãe daquele jeito, indefesa e carente me fez sentir triste. Senti um frio nas entranhas e um pesado nó na garganta. Antes que percebesse, caia também de meus olhos umas gotinhas salinas de lágrimas. Numa espécie de reflexo involuntário comecei a comer a mistura depositada no prato, nem chegava a mastigar. Acho que ainda vivia em meu ser algum tipo de inocência (nisso eu não me diferenciava das outras crianças) e vi na comida, no ato de comer uma espécie de catarse para os sofrimentos de mamãe.

Ela percebeu que eu estava comendo e, tentando controlar os sentimentos que eclipsavam sua alma, sorriu para mim. Um sorriso doce, um dos mais lindos que já vi na vida. A partir dali, comecei a comer.

E a ironia de tudo? É simples: vinte anos depois e com cento e quarenta quilos a mais, me preparo para uma cirurgia de redução estomacal. Mamãe olha com estranheza o sorriso em meu rosto, mas não fala nada. Apenas olha em meus olhos e, com a mesma intensidade, retribuo o olhar.

L.B.M.
 

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