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A Metamorfose, Franz Kafka

[align=justify]Mavericco, o que quis dizer foi que Samsa se sentia tão não-humano que ele analisou as implicações da sua nova condição em relação ao que lhe vinha de fora e não em seus desdobramento para si próprio.

Ele não parece se ver enquanto ser humano (em essência), porque tem uma visão, por assim dizer, instrumentalizada de si próprio. Ele se vê como arrimo da família, como empregado de seu patrão, como caixeiro-viajante que faltou em um dia de trabalho, e não como Gregor Samsa, um indivíduo que tem sentimentos, identidade e consciência. Isso cabe certinho com a desumanização pós-moderna de que você falava (com nossos anacronismos plenamente conscientes e discutidos): a perda da identidade em meio aos diversos convencionalismos, burocriacias e demais ligações dele com a realidade a que ele estava preso.

Reitero cansativamente: Gregor Samsa representa a angústia do sentir-se estranho a um mundo, não somente por não ver-se como parte dele, mas também por ser esse um mundo que não o enxerga senão em sua existência prática, desumanamente.

Me fiz entender?[/align]
 
Ah, sim! Agora entendi :sim:
Estava com o lerdômetro ligado =p

De fato, de fato... Se Samsa é a angústia existencial humana, então o que seria a família dele? A felicidade? Acho que fica mais ou menos claro que a família representa a sociedade, que é também "hermeticamente fechada", "presa numa carapaça", mas que exerce influência sob a vida do indivíduo a ponto de também fechá-lo...

Será que a metamorfose de Samsa, observado esse aspecto, foi assim tão absurda e aleatória? (depois do trabalho eu formulo melhor isso tudo...)
 
quando li A Metamorfose fiquei um pouco espantada pela forma como Kafka fala sobre um assunto tão frequente. Lembro de uma amiga que leu depois de e ela deu exemplo de idosos. Quando eram produtivos na juventude eram recompensados, todos amavam...mas foi precisar da ajuda dos outros (filhos, netos etc) que a coisa muda. Parece que viram um estorvo para alguns e ha aqueles que desejem a morte para acabar com os problemas.

Kafka meteu o dedo na ferida daquilo que sempre deixamos escondido debaixo do tapete, pq não dá pra jogar no lixo, senão seremos julgados. Achei ele incrível pela metáfora que o autor escolheu: todos achamos a barata (ou o verme, se a tradução está errada) repugnante, e muitos vêm a situação assim.

Vou reler o livro para ver se acho pontos interessante e volto aqui depois.
 
Jarsgirl - quando eu li entendi exatamente isso (mas isso foi há uns 18 anos, direto do túnel do tempo...rss).
Entendi que a transformação de Gregor em um inseto representava tão somente que ele tinha adoecido e deixou de trabalhar e trazer dinheiro para casa - e de pessoa admirada e respeitada por todos em sua família, transformou-se em um incômodo. Em contrapartida, sua irmã, que não tinha grande significado na família, passou a ter toda a atenção dos pais, por se traduzir na nova oportunidade de a família ascender economicamente e socialmente.
Tinha entendido que a grande crítica do livro é sobre as condições do amor: ou seja: o quanto vc ganha e sua posição social podem fazer o amor brotar ou murchar.

Mas adorei ler os comentários de vcs e me deixaram com muita vontde de ler novamente. Aliás, esse livro já foi discutido no clube? É que ele é curtinho e tão profundo que daria uma discussão muito boa.

Kss.
 
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Mavericco disse:
De fato, de fato... Se Samsa é a angústia existencial humana, então o que seria a família dele? A felicidade? Acho que fica mais ou menos claro que a família representa a sociedade, que é também "hermeticamente fechada", "presa numa carapaça", mas que exerce influência sob a vida do indivíduo a ponto de também fechá-lo...

Creio que a família vem para realçar o sentimento de inadequação e desumanização do Samsa. Se ela o tem por arrimo de família e não como um ser humano dotado de identidade, essência (alma/espírito/etc.), consciência e individualidade, Gregor acaba por interiorizar tal coisa a ponto de formar de si próprio tal imagem. Creio que a família orbita em torno do protagonista para possibilitar que seu drama seja desenvolvido a partir de outros prismas e recursos.

A naturalidade com que essa situação vai sendo deglutida é estarrecedora. É o choque inicial seguido de uma assentamento cognitivo-intelectual-consciente absurdo. É como se o Samsa ficasse para trás e ninguém mais o percebesse, a partir do momento em que você não é mais útil (falando em termos pecuniários e em questão de aparência) é simplesmente esquecido, descartada e deixado isolado e fadado a sua própria sorte. Vejo isso, e estou me repetindo agora, como uma instrumentalização da relação social-humana, como se o valor da pessoa estivesse em sua utilidade financeira ou em sua capacidade de servir a determinados propósitos.

