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A Metamorfose, Franz Kafka

  • Criador do tópico Criador do tópico lipecosta
  • Data de Criação Data de Criação
[align=justify]É disso que eu estava falando Mavericco, de investigar os condicionamentos sociais de Kafka, encontrar a matéria-prima histórico que ele utilizou para moldar suas histórias. A condição de advogado e os problemas com o pai são duas hipósteses muito significativas. A própria posição ou concepção da sociedade em que Kafka vivia perante as condutas sociais aceitáveis e execráveis, perante o trabalho, uma vida regrada, a constância e estabilidade financeiras ou familiares etc.[/align]

Mavericco disse:
É porque o absurdo de A Metamorfose é menor que o dO Processo, se formos pensar bem...: nO Processo, o homem acorda e é preso do nada, o que é um absurdo tendo em vista qualquer código de leis contemporâneo... Mas na Metamorfose nós temos outro cenário, que é o de um homem que se transforma num inseto e é excluído por todos... Teria eu coragem de prender alguém do nada? Creio que não. Teria eu coragem de excluir socialmente uma barata gigante? Creio que sim.

[align=justify]Sintetizaste muito bem o espírito da coisa, pois da mesma forma que nos colocamos no lugar de Samsa, também podemos nos colocar na posição dos familiares e demais pessoas que com ele se relacionam ao longo do livro. Provavelmente agiríamos da mesma maneira com relação a barata gigante (ou inseto, para evitar o mimimi). Essa "percepção das leis sociais" que colocaste Mavericco, se aproxima do que eu tinha dito sobre pensar sobre as implicações sociais de tornar-se inseto. Olha, eu só li A Metamorfose do Kafka, tenho que ler mais para poder dar uma opinião mais apurada a esse respeito, mas digam-me vocês caso sintam-se aptos a fazê-lo: a impressão que o Samsa me passa (como em alguma medida alter-ego do Kafka ou pelo menos com alguns traços auto-biográficos residuais) é de ser uma pessoa presa na trama de convenções e opiniões dos outros. Ele parece ser alguém extremamente atormentado com o que podem pensar sobre ele, um espécie de medo mórbido de ser julgado, de ser condenado ou de ser tido como estanho pelo mundo que o rodeia. Será que esse terror do entorno social e suas opiniões moldou tão profundamente a obra de Kafka ou foi só impressão minha? Digo isso levando em conta A Metamorfose e o que o Mavericco falou sobre O Processo. (Mavericco e Tataran, O Processo já subiu na lista de prioridades, espero lê-lo em breve)

Em que ponto isso pode ser relacionado a vida do Kafka? Antes disso ainda, até que ponto essas minhas impressões procedem?[/align]
 
[align=justify]Lucas e Mavericco, seus últimos posts foram excelentes, muito profundos mesmo. Não discordamos tanto assim, quanto possa parecer à primeira vista.

Em primeiro lugar, Lucas, você não soa nada como pedante nesta discussão; aliás, não me lembro de um post seu que tenha sido pedante. Não estamos, a propósito, tão longe um do outro quanto à questão da angústia. A Metamorfose é um livro angustiante para o leitor; apenas discordo de que Gregor tenha passado pessoalmente por uma grande angústia. A impressão que me passa é que sua forma de pensar o mundo e a si mesmo sofreu uma transformação junto com seu corpo; porque não quero crer que o Gregor-normal-humano pudesse cogitar racionalmente de levantar-se após virar inseto e ir trabalhar! É claro que, em um livro como esse, não podemos tomar os fatos pelo seu valor de face, mas devemos ter em conta que muitos aspectos da história são claramente metafóricos. Mesmo assim, a sua linha de raciocínio durante todo o livro deixa muito a desejar do que se esperaria de um ser humano com as faculdades mentais intactas. Não só seu corpo é de inseto, ele parece pensar, em certa medida, como um. Como você mesmo colocou:

uma melancolia, um certo derrotismo e resignação, recheados de fatalismo que tolda todas as possíveis tentativas de superação ao fracasso iminente, implosivo e explosivo. A aceitação da condição de execrado (e execrável também, de certa forma) é um indício disso.

