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Civilidade e discurso

Peixe-Boi

Usuário
Olá

Tem um assunto que está me tirando o sono ultimamente que, sem achar um fórum mais apropriado para discuti-lo, decidi trazer para cá.

Se trata do problema de discernir o que é um discurso aceitável ou não.

Aviso que isso é relativamente confuso para mim, então o tópico vai ficar um pouco convoluto. Possivelmente.

Dando uma info histórica, esse interesse começou a contragosto quando passei a sofrer bullying na faculdade graças a uma coordenadora ensaboada que me ofendeu em privado e pagou de coitada na frente dos outros. Patifaria, em suma. O que é importa no momento é que fiquei pensando nisso graças ao meu coping mechanism de intelectualizar problemas pessoais.

Geralmente, ninguém acredita que discursos devam ser incivis. O conceito protegido de civilidade pode ser desde o tipo mais óbvio e menos polêmico, como insultos (seu burro, bosta, etc) até algo mais questionado ou intelectualizado (policiamento de tom e paradoxo da tolerância). Mas tenho uma impressão anedótica baseada especialmente nas minhas experiências com fóruns tradicionais, como este ou o orkut, e na observação de umas poucas redes atuais, como o reddit, que a opinião pública do que é incivilidade mudou, e não apenas em relação a discursos de ódio ou aqueles usados contra minorias, que são mais comentados hoje.

Então, sem a visão geral de como os vários discursos se relacionam ou manifestam, vou listar os tipos de discurso eventualmente chamados de incivis que consegui identificar:

INSULTOS

Começando com insultos puros, como quando se chama o outro de bosta, estúpido e etc. Pode incluir ameaças de agressão física, humilhação de cunho sexual, escárnio e piadas ofensivas, insultos de caráter, insultos indiretos e dissimulados, etc. Desprezo explícito ou implícito eu também colocaria nessa categoria.

Incluo aqui todo o tipo de incivilidade que seria normalmente condenado pela maior parte das pessoas. Todos já devem ter recebido ou no mínimo presenciado algo do tipo.

Geralmente são inúteis e só servem para fazer o outro se sentir mal. Eu digo geralmente, porque não há como dizer que alguém fez algo anti-ético, usando uma categoria específica, de forma que não seja ofensiva. Ser chamado de bully, por exemplo, é ofensivo, mas é a nomenclatura científica para certos abusos.

RETÓRICA

Relacionadas a essa categoria estão as incivilidades de raciocínio, digamos.

São os casos em que se faz de tudo para se ignorar ou passar por cima de argumentos.

Falácias ad hominem, ignorar a proposição alheia, artifícios de silenciamento (policiamento de tom e o que fazem com vítimas de bullying me vêm à mente), artifícios de retórica, etc. Quando é só sobre o argumento já é ruim. Quando é usado para causar prejuízo de qualquer natureza a alguém fica pior ainda.

Pessoalmente, eu considero falácias e artifícios como uma forma de incivilidade, mas nem sempre elas são percebidas, mesmo por quem fala.

DISCURSO DE ÓDIO

Pela definição do site da UN: “any kind of communication in speech, writing or behaviour, that attacks or uses pejorative or discriminatory language with reference to a person or a group on the basis of who they are, in other words, based on their religion, ethnicity, nationality, race, colour, descent, gender or other identity factor.”

PARADOXO DA TOLERÂNCIA

Tirado da wikipedia, um trecho de Popper: "Less well known is the paradox of tolerance: Unlimited tolerance must lead to the disappearance of tolerance. If we extend unlimited tolerance even to those who are intolerant, if we are not prepared to defend a tolerant society against the onslaught of the intolerant, then the tolerant will be destroyed, and tolerance with them. — In this formulation, I do not imply, for instance, that we should always suppress the utterance of intolerant philosophies; as long as we can counter them by rational argument and keep them in check by public opinion, suppression would certainly be unwise. But we should claim the right to suppress them if necessary even by force; for it may easily turn out that they are not prepared to meet us on the level of rational argument, but begin by denouncing all argument; they may forbid their followers to listen to rational argument, because it is deceptive, and teach them to answer arguments by the use of their fists or pistols. We should therefore claim, in the name of tolerance, the right not to tolerate the intolerant."