Mavericco disse:
Será que a metamorfose de Samsa, observado esse aspecto, foi assim tão absurda e aleatória? (depois do trabalho eu formulo melhor isso tudo...)

Confesso que ainda não entendi essa parte Mavericco...[/align]
 
Caraca... Tinha esquecido desse tópico o_O

Lucas_Deschain disse:
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Mavericco disse:
De fato, de fato... Se Samsa é a angústia existencial humana, então o que seria a família dele? A felicidade? Acho que fica mais ou menos claro que a família representa a sociedade, que é também "hermeticamente fechada", "presa numa carapaça", mas que exerce influência sob a vida do indivíduo a ponto de também fechá-lo...

Creio que a família vem para realçar o sentimento de inadequação e desumanização do Samsa. Se ela o tem por arrimo de família e não como um ser humano dotado de identidade, essência (alma/espírito/etc.), consciência e individualidade, Gregor acaba por interiorizar tal coisa a ponto de formar de si próprio tal imagem. Creio que a família orbita em torno do protagonista para possibilitar que seu drama seja desenvolvido a partir de outros prismas e recursos.

Então, a família de Samsa é uma espécie de carapaça espelhada? É como se ela fosse uma "casa de vidro" onde Samsa se encontrasse, e onde ele estivesse preso e vendo seu reflexo... Ou melhor, não o reflexo dele, mas o reflexo que a família dele quer mostrar...

Lucas_Deschain disse:
A naturalidade com que essa situação vai sendo deglutida é estarrecedora. É o choque inicial seguido de uma assentamento cognitivo-intelectual-consciente absurdo. É como se o Samsa ficasse para trás e ninguém mais o percebesse, a partir do momento em que você não é mais útil (falando em termos pecuniários e em questão de aparência) é simplesmente esquecido, descartada e deixado isolado e fadado a sua própria sorte. Vejo isso, e estou me repetindo agora, como uma instrumentalização da relação social-humana, como se o valor da pessoa estivesse em sua utilidade financeira ou em sua capacidade de servir a determinados propósitos.

A escravidão vinculada com a produção... Você é o que você produz ou o quanto você pode produzir...

Lucas_Deschain disse:
Mavericco disse:
Será que a metamorfose de Samsa, observado esse aspecto, foi assim tão absurda e aleatória? (depois do trabalho eu formulo melhor isso tudo...)

Confesso que ainda não entendi essa parte Mavericco...

Se a família de Samsa é a sociedade que marginaliza o indivíduo, aqui simbolizado por Samsa, então a metamorfose dele talvez não tenha sido assim tão "absurda" ou "aleatória"...

Digo: a família de Samsa sempre marginalizou-o, pois ele era visto apenas como uma fonte de renda. Ele era um simples meio de produção, ele era uma "coisa"... A metamorfose agravou essa situação, mas não sei dizer até que ponto ela foi assim tão horrenda ou absurda... Se Samsa não tivesse sido metamorfoseado, ele iria ficar velho, e essa metamorfose natural e nem um pouco aleatória teria praticamente a mesma repercussão da metamorfose física e insectóide que ocorreu com a narrativa...

A marginalização definitiva de Samsa, assim como a de qualquer indivíduo preso numa sociedade onde a produção é o fator mais importante, é um processo que iria ocorrer naturalmente... Essa metamorfose apenas adiantou e metaforizou a coisa :think:
 
[align=justify]É, tomando a nível mais geral, acho que dá para dizer que Samsa simboliza sim essa transformação de valores que impera na sociedade capitalista. Instrumentalização do ser humano, coisa que a família, como representação da sociedade, faz com Samsa.

A "carapaça espelhada" sintetiza o que eu estava patinando para tentar explicar, hehe. É bem isso mesmo Mavericco.

Agora que tenho que confessar uma coisa, que me aconteceu antes de eu conhecer o significado da palavra "kafkiano". Quando peguei A Metamorfose pela primeira vez (não acabei de ler) achei que a metamorfose anunciada no título não fosse a transformação do Samsa em inseto, mas sim que seria um processo que ocorreria mais próximo do final, quando ele se transformaria em um outro ser (borboleta, mariposa ou um inseto mais motherf**er), ou seja, a transformação seria para algo melhor (relevem os significados que o termo borboleta passou a carregar em seu bojo com o passar do tempo, vejam a coisa a nível mais abstrato).