Concordo plenamente com você e Mavericco de que a análise da vida de Kafka pode ser de muita utilidade na interpretação. Aliás, no tópico de Ficções, discutimos um conto de Borges, intitulado Pierre Menard, Autor do Quixote, em que o ponto central é o quanto um texto tem sua interpretação alterada quando se lhe muda o autor. Interpretar A Metamorfose sem considerar Kafka e suas circunstâncias seria absurdo.

Muito interessante, também, a colocação de Mavericco de que o absurdo d'O Processo pode ser visto como maior do que d'A Metamorfose.

a impressão que o Samsa me passa (como em alguma medida alter-ego do Kafka ou pelo menos com alguns traços auto-biográficos residuais) é de ser uma pessoa presa na trama de convenções e opiniões dos outros. Ele parece ser alguém extremamente atormentado com o que podem pensar sobre ele, um espécie de medo mórbido de ser julgado, de ser condenado ou de ser tido como estanho pelo mundo que o rodeia.

Mais uma vez, estou plenamente de acordo, Lucas. Samsa tenta buscar a aceitação de sua família, resignando-se completamente e assumindo sua condição de inseto por completo. De corpo e de pensamento.

Por fim, deixem-me compartilhar uma outra vertente interpretativa. Tudo que dissemos até agora pode ser classificado como uma interpretação sociológica ou psicológica da obra; mas ocorre-me também uma de ordem biológica.

Gregor, ao acordar em um corpo de inseto, passou a sofrer todo tipo de restrições e limitações por conta dessa situação. Ele não conseguiu mais se comunicar com a sua família, abrir a porta do quarto, deitar-se na cama e uma infinidade de outras tarefas, todas impossíveis de serem executadas por um besouro/barata. Nós, contudo, também estamos presos em um corpo, que não é de inseto, mas de mamífero, ou, propriamente, de primata. Embora não pensemos nisso, é evidente que temos também as nossas limitações, quer as identifiquemos ou não. A Metamorfose me faz refletir que, nessa prisão "animalesca", há altos objetivos a que nossa "alma humana" aspira que nunca poderão ser alcançados enquanto formos animais. E, ao que parece e como Gregor descobriu, não há escapatória alguma a essa "prisão". [/align]
 
Wow.... quanta coisa legal foi dita por aqui!!! - e uma boa parte que não entendi!! :sim:

Li a tradução de Modesto Carone e recomendo fortemente a quem quiser ler esse livro.

O período da manhã é tratado com muito cuidado por Kafka. Já repararam como a manhã é perigosa - vide o Processo?

O Bagrong no post dois! diz que "dá prá discutir por mais de um ano"... legal ver que a profecia dele mais que se cumpriu. Lá se vão 3 anos dá abertura desse tópico.
 
[align=justify]Sabe que não tinha pensado nisso Tataran, a "vertente biológica" tem sentido também, embora, penso eu, mais por conta da ressonância do leitor. Essas limitações corpóreas me lembraram de Demian (sim, esse livro realmente tem um valor muito grande para mim, esperem até ver a resenha que estou preparando para ele, enfim...) quando o Hesse escreve buscando romper com convenções e moralismos e trazer a subjetividade, a magnificência do espírito, da alma, do intelecto, do que o ser humano, embora preso em sua condição carnal, tem de transcendental, o que comprova que ele não é um mero ser de carne e osso que vai morrer.

A semelhança se dá aqui, embora meio forçadamente (o fio que ligou foi a pura subjetividade de minha lembrança, mas vá lá) através da constatação da prisão, da condição de encarcerado, seja nos moralismos e opiniões de outrém, seja na mortalidade carnal, biológica, meramente matéria. Enquanto Hesse pareceu conseguir de alguma forma "livrar-se" (não completamente, é óbvio) desses grilhões, Kafka sucumbiu a eles, ou pelo menos é isso que podemos perceber em A Metamorfose.

A existência e o desespero de estar amarrado nessa trama de leis, "leis", convenções, condutas, modelos, estereótipos, aceitabilidade, execrabilidade, estranhamento, exclusão etc. me parece ocupar um lugar cada vez mais central nessa obra, cada vez que leio o que escrevemos aqui, nossas concordâncias e discordâncias, a consciência dessa liberdade cerceada se torna mais pujante na obra.

