Bom, nessa segunda fase planejei dedicar-me à
Clara dos Anjos, romance publicado postumamente em folhetim, de janeiro de 1923 a maio de 1924 e, em livro, no ano de 1948. No (re)lançamento das obras completas de Lima Barreto, em edição da Brasiliense, Clara dos Anjos teve prefácio de ninguém menos que Sérgio Buarque de Holanda. Aliás, na intelectualidade efervescente do pós-30, quando se buscava na nossa mestiçagem e suas manifestações a identidade nacional, a obra de Lima Barreto foi visitada e teve, certamente, grande papel no entendimento do período da República Velha, pois ele, como já dito em outra oportunidade, andou na contramão da mesmice daqueles tempos de liberalismo excludente. Toda euforia dos jornalistas e literatos do período com as reformas políticas, sociais e econômicas, foi por ele tenazmente combatida, já que em todas o povo e a miséria decorrente de tais práticas administrativas era varrido para debaixo do tapete. Talvez por isso, o marxista Caio Prado Júnior - um dos nossos melhores nomes - tenha dito que a obra de Lima Barreto é a de
"um dos maiores, sob muitos aspectos, do maior romancista brasileiro".
Depois de
Recordações do Escrivão Isaías Caminha, a vida literária de Lima Barreto teve lá suas dificuldades ampliadas. Não partidário das letras para brindes de sobremesa, o mulato pobre, funcionário público, de pai demente, sem parentes livreiros e agora mal visto pelos jornais, não encontrava meios de se publicar. Salvo contos e crônicas em jornais de médio e pequeno porte, seu nome não tinha o reconhecimento merecido. Tanto que
Triste Fim de Policarpo Quaresma, para muitos sua obra prima, teve a edição bancada pelo próprio, com empréstimos contraídos a juros pornográficos. O rapaz do subúrbio, que em muitas passagens do seu
Diário Íntimo se queixa dos preconceitos sofridos pela cor, também reclama a constante falta de dinheiro. Há, inclusive, um esboço de planejamento financeiro, onde os seus parcos vencimentos vão para o ralo em aluguel, dívidas, remédios, et cetera. Cito a passagem monetária não para angariar pena alheia, mas para mostrar que, mesmo arrebentado, as letras valiam todo o sacrifício,
"Queimei os meus navios, deixei tudo por estas coisas de letras" - pois é através dela que combatia as injustiças e desmandos que se amontoavam aos seus olhos.
Essa obsessão pela literatura, no seu caso a militante, também a encontramos quando se diz de Clara dos Anjos. A mulata do subúrbio, seduzida pelo canalha branco de boa estirpe, está em seu
Diário Íntimo, na forma de novela, num conto e, finalmente, no romance. Desses dois últimos, salvo algumas exceções, o desenrolar é o mesmo. Pode-se dizer que o conto é um resumo do romance. Já a novela, embora o destino seja aquele, o caminho é alternativo e termina por desnudar de maneira ainda mais direta o preconceito racial e as teorias racistas que pipocavam à época. Aqui, vale o comentário: pode-se ter a impressão de que Lima Barreto é repetitivo nos seus temas, sempre com a abordagem ao racismo e a desigualdade de classes . Porém estes se fazem de tantas e sutis formas que nem mesmo a arte, com todas as suas possibilidades, conseguem denunciá-los e combatê-los. E quem o sofreu na pele, sendo pobre e mulato como o autor, de feroz personalidade, jamais se cansaria de expô-los.
Retomando, na novela de 1904, Clara é afilhada de Carlos Alves da Silva, primeiro oficial da Secretária do Império. Homem importante, de fala abolicionista típica, uma vez que suas palavras vazias e desconectadas da ação transmitem a ideia muito vigente da bondade do branco em proceder com a libertação do negro. São pelos discursos, não pelas atitudes - que lhe passam "despercebidas" (e aqui interpreta-se certa aceitação passiva do negro em sua condição ainda servil, mesmo nos períodos próximos e pós-Abolição) - que o mulato Manuel dos Anjos e Florência, pais de Clara, o convidam para padrinho da menina.
Lima Barreto busca na Guerra do Paraguai alguns dos motivos que fizeram rolar as ideias abolicionistas. Utiliza de tais ideias para aproximar as duas famílias, da Silva e dos Anjos e, posteriormente, desconstruir as falsas propagandas que se firmavam naqueles tempos. Vamos lá:
" Havia pouco que o Brasil definitivamente domara o Paraguai: com essa vitória o país tinha tomado consciência de si mesmo - era como um tímido que, superada grave dificuldade de sua vida, acredita na sua energia, no seu valor e, quiçá, na efetividade de sua existência. Um tal sentimento que naquela época se apoderara fortemente da nação, traduzia-se num explosivo desejo de progresso, de engrandecimento (...)