Pobres delírios poliânicos, mal sabia eu que Kafka era praticamente a antítese do final feliz, a narrativa contundente e aterradora da trajetória de Samsa não desemboca em felicidade alguma, só em angústia, desgosto, impotência e tragédia.

Essa experiência (um tanto vergonhosa e evidência da minha ignorância na época em que peguei o livro pela primeira vez) me fez perceber uma coisa que queria ver o que vocês pensam sobre: quando da minha primeira tentativa de leitura, a transformação de Samsa em inseto foi mostrada com tanta naturalidade que nem me passou pela cabeça que essa era a tal metamorfose. Essa naturalidade com que Kafka narra certos eventos no mínimo incomuns faz com que a prosa dele atinja mais diretamente o leitor. Acho essa escolha essencial para a obra ter o impacto que tem, pois ela é tão "banal" (no sentido de normal, comum, ordinária) que se torna mais verossímil. A estranheza se dá mais nas implicações dessa transformação do que na transformação em si. Como compreender isso? É algo prolífico e interessante para perguntar-se e discutir ou é uma simples leitura mal deglutida que insisite em manter resíduos mnemônicos em minha cabeça?[/align]
 
"A estranheza se dá mais nas implicações dessa transformação do que na transformação em si."

Vejo isso da seguinte forma: Kafka não é daquela estirpe vil de escritores que vivem de "momentos de inspiração", onde uma ideia boa é trabalhada de forma medíocre resultando num livro tão morno quanto uma piscina em fim de tarde. Para Kafka, não basta ter uma boa ideia, é preciso que se trabalhe essa ideia... E se trabalhe duro, com profundidade, com dimensões. A ideia é uma simples gota d'água; o que essa gota d'água faz na superfície, no tempo, é trabalho que poucos conseguem fazer com maestria. A grande maioria simplesmente defeca uma metáfora interessantezinha com um arranjo textual mais interessantezinho ainda, mas para aí.

Afinal de contas, o indivíduo em Kafka é uma antítese fáustica, que começa num quarto gótico e alcança o macrocosmo: aqui Samsa já tem alcançado este último e grandíloquo cosmos, ainda que de forma interesseira e exploratória da parte do meio; mas quando sua metamorfose ocorre, ele passa a recair em seu próprio quarto gótico, com a diferença de estar numa espécie de condição mefistofélica, sem poder sair deste quarto preso por uma falha num pentagrama... Preso por um pacto microcósmico dum Mefistófeles macrocósmico...
 
[align=justify]Bem lembrado Mavericco, Kafka extrai muita coisa de algo que parece não ser tão prolífico assim. Isso é que é o legal de discutir Literatura: as noções não são estanques e cristalizadas, elas estão em movimento, vivas, sendo acrescidas, limadas e lapidadas a cada instante. De uma história aparentemente simples e com poucas páginas (não que quantidade seja critério, né?) sai toda uma riqueza de debate como essa. Ou seja, creio que por menor que seja o golpe de picareta, Kafka consegue ao menos dar início a rachadura que depois só virá a se ampliar e ampliar até quebrar a crosta de gelo que envolve o espírito.

Do micro ao macro, da condição fáustica a mefistofélica, Kafka consegue extrair o sumo de um fruto que parece ser limitado mas que, quando em contato com os leitores, mostra-se infinito, sem que, com isso, caia-se do relativismo enganador. O autor sonda as ressonâncias da transformação, ele explora as implicações como forma de compreender a que ponta está-se ligado ao entorno social e qual a natureza dessa ligação, de que forma ela altera ambas as partes. Acho que esse é um ponto interessante do livro, compreender-se socialmente. O que pensas?

Obs.: Vi que você tirou A Comédia Humana do seu top10 e colocou A Metamorfose. Kafka conseguiu quebrar o mar de gelo dentro de você? hehehe[/align]
 
Lucas_Deschain disse:
Do micro ao macro, da condição fáustica a mefistofélica, Kafka consegue extrair o sumo de um fruto que parece ser limitado mas que, quando em contato com os leitores, mostra-se infinito, sem que, com isso, caia-se do relativismo enganador. O autor sonda as ressonâncias da transformação, ele explora as implicações como forma de compreender a que ponta está-se ligado ao entorno social e qual a natureza dessa ligação, de que forma ela altera ambas as partes. Acho que esse é um ponto interessante do livro, compreender-se socialmente. O que pensas?

Talvez o que Kafka realmente proponha seja uma metamorfose nossa... Para que nós mudemos nossas atitudes e repensemos nossos papeis sociais... Para que deixemos de ser Samsa inseto e passemos a outra condição, que não está descrita no livro, mas que está implantada na mente do leitor... Afinal de contas, literatura de qualidade é o conjunto do que se lê e do que se não lê.