E junto com esse pertencimento bizarro (de pertencer por exclusão, por exemplo, pensem um pouco paradoxalmente para perdoarem os malabarismos semânticos que estou aqui tentando empreender) vem o questionamento e a percepção da arbitrariedade dos mesmos. O Processo, pelo que foi comentado pelo Mavericco, parece ser justamente isso: a constante iminência da tragédia, a proximidade da catástrofe, do erro, da exclusão, ou seja, a vida sob tensão, eternamente atormentada.

Puxa, quão prolífica pode ser uma obra, hein? Depois de tantos e tão grandes posts ainda temos bala na agulha. E aí, o que pensam sobre isso?

(tenho mais umas coisas aqui para perguntar mas posto depois, ah sim, e tem o Carpeaux, que fiquei de passar, já localizei, mas são muitas páginas para digitar, vou dar uma resumida e citar os trechos mais significativos)[/align]
 
[align=justify]Lucas, todas essas suas referências a Demian vão me dando mais vontade de lê-lo. Vou ficar de olho para comprar um exemplar quando topar com ele em uma livraria. Embora não tenha lido Demian, pelos seus comentários, a obra de Hesse aponta para a necessidade de libertar-se dos nossos grilhões animalescos, enquanto que, em Kafka, acho que a grande moral é que não é possível libertar-se. Se eu bem entendi, então, Demian é carregado de esperanças, enquanto A Metamorfose é a destruição de todas elas.

Realmente, o livro parece que vai-se modificando à medida em que se vai discutindo o texto. Não me surpreenderia se, ao final de todo o processo, eu concluísse que estive errado o tempo todo. XD

Voltando à minha discordância quanto à interpretação do Mavericco:

Mavericco disse:
Tataran disse:
Mavericco disse:
Talvez o que Kafka realmente proponha seja uma metamorfose nossa... Para que nós mudemos nossas atitudes e repensemos nossos papeis sociais... Para que deixemos de ser Samsa inseto e passemos a outra condição, que não está descrita no livro, mas que está implantada na mente do leitor... Afinal de contas, literatura de qualidade é o conjunto do que se lê e do que se não lê.

Acho que não, Mavericco. Poderia ser por aí, caso Gregor tivesse conseguido sair de seu estado como inseto, de forma que estivesse nos mostrando um caminho.... Mas, por outro lado, não tenho certeza do que Kafka propõe, nem tenho uma teoria alternativa a apresentar. XD

Mas ele não precisa tirar Samsa do estado de inseto: basta que ele coloque o sofrimento de Samsa como um aviso ou uma reflexão... Mesmo porque, se Samsa tivesse saido de sua condição no final, as pessoas não teriam o mesmo impacto e a mesma capacidade reflexiva... Os objetivos do texto entrariam numa metamorfose indesejada...

Já sei onde se encontra a minha discordância. :sim: Ocorre que, para que essa interpretação seja válida, é de se supor que haja uma continuidade entre a condição de Gregor pré-metamorfose e a sua situação de inseto. Pelo que você propõe, haveria a mesma servilidade e anulação de si mesmo. Eu, contudo, enxergo (ou gosto de enxergar) uma ruptura entre a sua vida anterior e posterior à metamorfose. É como se uma grande rajada de vento tivesse despedaçado tudo que ele tinha construído e esperava construir para si no futuro. É por isso, na minha opinião, que o livro se inicia com a Metamorfose, porque, do ponto de vista de Gregor, aquele é um novo e inesperado começo, sob circunstâncias totalmente novas.[/align]
 
[align=justify]Entendi Tataran, o que você quer dizer tem validade sim. Penso que o que o Mavericco (toda vez que digito Mavericco digito Maveco, XD ) quis dizer foi que somos jogados na pele (ou carapaça) de Samsa, passando a sofrer como ele, só que, na realidade somos nós mesmos, humanos não-insetos. Logo, dessa aparente confusão, somos subtraídos momentaneamente da realidade (nossa realidade humana) para a ficção perturbadora que é a história e a condição de Samsa, porém, ao voltarmos para a realidade humana, temos uma visão privilegiada, pois "enxergamos a realidade de outro prisma", mesmo que fantástico como esse d'A Metamorfose.