Mas o que veio a constituir, depois dela, a verdadeira questão palpitante de norte a sul do Império foi a que se chamou do elemento servil. A guerra, pondo em aperto contato senhores e recentes escravos, fazendo-os sofrer os mesmos perigos e as mesmas aguras, aproximou-os, dando nascimento a uma mútua simpatia entre eles e a uma melhor compreensão das suas necessidades. Com o pleno sucesso das armas imperiais, espalharam-se por todos os recantos do país gente tomada de generosos sentimentos pelos escravos, e essa foi a sementeira donde brotou mais tarde a árvore da abolição..."
Um dos homens tomados por essa generosidade foi justamente Carlos Alves da Silva. Numa recepção, declama a poesia de Castro Alves,
As vozes d'África, emocionando Manuel que, tal como Lima, crê
"conquanto não houvesse sido escravo, se julgava preso à sorte dos cativos por fortes laços de sangue e raça".
Porém, ao contrário do personagem, Lima Barreto não era inocente ao ponto de acreditar na falácia abolicionista. Ao dizer que a Guerra do Paraguai despertou, ou antes fortaleceu o asco contra a escravidão, enchendo de bondade o coração dos senhores, ele se utiliza das lembranças e reflexões de Manuel acerca da participação dos negros e mulatos no conflito e alerta para o descompasso entre comícios e gestos com o seu Carlos Alves da Silva, principalmente em relação à família dos Anjos, com a qual tem atitudes dignas de senhor de escravos, para reverter a ilusão e pintar o retrato real do sentido da abolição atuando nos níveis da mentalidade.
E como o período era de grandes mudanças e todas as questões se relacionavam entre si, Lima Barreto chama outros personagens para abordar as "manias" daqueles tempos. Cito dois, pois as ideias defendidas por ambos são combatidas em diversos escritos do autor: Boaventura Iperoig da Silva, o fanático positivista, de
"espírito rígido" e que só
"falava por dogmas", incapaz de abstrações; e o doutor Alfredo, pregador da cartilha das teorias raciais:
" - Não. É tudo! É tudo! Uma cidade feia, suja, esburacada, sem estética, sem parques. Um relaxamento... maldita colônia... (...)
- Sabe o que nos matou?
- Não (...)
- Foi o negro. (...) são inferiores, incapazes pra civilização.
E a estória segue, chegando a Clara, propriamente, que sintetizará tudo que foi levantado até aqui, sofrendo o tão falado preconceito que, se atingia homens de maneira cruel, era ainda mais violento quando se tratava das raparigas mulatas e pobres. Antes de um rapidíssimo resumo, é preciso dizer de uma diferença básica do conto/romance para a novela. Enquanto nos primeiros Clara é superprotegida a ponto de só conhecer o mundo depois de conquistada e desvirginada, na novela temos uma menina ainda sonhadora, porém com contornos, vamos dizer, inocentemente maliciosos. Morto o pai, a família sem arrimo, outrora pobre, torna-se miserável. Os parcos vencimentos da mãe a obrigam a implorar ajuda, mas termina por encontrar todas as portas fechadas, principalmente pelos arautos abolicionistas. Clara emprega-se como costureira para engordar a renda familiar e acaba conhecendo o rapazola que a desencaminhará, concretizando os medos de Florência (vale dizer que Lima Barreto tinha os mesmos temores em relação à irmã). Os dois encontram-se constantemente num quarto para suas horas de amor e no final, como esperado, ele a abandona. Não sem antes deixar a passagem livre para que seus comparsas também desfrutem da mulata, reforçando a imagem da possível prostituição a que muitas mulheres chegavam pela sua condição sócio-racial. Clara não permite que ninguém a toque, faz-se escândalo e todos vão parar na delegacia onde, naturalmente, o branco rico e algoz inverte a situação. Sobra para a imprensa, também. Não diretamente, como o faz em
Recordações do Escrivão Isaías Caminha, mas sutil, ao dizer que os órgãos jornalísticos compactuam com a ideia natural de desigualdade e impunidade, relatando o caso e expondo o nome de Clara com todas as maiúsculas possíveis, enquanto acobertam os rapazes e familiares, citando, quando muito, apenas as suas iniciais.
No próximo post volto com o romance. Antes, no entanto, há que se pensar na importância das linhas de Lima Barreto. Lilia Moritz Schwarcz nos diz que ele
"é o termômetro nervoso de uma frágil república". E o é. Porém, mais de que um cronista de uma determinada época, sua obra, seu Quaresma, seu Gonzaga de Sá, sua Clara dos Anjos, todos eles, toda ela, é atual, pois as questões levantadas, os problemas enfrentados, permanecem em sua plenitude de consequências. Assim, estendo ao Lima Barreto as palavras de Dermeval Saviani, quando este rebateu os críticos que diziam ser anacrônico o marxismo:
" (...) uma filosofia é viva e insuperável enquanto o momento histórico que ela representa não for superado (...) "
Lima Barreto, mais do que todos os outros, para entendermos e pensarmos a nossa realidade.
Ou, nas palavras do professor Antônio Arnoni Prado,
"Lê-se Lima Barreto para aprender a ser brasileiro ".