Lucas_Deschain disse:
Obs.: Vi que você tirou A Comédia Humana do seu top10 e colocou A Metamorfose. Kafka conseguiu quebrar o mar de gelo dentro de você? hehehe[/align]

Ah... A Comédia Humana eu coloquei mais como "tapa-buraco", sabe? Não acho que a Comédia Humana seja tão forte... É como o Carpeaux disse: "grande parte de sua obra já envelheceu irremediavelmente, porque constituída de romances de mero divertimento, escritos às pressas para ganhar dinheiro"... É claro que tem muita coisa boa, boa mesmo; mas eu não julgo essas partes boas como sendo concorrentes num Top 10...

Mesmo porque eu até tirei o Metamorfose... Estou mais atualizando o do meu perfil.. Esqueci total aquele tópico... Lembrei do Moby Dick e aí pude tapar esse buraco (apesar de que o 2º e o 3º estão constantemente em briga!) =p

Mas acho que pro Ocidente essa lista atual tá boa
 
Mavericco disse:
Afinal de contas, literatura de qualidade é o conjunto do que se lê e do que se não lê.

[align=justify]Podes crer que sim, falou e disse. Na riqueza de leituras que dela se podem fazer, as propositais e instigantes lacunas que a obra deixa, e que, quando preechidas das mais diversas formas nos mais diversos tempos e a partir das mais diferentes concepções, se mostram "versáteis" aos mais diferentes contextos, pois são, por esse motivo, universais.

Certamente Kafka conseguiu deixar uma obra que sonda os insetos que temos dentro de nós mesmos em nossas percepções sociais. Entra naquele velho (porém pujante e vivo) debate sobre a influência das relações sociais na formação das individualidades e vice-versa. Essa é, definitivamente, uma questão universal. Kafka deve ter se inquietado com isso. Gostaria de saber até que ponto. As obras de Modesto Carone, o maior estudioso de Kafka do Brasil (se não me engano) deve ter umas perspectivas bem interessantes a esse respeito, devemos consultá-lo.

[Off-topic] Poxa que legal ver você citar o Carpeaux, comprei o História da Literatura Ocidental semana passada. É uma obra de referência mesmo, está se mostrando uma das minhas melhores aquisições. Gosto da forma como ele encara, como ele mesmo disse, os fatores estéticos e sociológicos, isso dá uma base sólida para as análises, ainda que ele não se detenha longa e particularmente nos autores. Enfim, estou achando muito boa a coleção.[/align]
 
Será que nesse História da literatura ocidental o Carpeaux não fala ou faz menção ao Kafka? Pode ser que sim... Não tenho o livro, mas pretendo adquirí-lo sem dúvidas... Carpeaux foi sem sombra de dúvidas um dos maiores literatos que já tivemos... Só consigo discordar dele quando ele fala do Fausto do Thomas Mann; mas fora isso, o cara acerta em cheio (inclusive ao dizer que o Fausto do Goethe é o último dos grandes poemas modernos [uma frase diabolicamente bem feita, diga-se de passagem] e etc)

Achei só isso:

http://ler-e-escrever.blogspot.com/2008/06/franz-kafka-por-otto-maria-carpeaux-i.html
http://ler-e-escrever.blogspot.com/2008/06/franz-kafka-por-otto-maria-carpeaux-ii.html

Franz Kafka, por Otto Maria Carpeaux
- Kauka.
- Como é o nome?
- Kauka!
- Muito prazer.

Esse diálogo, que certamente não é dos mais espirituosos, foi meu primeiro encontro com Franz Kafka. Ao ser apresentado a ele, não entendi o nome. Entendi Kauka em vez de Kafka. Foi um equívoco.

Hoje, o “Kauka” daquele distante ano de 1921 é um dos escritores mais lidos, mais estudados e – infelizmente – mais imitados do mundo. Mas só Deus sabe quantos são os equívocos que formam essa glória. O romancista de O Processo é, para alguns, o satírico que zombou da burocracia austríaca; e para outros o porta-voz da angústica religiosa desta época; e para mais outros o inapelável juiz da fraqueza moral do gênero humano e do nosso tempo; e para mais outros um exemplo interessante do Complexo de Édipo, etc., etc., etc. Tudo, em torno de Kafka, é equívoco. Equívoco também foi aquele meu primeiro encontro com “Kauka”.

Foi em 1921, em Berlim. Embora só contando os anos do século, eu já tinha passado por duas experiências de guerra e revolução. Estudante universitário, agora, que sonhava com uma carreira literária. Berlim, naqueles anos do primeiro pós-guerra, foi um centro de vanguardas: expressionismo, dadaísmo, os primeiros pintores abstracionistas, simpatizantes do comunismo e fundadores de seitas religiosas e vegetarianas, uma boêmia na qual os jovens austríacos desempenhavam papel grande e barulhento – e alguns grandes escritores de verdade: Döblin, Arnold Zweig, Werfel.