Em outras palavras: através do literário podemos alterar o real. Vivendo na pele de Samsa reavaliamos nossas posições na vida real. A intenção de Kafka, a meu ver, está não em exortar a melancolia e a aceitação quieta, passiva e angustiante da condição de estranho; mas sim colocar-nos em estranhamento com nós mesmos e nossas concepções a respeito da realidade, seja em quais aspectos for, para que, ao fazer o caminho inverso (da ficção à realidade) possamos vê-la de forma diferente, a partir de uma nova perspectiva, a partir de concepções distintas (e muitas vezes conflitantes) com as que tínhamos anteriormente.

Isso não é privilégio desse livro de Kafka, mas da Literatura em geral, obviamente.

Enfim, deu para entender?[/align]
 
Tataran disse:
Gregor, ao acordar em um corpo de inseto, passou a sofrer todo tipo de restrições e limitações por conta dessa situação. Ele não conseguiu mais se comunicar com a sua família, abrir a porta do quarto, deitar-se na cama e uma infinidade de outras tarefas, todas impossíveis de serem executadas por um besouro/barata. Nós, contudo, também estamos presos em um corpo, que não é de inseto, mas de mamífero, ou, propriamente, de primata. Embora não pensemos nisso, é evidente que temos também as nossas limitações, quer as identifiquemos ou não. A Metamorfose me faz refletir que, nessa prisão "animalesca", há altos objetivos a que nossa "alma humana" aspira que nunca poderão ser alcançados enquanto formos animais. E, ao que parece e como Gregor descobriu, não há escapatória alguma a essa "prisão".

Se formos pensar bem, todos os seres da terra estão condenados a prisões... As limitações que nos assolam são as limitações que provavelmente não assolam as plantas (a fotossíntese, por exemplo); mas as limitações destas não nos assolam (a livre e facilitada locomoção, por exemplo).

Pergunto-me, no entanto, se não existe uma assolação que não afeta todos os seres e de forma que nenhum possa escapar... Creio que, se formos poetizar a coisa, a solidão seja esse mal que possa assolar todas as espécies; e talvez seja esse o ponto de partida de Kafka...

Lucas_Deschain disse:
[align=justify]Sabe que não tinha pensado nisso Tataran, a "vertente biológica" tem sentido também, embora, penso eu, mais por conta da ressonância do leitor. Essas limitações corpóreas me lembraram de Demian (sim, esse livro realmente tem um valor muito grande para mim, esperem até ver a resenha que estou preparando para ele, enfim...) quando o Hesse escreve buscando romper com convenções e moralismos e trazer a subjetividade, a magnificência do espírito, da alma, do intelecto, do que o ser humano, embora preso em sua condição carnal, tem de transcendental, o que comprova que ele não é um mero ser de carne e osso que vai morrer.

A semelhança se dá aqui, embora meio forçadamente (o fio que ligou foi a pura subjetividade de minha lembrança, mas vá lá) através da constatação da prisão, da condição de encarcerado, seja nos moralismos e opiniões de outrém, seja na mortalidade carnal, biológica, meramente matéria. Enquanto Hesse pareceu conseguir de alguma forma "livrar-se" (não completamente, é óbvio) desses grilhões, Kafka sucumbiu a eles, ou pelo menos é isso que podemos perceber em A Metamorfose.

A existência e o desespero de estar amarrado nessa trama de leis, "leis", convenções, condutas, modelos, estereótipos, aceitabilidade, execrabilidade, estranhamento, exclusão etc. me parece ocupar um lugar cada vez mais central nessa obra, cada vez que leio o que escrevemos aqui, nossas concordâncias e discordâncias, a consciência dessa liberdade cerceada se torna mais pujante na obra.

