Tharëstur disse:
As convicções pessoais podem ser inferidas por um determinado leitor somente se a obra é flexível o bastante para permitir dissonâncias, como é o caso das obras de Tolkien.
Com toda certeza! Uma das coisas mais agradáveis da literatura em geral é podermos discutir sobre ela. Qual a graça seria, aliás, se nãi pudéssemos, por exemplo, trocar impressões em um fórum de discussões?
Você acha que a perfeição de Eru não está ligada a previsão de futuro, enquanto que eu já penso: sendo onisciente ou tendo apenas conhecimento do futuro, Ilúvatar era imperfeito como Deus.
Isso é uma prova de como essa discussão é cheia de aspectos subjetivos, cada leitor acaba formando seus próprios conceitos, não é mesmo? Apesar disso, precisamos reconhecer uma coisa: Tolkien tinha um problema grande, e não era um problema pequeno. O "problema" que ele enfrentava era o mesmíssimo da sua religião: ele era cristão e católico. Como conciliar onisciência e livre-arbítrio? Eu não consigo, para mim são conceitos absolutamente excludentes: se existe liberdade absoluta de ação, então os seres são imprevisíveis. Por isso eu não considero esse um critério para "perfeição", pois nem mesmo o perfeito tem a obrigação de conseguir o que é logicamente impossível (ou melhor, sendo mais humilde, eu não consigo conceber isso).
Ou seja, o que eu entendo é que Tolkien fez com que Eru, ao criar seres de livre-arbítrio, abrisse mão do seu conhecimento absoluto sobre o futuro. Para ele conhecer completamente o futuro, deveria ter criado seres não-independentes, que funcionassem como seres programados ou como seres que agem apenas sob o seu comando.
Apesar de existir referência sobre a possibilidade de Arda ser Curada nas Cartas, essa cura de sua desfiguração e desafortúnios nunca existiu efetivamente e possivelmente nunca existirá, uma vez que, os espíriots de livre-arbítrio, mesmo componentes do bem ou do mal, não podem ser destruídos, independentemente da vontade do seu criador.
As referências não são exatamente muitas, mas estão longe de serem pouco ou pouco confiáveis, na minha opinião. O HoME X diz assim em um trecho (em inglês, desculpe, e um pouco grande, mas forma um raciocínio só):
"Similarly the Elves faded, having introduced 'art and science'. Men will also 'fade', if it proves to be the plan that things shall still go on, when they have completed their function. But even the Elves had the notion that this would not be so: that the end of Men would somehow be bound up with the end of history, or as they called it 'Arda Marred' (Arda Sahta), and the achievement of 'Arda Healed' (Arda Envinyanta). (They do not seem to have been clear or precise - how should they be! - whether Arda Envinyanta was a permanent state of achievement, which could therefore only be enjoyed 'outside Time', as it were: surveying the Tale as an englobed whole; or a state of unmarred bliss within Time and in a 'place' that was in some sense a lineal and historical descent of our world or 'Arda Marred'. They seem often to have meant both. 'Arda Unmarred' did not actually exist, but remained in thought - Arda without Melkor, or rather without the effects of his becoming evil; but is the source from which all ideas of order and perfection are derived. 'Arda Healed' is thus both the completion of the 'Tale of Arda' which has taken up all the deeds of Melkor, but must according to the promise of Ilúvatar be seen to be good; and also a state of redress and bliss beyond the 'circles of the world'.)"
Eu coloquei trechos em negrito porque destacam de forma melhor a idéia que estamos discutindo. Existe um outro trecho, mas bem mais acessível, porque está no Silmarillion, no Ainulindalë. Mas ele é menos direto:
"Nunca, desde então, os Ainur fizeram uma música como aquela, embora tenha sido dito que outra ainda mais majestosa será criada diante de Ilúvatar pelos coros dos Ainur e dos Filhos de Ilúvatar, após o final dos tempos.. Então, os temas de Ilúvatar serão desenvolvidos com perfeição e irão adquirir Existência no momento em que ganharem voz, pois todos compreenderão plenamente o intento de Ilúvatar para cada um, e cada um terá acompreensão do outro; e Ilúvatar, sentindo-se satisfeito, concederá a seus pensamentos o fogo secreto."
Essa "segunda música" geraria uma nova Arda, mas dessa vez sem o Mal.
Sobre os Ainur, eu entendi daquela forma porque você havia dito que os Ainur (no caso, Melkor) "são" uma projeção ou parte da mente de Ilúvatar. Eu acho que isso é diferente de ter origem do pensamento de Eru. Por exemplo, eu entendo assim: Manwë teria tido origem na parte da mente de Ilúvatar que seria a mais "majestosa", com mais relação com o aspecto de "comando", por isso ele seria o com maior espírito de liderança. Melkor seria um caso especial, porque além de ter "os maiores dons de poder e conhecimento", ele ainda tinha "um quinhão de todos os dons de seus irmãos; ou seja, Melkor não seria original de uma parte do pensamento de Eru, mas seria o mais genérico de todos, o mais poderoso.
Eu acho que concordo quando você disse que "'projeções da mente' de Eru ser parte constituinte da personalidade de cada Ainu, conjuntamente com o livre-arbítrio"; mas essas "projeções" de forma alguma poderiam ser entendidas como uma forma de preterminar o comportamento e as escolhas dos seres com livre-arbítrio, pois então elas não seriam, de fato "com seus
próprios pensamentos e recursos".