No Café Românico, centro de boêmia, esses homens feitos ocupavam mesas especiais, de que ninguém ousava aproximar-se sem ser especialmente convidado; o que não aconteceu nunca. Olhávamos para lá com inveja, escutando para apanhar, talvez, um pedaço de conversa. Rara foi a oportunidade de um convite para as tardes de domingo, no apartamento de um ou outro daqueles escritores, no bairro boêmio, mas elegante, do Bayrischer Platz, hoje um montão de ruínas. E numa dessas tardes cheguei a conhecer pessoalmente Franz Kafka.

Conheci poucos entre os presentes. Fui sumariamente apresentado. Sentindo-me um pouco perdido no meio dessa gente toda, não tendo a coragem de aproximar-me do centro da reunião, da grande e belíssima atriz D. F. – que tinha fama de Messalina – retirei-me para um canto já ocupado por um rapaz franzino, magro, pálido, taciturno. Eu não podia saber que a tuberculose da laringe, que o mataria três anos mais tarde, já lhe tinha embargado a voz. E então se desenrolou “aquele” diálogo.

Foi este o começo e o fim do meu primeiro encontro com Franz Kafka. Ao sair do apartamento, perguntei a meu amigo e introdutor: “Quem é aquele rapaz magro com a voz rouca?” Respondeu: “É de Praga. Publicou uns contos que ninguém entende. Não tem importância”.

(...)

Meu segundo encontro com Franz Kafka, talvez cinco anos mais tarde., foi outra vez em Berlim, no escritório de uma casa editora. Antes de ir para a Itália, onde continuei os estudos universitários, tinha feito alguns trabalhos para aquela editora, chamada Die Brücke (A Ponte), mas nunca consegui receber dinheiro.

Voltando para Berlim, em 1926, ouvi que a casa acabava de entrar em falência. Fui para lá. O diretor me deixou esperar na ante-sala, mais de meia hora. Num cantinho vi um montão de livros, todos iguais. Tirei um exemplar, abri: O Processo, romance de Franz Kafka. Distraído, comecei a ler sem prestar muita atenção, quando o ex-diretor da ex-Brücke me bateu nas costas.


“Pagar não posso, querido”, dizia o homem, “mas se você quiser, pode levar, em vez de pagamento, esse exemplar e, se quiser, a tiragem toda. O Max Brod, que teima em considerar gênio um amigo dele, já falecido, me forçou a editar esse romance danado. Estamos falidos. Nem vendi três exemplares. Se você quiser pode levar a tiragem toda. Não vale nada”.

Fiquei triste. Tinha esperado um pagamento de 130 marcos e o homem me quer dar seu encalhe. Agradeci vivamente, e com certa amargura. Mas levei comigo aquele exemplar que já tinha aberto.

Foi a maior burrice de minha vida inteira. Toda aquela tiragem foi vendida como papel velho e inutilizada. Um exemplar da 1a. edição de O Processo é hoje uma raridade para bibliófilos. Nos Estados Unidos paga-se mil dólares por um livro desses, ou mais. Se eu tivesse aceito o presente, seria hoje milionário... Aliás, fugindo da fúria nazista, em Viena, março de 1938, perdi minha biblioteca inteira, que foi depois confiscada e dispersada. Mas cheguei, mais tarde, a receber na Bélgica um grupo de volumes que tinha, pouco antes do desastre, emprestado ao cônsul geral do Estados Unidos, em Viena, e que este fez questão de devolver ao legítimo dono. Um desses livros foi aquele exemplares da 1a. edição de O Processo que, desse modo, fica até hoje comigo. E não me pretendo separar jamais do livro, pois foi meu segundo encontro com Kafka.
 
[align=justify]Vou consultar aqui o livro e volto a postar assim que encontrar as referências. Ah, Mavericco, só para constar: a Livraria do Senado Federal (o site está temporariamente fora do ar, mas logo volta) reeditou esse livro em 2008, e agora os quatro volumes estão a venda lá pela bagatela de R$ 200,00 frete grátis. Foi assim que adquiri o meu, e ainda me livrei de uma vendedor da Estante Virtual que queria me arrancar R$ 400,00. Enfim, uma obra que a cada vez que consulto me orgulho mais de ter adquirido.[/align]
 
[align=justify]Atendendo a uma intimação do Lucas, aqui estou para dar meus pequenos palpites na discussão. :sim:

Lucas_Deschain disse:
Não sei, a angústia parece ter um papel primordial nesse livro, a angústia por ser um inseto, por se ver fora do círculo familiar, por ser estranho, por ser indesejado, por causar asco nas outras pessoas, por praticamente não vislumbrar qualquer tipo de esperança das coisas voltarem a ser como eram antes (o que, levando em consideração os pensamentos de Samsa no começo do livro já não eram nada atrativos) etc.