E junto com esse pertencimento bizarro (de pertencer por exclusão, por exemplo, pensem um pouco paradoxalmente para perdoarem os malabarismos semânticos que estou aqui tentando empreender) vem o questionamento e a percepção da arbitrariedade dos mesmos. O Processo, pelo que foi comentado pelo Mavericco, parece ser justamente isso: a constante iminência da tragédia, a proximidade da catástrofe, do erro, da exclusão, ou seja, a vida sob tensão, eternamente atormentada.

Puxa, quão prolífica pode ser uma obra, hein? Depois de tantos e tão grandes posts ainda temos bala na agulha. E aí, o que pensam sobre isso?

(tenho mais umas coisas aqui para perguntar mas posto depois, ah sim, e tem o Carpeaux, que fiquei de passar, já localizei, mas são muitas páginas para digitar, vou dar uma resumida e citar os trechos mais significativos)[/align]

Interessante o paralelo com o Demian... Entendi o mesmo que o Tataran:

Se eu bem entendi, então, Demian é carregado de esperanças, enquanto A Metamorfose é a destruição de todas elas.

Mas será que A Metamorfose não é também carregado de esperanças? Como estamos na pele de Samsa, logo, lemos apenas suas esperanças de voltar à família, e voltar a ser humano, de voltar a trabalhar e etc. E mesmo se lêssemos os pensamentos da família, teríamos as esperanças de Samsa voltar a ser humano, de voltar à família, de voltar a trabalhar... Ou seja, as esperanças de Samsa são parecidas com as esperanças de sua família...

Conseguem ver alguma razão para essa igualdade de esperanças?

Tataran disse:
[align=justify]
Mavericco disse:
Tataran disse:
Mavericco disse:
Talvez o que Kafka realmente proponha seja uma metamorfose nossa... Para que nós mudemos nossas atitudes e repensemos nossos papeis sociais... Para que deixemos de ser Samsa inseto e passemos a outra condição, que não está descrita no livro, mas que está implantada na mente do leitor... Afinal de contas, literatura de qualidade é o conjunto do que se lê e do que se não lê.

Acho que não, Mavericco. Poderia ser por aí, caso Gregor tivesse conseguido sair de seu estado como inseto, de forma que estivesse nos mostrando um caminho.... Mas, por outro lado, não tenho certeza do que Kafka propõe, nem tenho uma teoria alternativa a apresentar. XD

Mas ele não precisa tirar Samsa do estado de inseto: basta que ele coloque o sofrimento de Samsa como um aviso ou uma reflexão... Mesmo porque, se Samsa tivesse saido de sua condição no final, as pessoas não teriam o mesmo impacto e a mesma capacidade reflexiva... Os objetivos do texto entrariam numa metamorfose indesejada...

Já sei onde se encontra a minha discordância. :sim: Ocorre que, para que essa interpretação seja válida, é de se supor que haja uma continuidade entre a condição de Gregor pré-metamorfose e a sua situação de inseto.

Bem... Biologicamente falando, acredito que houve essa continuidade: Samsa, em momento algum da narrativa, sofreu uma ecdise. Ecdise é a troca da carapaça de insetos. O que ocorreu com Samsa foi a formação dessa carapaça; seria uma descontinuidade se ele tivesse sofrido a ecdise e ficasse sem a carapaça por um tempo...

........................./
......................../
.............______/
.........../
........../
......../

Onde, em vermelho, seria o tempo dessa ecdise, onde Samsa ficaria sem sua carapaça, indefeso e recluso.

No entanto, a análise biológica da coisa é deveras sem sal. Será que Samsa não sofreu essa ecdise? Creio que sim, e isso reforçaria sua teoria da descontinuidade de Samsa's: Samsa, enquanto humano, sofria um crescimento humanoide, social ou etc. O fato é que com a ecdise, que foi, ironicamente, a metamorfose, ele escondeu-se em seu quarto e ficou desprotegido... Seu desenvolvimento tornou-se constante e congelou-se, na medida em que o desenvolvimento dos outros continuou a aumentar e por consequência Samsa "ficou pra trás"...

Sendo assim, o advento da carapaça insetoide de Samsa foi completamente inútil, na medida em que ela não o protegeu, não continuou seu crescimento (...)

Tataran disse:
Pelo que você propõe, haveria a mesma servilidade e anulação de si mesmo.

Numa explicação física, a primeira parte da vida de Samsa foi um vetor de valor 10N. Quando ele tornou-se um inseto, o segundo vetor foi um de -11N. A continuidade vetorial existiu; mas o resultado dessa continuidade foi negativo...

Tataran disse:
Eu, contudo, enxergo (ou gosto de enxergar) uma ruptura entre a sua vida anterior e posterior à metamorfose. É como se uma grande rajada de vento tivesse despedaçado tudo que ele tinha construído e esperava construir para si no futuro. É por isso, na minha opinião, que o livro se inicia com a Metamorfose, porque, do ponto de vista de Gregor, aquele é um novo e inesperado começo, sob circunstâncias totalmente novas.

Circunstâncias novas para ele... Porque, se formos pensar bem, o sistema deixou de ser heliocêntrico tomando como centro Samsa, onde ele era o centro da família e do universo subsistente de sua família; e tornou-se relativístico, onde Samsa é um sol pesado e que faz com que a luz (a família, a sociedade, a benignidade) desvie-se dele...

Lucas_Deschain disse:
[align=justify]
Isso não é privilégio desse livro de Kafka, mas da Literatura em geral, obviamente.[/align]

Da boa literatura em geral... Um escritor ruim faria disso uma saga de insetos medievais e secretores de gosma atômica :hahano:
 
Mavericco disse:
Pergunto-me, no entanto, se não existe uma assolação que não afeta todos os seres e de forma que nenhum possa escapar... Creio que, se formos poetizar a coisa, a solidão seja esse mal que possa assolar todas as espécies; e talvez seja esse o ponto de partida de Kafka...

A característica universal de todos os seres vivos é a hereditariedade e, infelizmente, a morte.

Mavericco disse:
Mas será que A Metamorfose não é também carregado de esperanças? Como estamos na pele de Samsa, logo, lemos apenas suas esperanças de voltar à família, e voltar a ser humano, de voltar a trabalhar e etc. E mesmo se lêssemos os pensamentos da família, teríamos as esperanças de Samsa voltar a ser humano, de voltar à família, de voltar a trabalhar... Ou seja, as esperanças de Samsa são parecidas com as esperanças de sua família...

Efetivamente as esperanças de Gregor e de sua família são as mesmas, mas as razões que movem essas esperanças são muito diversas...

Mavericco disse:
Bem... Biologicamente falando, acredito que houve essa continuidade: Samsa, em momento algum da narrativa, sofreu uma ecdise. Ecdise é a troca da carapaça de insetos. O que ocorreu com Samsa foi a formação dessa carapaça; seria uma descontinuidade se ele tivesse sofrido a ecdise e ficasse sem a carapaça por um tempo...

Sim, efetivamente, ele é o mesmo durante todo o livro, mas eu me referia a uma possível continuidade entre sua situação antes de se iniciar o livro para com sua vida de inseto. Dizia eu que enxergo uma grande ruptura entre a sua vida humana (que só conhecemos por retrospecto, já que o livro começa com a metamorfose consumada) e sua situação a partir da grande mudança.

Mavericco disse:
Circunstâncias novas para ele... Porque, se formos pensar bem, o sistema deixou de ser heliocêntrico tomando como centro Samsa, onde ele era o centro da família e do universo subsistente de sua família; e tornou-se relativístico, onde Samsa é um sol pesado e que faz com que a luz (a família, a sociedade, a benignidade) desvie-se dele...

Ué, Mavericco, você está com um pendor astrofísico-poético... :sim:

Mavericco disse:
Lucas_Deschain disse:
[align=justify]
Isso não é privilégio desse livro de Kafka, mas da Literatura em geral, obviamente.[/align]
Da boa literatura em geral...

É a mais pura verdade.
 
[align=justify]Fiquei pensando sobre a condição de Samsa pré-metamorfose, ela certamente apresentaria indícios muito importantes para a compreensão do que o processo de transformação significou para Samsa, o que mudou, se ele gostava da sua vida anterior, se odiava etc.