Acho que a angústia se situa na mente do leitor e não propriamente nos pensamentos de Gregor. Vou falar um pouco sobre isso, após esta segunda citação:

Lucas_Deschain disse:
Essa experiência (um tanto vergonhosa e evidência da minha ignorância na época em que peguei o livro pela primeira vez) me fez perceber uma coisa que queria ver o que vocês pensam sobre: quando da minha primeira tentativa de leitura, a transformação de Samsa em inseto foi mostrada com tanta naturalidade que nem me passou pela cabeça que essa era a tal metamorfose. Essa naturalidade com que Kafka narra certos eventos no mínimo incomuns faz com que a prosa dele atinja mais diretamente o leitor. Acho essa escolha essencial para a obra ter o impacto que tem, pois ela é tão "banal" (no sentido de normal, comum, ordinária) que se torna mais verossímil. A estranheza se dá mais nas implicações dessa transformação do que na transformação em si. Como compreender isso? É algo prolífico e interessante para perguntar-se e discutir ou é uma simples leitura mal deglutida que insisite em manter resíduos mnemônicos em minha cabeça?

É exatamente daí que tiro a minha conclusão de que Gregor não padece de angústia, pelo menos, não visível. Seus pensamentos são muito mundanos. Veja que, logo após sua transformação, sua principal preocupação é levantar-se e ir trabalhar. Aliás, se ele não tivesse sido trancado no quarto, quem garante que ele não teria efetivamente aparecido na empresa em que trabalhava como um besouro/barata?

Por conta disso, entendo que a angústia se encontra mais na mente do leitor. Gregor não parece padecer de uma angústia minimamente proporcional ao estado em que se encontra. Aliás, o livro é bem parcimonioso em reflexões de Gregor sobre sua transformação; ele, em momento algum, por exemplo, questiona-se sobre como essa metamorfose ocorreu, o que a desencadeou, etc.

Sobre esse aspecto da visão de Gregor sobre si mesmo transformado, tenho uma dúvida que me assalta. Ele parece aceitar essa situação com uma certa calma, preocupando-se somente com consequências mais materiais ou banais da sua metamorfose. Mas o quanto isso não se deve à própria transformação? Como o livro se inicia com a metamorfose, não temos acesso ao Gregor-humano pré-inseto com seus pensamentos, idéias próprias, sonhos, livres da couraça do besouro/barata. Poderia sua metamorfose não se ter limitado ao corpo, mas ter atingido sua própria visão de mundo?

É impressionante como Gregor é capaz de cada pensamento plácido (insetóide por assim dizer) em sua condição. Já no dia seguinte à sua transformação, ele está meditando: "'Que vida pacata minha família leva', Gregor disse a si mesmo, olhando fixo para a escuridão e sentindo um grande orgulho por ter podido proporcionar a seus pais e à sua irmã uma existência tranquila numa boa residência."

E depois ele ouve que o pai tinha uma reserva financeira constituída com "desvios" do dinheiro que ele levava para casa, e que, por conta disso, retardavam o dia em que poderia se ver livre da condição de caixeiro-viajante, concluindo: "...mas agora era sem dúvida melhor que o pai tivesse agido desse modo."

Mavericco disse:
Talvez o que Kafka realmente proponha seja uma metamorfose nossa... Para que nós mudemos nossas atitudes e repensemos nossos papeis sociais... Para que deixemos de ser Samsa inseto e passemos a outra condição, que não está descrita no livro, mas que está implantada na mente do leitor... Afinal de contas, literatura de qualidade é o conjunto do que se lê e do que se não lê.

Acho que não, Mavericco. Poderia ser por aí, caso Gregor tivesse conseguido sair de seu estado como inseto, de forma que estivesse nos mostrando um caminho.... Mas, por outro lado, não tenho certeza do que Kafka propõe, nem tenho uma teoria alternativa a apresentar. Talvez Gabriel García Márquez não esteja tão longe da verdade.... Ou não? XD
[/align]
 
Tataran disse:
Sobre esse aspecto da visão de Gregor sobre si mesmo transformado, tenho uma dúvida que me assalta. Ele parece aceitar essa situação com uma certa calma, preocupando-se somente com consequências mais materiais ou banais da sua metamorfose. Mas o quanto isso não se deve à própria transformação? Como o livro se inicia com a metamorfose, não temos acesso ao Gregor-humano pré-inseto com seus pensamentos, idéias próprias, sonhos, livres da couraça do besouro/barata. Poderia sua metamorfose não se ter limitado ao corpo, mas ter atingido sua própria visão de mundo?

Bem... Pode ser que a metamorfose não tenha afetado sua vida material ou banal; mas pelo contrário, tenha apenas mantido e firmado a mesma... Afinal de contas, se formos pensar a vida de Gregor pelo que "Kauka" nos propõe, a vida dele parecia ser bem banal... Acordar todos os dias, trabalhar, sustentar a família... Pessoas no mundo inteiro são Samsas; a diferença é que elas não acordam como um inseto malucão e ficam presas no quarto -- o que, dependendo da pessoa, poderia ser uma tragédia, visto que o trabalho é para essa pessoa a única forma de se conseguir viver dignamente...

Tataran disse:
Mavericco disse:
Talvez o que Kafka realmente proponha seja uma metamorfose nossa... Para que nós mudemos nossas atitudes e repensemos nossos papeis sociais... Para que deixemos de ser Samsa inseto e passemos a outra condição, que não está descrita no livro, mas que está implantada na mente do leitor... Afinal de contas, literatura de qualidade é o conjunto do que se lê e do que se não lê.

Acho que não, Mavericco. Poderia ser por aí, caso Gregor tivesse conseguido sair de seu estado como inseto, de forma que estivesse nos mostrando um caminho.... Mas, por outro lado, não tenho certeza do que Kafka propõe, nem tenho uma teoria alternativa a apresentar. Talvez Gabriel García Márquez não esteja tão longe da verdade.... Ou não? XD

Mas ele não precisa tirar Samsa do estado de inseto: basta que ele coloque o sofrimento de Samsa como um aviso ou uma reflexão... Mesmo porque, se Samsa tivesse saido de sua condição no final, as pessoas não teriam o mesmo impacto e a mesma capacidade reflexiva... Os objetivos do texto entrariam numa metamorfose indesejada...

Quanto ao Marquez... Bem. Como nunca li nada dele, peço a ajuda aos universitários.
 
[align=justify]
Mavericco disse:
Bem... Pode ser que a metamorfose não tenha afetado sua vida material ou banal; mas pelo contrário, tenha apenas mantido e firmado a mesma...

É verdade, pode ser. Mas o que eu estou defendendo é que não temos certeza, pois só conhecemos o Gregor antes da transformação pelas recordações e reflexões do Gregor metamorfoseado. Pode ser que seu prisma de visão tenha sido alterado com sua transformação e, como só enxergamos seu estado anterior pelas suas memórias, podemos estar presos em uma visão com um prisma deturpado.

Mavericco disse:
Mas ele não precisa tirar Samsa do estado de inseto: basta que ele coloque o sofrimento de Samsa como um aviso ou uma reflexão... Mesmo porque, se Samsa tivesse saido de sua condição no final, as pessoas não teriam o mesmo impacto e a mesma capacidade reflexiva... Os objetivos do texto entrariam numa metamorfose indesejada...

Sim, efetivamente, ele não precisava, mas, de certa forma, não sei.... Não consigo enxergar essa interpretação no livro...

Mavericco disse:
Quanto ao Marquez... Bem. Como nunca li nada dele, peço a ajuda aos universitários.

Eu estava me referindo a uma definição dele que está referida em algum lugar neste tópico (talvez tenha sido postada pelo Lucas) de que A Metamorfose é a história de um jovem que se transforma em um inseto.
[/align]
 
Ah, sim... Foi o -Arnie- quem postou:

-Arnie- disse:
Eu só lembro de Garcia Marquez. Para ele, A Metamorfose é apenas um livro de um rapaz que virou insento, nada mais além disso. Hahaha

Existe essa possibilidade... Mas aí ou Marquéz estaria querendo um pouco de atenção ou estaria matando a metáfora.
 
[align=justify]Opa, a coisa está ficando boa.

Frente ao que foi dito, bem, repenso sobre a angústia. Não a retiro, mas reconsidero-a perante novos argumentos. OK, Tataran, entendo quando dizer que muito da angústia vem do leitor colocar-se no lugar de Samsa e viver, por conseguinte, as consequências de ser um inseto. Não duvido disso, aliás, penso que esse é um dos grandes acertos do livro, quando o Mavericco falou que somos Samsas, acho que ele tocou num ponto nevrálgico: a banalidade ou o fato de ser extremamente comum pessoas terem hábitos e um cotidiano similares ao do Samsa, Kafka (ou 'Kauka', hehe) conseguiu promover uma identificação absurda por parte do leitor. Isso é feito sem sentimentalismos pseudo-confortantes, mas com uma naturalidade incômoda, que atira o leitor na pele de um ser humano que tornou-se diferente de tudo o que costumava ser e da sociedade que o rodeia.