O pouco que pegamos por retrospecto indica que Samsa não achava ruim sua vida anterior, embora parece se importar mais com suas obrigações e em ser arrimo de família do que propriamente em fazer qualquer outra coisa (fica difícil generalizar porque fazemos afirmações baseadas em fragmentos mnemônicos de Samsa), mas o certo é que a metamorfose tirou-o da situação em que se encontrava, fosse ela boa ou má.

Por contraste, dá para dizer que a situação pré-metamorfose era boa, mas isso é difícil confirmar, afinal, dificilmente, ao tornar-se um inseto gigante, você vai achar sua condição anterior pior, mas enfim...

O sentimento de estranhamento que discutimos anteriormente e a escravização pelas opiniões dos outros, daonde acha que Kafka tirou isso? Quais suas origens socias? Tem algo a ver com sua posição social? Com seu trabalho? A Wikipedia fala que as obras de Kafka traduzem "o pesadelo de um mundo impessoal e burocrático". Isso bate com o que falávamos antes, não? Mas quero saber a extensão desse mundo impessoal e burocrático: é a sociedade alemã (austríaca)? A realidade do pós-guerra? Do pré-guerra no campo dos imperialismos? Isso me intriga e parece ser discussão chave para compreender as ressonâncias da sua ficção aos horrores nazistas da Alemanha após a sua morte. Qual era a origem desse pesadelo?[/align]
 
Provavelmente o pós-guerra seja de fato a musa do Kafka... Áustria esteve envolvida na primeira guerra mundial, não? Pelo que minhas aulas de história ainda relatam-me, o duque foi inclusive assassinado lá... -- o "estopim" da guerra.

Combine isso com a pobreza da Europa no pós-guerra, arrasada, derruída, caminhando para outra guerra... É compreensível que a família de Samsa tenha execrado ele a tal ponto! Estamos numa sociedade onde as famílias estão mutiladas, onde as pessoas morreram com a frieza da guerra... Um emprego, uma estrutura familiar, por mais interesseira que seja, é sólida, é ouro! Samsa, ao ver-se como um inseto, desesperou-se, pois sabia que sua família agora seria jogada àquele mundo cruel e empoeirado de cinzas que era o do pós-guerra... Ele era um Atlas que derrubou o mundo, que derrubou o universo ao se ver transformado numa barata...

Sendo assim, será que a família de Samsa foi tão cruel assim com ele? Quantas e quantas famílias do pós-guerra davam-se ao luxo de ter uma fonte de renda estável que não fosse a guerra? Muitas delas foram dilaceradas... A família de Samsa estava por um fio, e esse fio então eis que se arrebenta.

Não são todos, numa guerra, que se dão ao luxo de não serem soldadinhos de chumbo...
 
[align=justify]Bom, não sou especialista em histórias, mas, segundo já li, a Primeira Guerra Mundial foi muito traumática para a população de todos os países envolvidos. Em primeiro lugar, pôs fim à "bela época" e à general atitude de otimismo e confiança para com o presente e o futuro. Em segundo lugar, sua duração e o número de baixas civis e militares foi estrondoso. Como bem dito no meu The Western Heritage (aliás, um livro fan-tás-ti-co), a população européia de vários países saudou com entusiasmo o início da guerra, que acreditaram seria rápida e resolveria as tensões crescentes entre os países. Ocorre que não havia uma guerra de grande escala há pelo menos 40 anos, e as pessoas não tinham idéia de como seria um combate militar no novo século, com todas as novas tecnologias militares. E, por fim, para completar a experiência da guerra, logo após o seu término, a grande epidemia da gripe espanhola atacou. Segundo estimativas, 50 milhões de pessoas no mundo todo morreram da doença.

Em resumo, não era um momento muito auspicioso... Dá para sentir que tipo de influência toda essa experiência poderia ter exercido sobre o Kafka.