Por isso é que digo: a angústia é sim parte fundamental da trama, ela se dá em grande parte por causa do leitor, que projeta nele seus próprios sentimentos por estar momentaneamente vivenciando sua própria metamorfose (já que ele está temporariamente na pele de Samsa); mas isso não é tudo, o tratamento que o autor dá a transformação e seus sucedâneos também tem um quê de angústia, uma melancolia, um certo derrotismo e resignação, recheados de fatalismo que tolda todas as possíveis tentativas de superação ao fracasso iminente, implosivo e explosivo. A aceitação da condição de execrado (e execrável também, de certa forma) é um indício disso.

Posso estar desencadeando uma reação em cadeia ao dizer isso, mas para que são os debates se não para isso: apelo para a contextualização do autor e obra para melhor compreender que possíveis sentidos sócio-históricos estão por trás dessa intrigante e perturbadora obra. Levar em consideração o papel que o leitor desempenha é fundamental, mas não se pode colocá-lo acima de seus significados apreensíveis, seja em relação às intenções do autor, seus condicionamentos sociais, culturais, econômicos, particulares etc. etc. etc. Posso estar incorrendo em erro ao dizer isso (inclusive esse é um dos pontos mais intrigantes e fascinantes da Literatura) mas, apesar da subjetividade e da infinidade de leituras que podem ser feitas dessa e de outras obras, ainda assim há fatores que são "objetivos" (notem que usei aspas) e que devem ser levados em consideração ao analisar alguma obra. Se isso não for feito podemos correr o risco de cairmos em um relativismo perigoso, em que qualquer coisa dita é verdade, possível e plausível.

O que há de sui generis na vida de Kafka que podemos levar em consideração ao analisar sua obra?

[Semi Off-topic] Enfim, não quero que me tomem como pedante ou dono da verdade, mas como alguém que está querendo defender seu ponto de vista, que pode vir a estar errado, mas que me incomoda (no sentido positivo). Por favor, digam o que pensam sobre isso.[/align]
 
A relação perturbada do Kafka com o pai dele é, a meu ver, essencial para compreendermos a relação entre Samsa e sua família...

Mas aquém desta, creio que a formação do Kafka em Direito seja também um fator interessante para ser notado: Kafka conhecia os direitos e deveres de uma pessoa, tanto que utilizou (quer dizer, acho que utilizou) isso em O Processo... Ele sabia que as leis regem uma sociedade, mas sabia também que a sociedade rege e compõe as leis, com a diferença destas segundas leis serem mais fortes e mais determinantes na vida de um indivíduo.

Se eu vou preso de um dia pro outro, obviamente eu vou querer saber o porque desta prisão. Estupro, assassinato, pedofilia...? Existe uma razão ética ligada com esses fatores que podem me levar à cadeia, e caso não existam razões éticas, aí estaríamos tratando de uma ditadura. O fato é que se eu for preso por tráfico de drogas, eu estarei sendo preso por algo que é eticamente errado e que eu mesmo considero e compreendo como sendo eticamente errado. Essas são as leis físicas, digamos.

Agora as leis compostas pela sociedade são completamente diferentes, na medida em que elas são consideradas éticas de forma "mutável". Se eu moro sozinho numa casa e, sei lá, fico mexendo minha cama de noite, meus vizinhos vão me ver com maus olhos, vão me julgar a partir de um "código de leis", e eu muito provavelmente vou ganhar uma fama de taradão do bairro. É claro que existirão aqueles que não vão ver nada de mau nisso, mas sabemos que estes são excessões.

O fato aqui é que a formação de Kafka em direito permitiu que ele observasse essa diferenciação de "leis" de forma mais analítica... É por isso que A Metamorfose é mais trágica que O Processo, na medida em que A Metamorfose atua nas leis sociais ferrenhas, aquelas que permitem que um homem seja execrado da sociedade por ter se metamorfoseado num inseto gigante... É porque o absurdo de A Metamorfose é menor que o dO Processo, se formos pensar bem...: nO Processo, o homem acorda e é preso do nada, o que é um absurdo tendo em vista qualquer código de leis contemporâneo... Mas na Metamorfose nós temos outro cenário, que é o de um homem que se transforma num inseto e é excluído por todos... Teria eu coragem de prender alguém do nada? Creio que não. Teria eu coragem de excluir socialmente uma barata gigante? Creio que sim.
 

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