Só tem um problema em todo esse raciocínio. A Metamorfose foi publicado em 1915, ainda no primeiro ano da guerra. Todos esse fatos ainda não estavam acessíveis para Kafka. XD [/align]
 
Bem... Talvez ele previu toda essa desgraça que iria ocorrer em seu país... Afinal de contas, a primeira guerra mundial iniciou-se na Áustria-Hungria... Tensões e conflitos já existiam nessa zona, e eu não creio que a população áustrica tenha visto com bons olhos o começo de uma guerra -- tanto é que a Áustria virou um queijo-suíço depois da primeira guerra (e creio que esses bons augúrios tenham sido para os países neocolonialistas, que viam com a guerra também uma forma de estabelecer de forma "fixa" seus domínios africanos [como a entrada da Itália, por exemplo, na guerra, que visava poderio e etc]).

Conflito militar (1914-1918), iniciado por um confronto regional entre o Império Austro-Húngaro e a Sérvia, em 28 de julho de 1914. Confronto que se transformaria em luta armada, em escala européia, quando a declaração de guerra austro-húngara foi estendida à Rússia em 1º de agosto de 1914. E que finalmente passaria a ser uma guerra mundial da qual participaram 32 nações: 28 delas, denominadas ‘aliadas’ ou ‘potências coligadas’, entre as quais se encontravam a Grã-Bretanha, a França, a Rússia, a Itália, e os Estados Unidos, lutaram contra a coligação dos chamados impérios centrais, integrada pela Alemanha, pela Áustria-Hungria, pelo império otomano e pela Bulgária.

O arquiduque austríaco Francisco Fernando era herdeiro e sobrinho de Francisco José I, imperador da Áustria. Sua esposa, a condesa bohemia Sofía Chotek, e ele foram assassinados pelo nacionalista sérvio Gavrilo Princip em Sarajevo. Este incidente desencadeou a I Guerra Mundial.

A causa imediata do início das hostilidades entre a Áustria-Hungria e a Sérvia foi o assassinato do arquiduque Francisco Fernando de Habsburgo, herdeiro do trono austro-húngaro, cometido, em Sarajevo no dia 28 de junho de 1914, por um nacionalista sérvio. Entretanto, os verdadeiros fatores determinantes do conflito foram: o espírito nacionalista que crescia por toda a Europa durante o século XIX e princípios do XX e a rivalidade econômica e política entre as diferentes nações, o processo de militarização e a corrida armamentista que caracterizaram a sociedade internacional dos últimos anos do século XIX, raiz da criação de dois sistemas de alianças que se diziam defensivas: a Tríplice Aliança e a Tríplice Entente. A primeira nasceu do pacto firmado entre a Alemanha, Áustria-Hungria e Itália contra a ameaça de ataque da França. A Tríplice Entente era a aliança entre a Grã-Bretanha, França e Rússia para contrabalançar a Tríplice Aliança.

O assassinato do Arquiduque austríaco teve sérias repercussões. Diante da ineficácia das gestões diplomáticas, a Áustria declarou guerra à Sérvia em 28 de julho de 1914. (...)


Ou seja, na época do lançamento dA Metamorfose, a Áustria já estava em guerra...

Esperem... Kafka era o quê, afinal? Estou falando da Áustria e etc... Mas não tenho certeza se ele era austríaco! Acho que era tcheco... Que está nesse bolo austríaco-sérvio, se minhas falhas geográficas não mentem @_@
 
Kafka é um grande escritor e o que mais impressiona é como a narrativa é fria, como se virar um inseto fosse uma coisa normal.
 
Infelizmente assisti Melancolia (Lars Von Trier) e li A Metamorfose na mesma semana. Infelizmente, não porque eu não tenha gostado da parte literária ou da parte cinematográfica, mas sim por ter juntado as duas. E o motivo é o que elas tem em comum: a trivialidade da vida frente ao sofrimento. Se encarar isso uma vez é ruim, imagine duas.

Não vejo a tristeza como um problema, mas também não faço um ode a ela como Lars Von Trier. Ignorá-la como Kafka, me parece impossível! E esse é o ponto forte do livro. É difícil pensar no que escrever depois de ler um livro tão simples para uma coisa tão forte. Kafka faz ser fácil de imaginar eu ou você no lugar de Gregor e provar que a simplicidade disso é assustador. É como dizer que o sofrimento vem e pronto, você não pode fazer nada contra isso, pode apenas se acostumar a ser um inseto gigante.
 

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