Se eu entendi o argumento do Popper, independentemente de como é usado (eu não acompanho muitas redes, então não sei como costuma ser interpretado), é dito que:

- enquanto for possível contra-argumentar com racionalidade e a opinião pública puder responder a filosofias intolerantes, se deve fazê-lo

e

- quando for o caso de as filosofias intolerantes negarem a seus seguidores que ouçam a argumentos racionais (por serem deceptivos) e incitá-los à violência física, elas devem ser suprimidas

De acordo com o que eu entendi, é um ou o outro caso (um "ou" exclusivo, ou XOR), sem terceira opção. Está correto isso?

POLICIAMENTO DO TOM, FALÁCIA AD HOMINEM

O policiamento modo ad hominem pode ocorrer quando se mistura o tom, seja em conteúdo (ex. um insulto) ou seja em estética (ex. um estado psicológico negativo), com a inferência lógica. Já li em algum lugar um argumento de que, em algumas instâncias, isso não seria uma falácia, mas a forma típica em que ele acontece seria difícil de defender.

Não há lista de insultos nem estado emocional negativo que refute uma argumentação sólida de que, por exemplo, a terra é redonda.

E não há tom agradável, belo e suave que deixe uma argumentação inválida de a terra é plana válida.

POLICIAMENTO DO TOM, ARTIFÍCIO DE RETÓRICA

Esse eu vejo sendo usado para silenciar a pessoa ou desviar do assunto.

Um exemplo tirado das minhas experiências pessoais é aquele em que o interlocutor de espírito leve e faceiro faz todo o tipo de escárnio e ofensas indiretas e, vendo o outro naturalmente exasperado, tem a cara de pau de dizer que o outro não deve discutir o assunto.

A piada tirada da rationalwiki é esta:

"Person A: [bigoted statement]
Person B: The fuck?
Person C: Now, now, let's have civility.

Dear C: You came in one statement too late."

Às vezes ocorre pelo policiamento de insultos, outras, do estado emocional.

Quando é contra insultos, imagino que possa ser usada tanto para casos em que xingamentos são distribuídos gratuitamente, casos em que linguagem vulgar é usada, embora não seja necessariamente ofensiva, e casos em que o insulto é um termo com conotação ética, como hipocrisia.

Quando é usado contra estados emocionais (isto é, comunicação não verbal [ex. voz] e não implicada [ex. indiretas]), imagino que possa ser usado tanto para aqueles casos em que há intimidação real (um homem maior intimidando uma mulher) quanto aqueles em que há expressão emocional negativa, embora não ameaçadora (alguém muito puto de ter sido sacaneado). Quando contra estados emocionais, vejo como um contínuo de um a outro extremo, em que a consciência de como algo é lido e a capacidade de controle do não verbal tenha parte.

Ao mesmo tempo em que seria incivil um homem de 2m de altura berrar com qualquer pessoa de 1,5m, seria muito questionável dizer para alguém que continuamente sofre algum tipo de preconceito que não deva se manifestar porque o seu estado emocional ao falar sobre o assunto incomoda quem não sofre dele, e ao mesmo tempo em que seria incivil jogar insultos a torto e a direito, seria questionável dizer que alguém não deva usar o termo bully quando se trata de bullying.

O contexto dita muito do que é policiamento por motivos retóricos e do que é um pedido por respeito mútuo. É confuso e possivelmente difícil de distinguir.

Vi o policiamento de tom citado em três lugares: uma wiki de viés feminista, a rationalwiki e a wikipédia. Faz um tempo que li, mas me parece que estão em consenso de que costuma ser usado contra grupos menos privilegiados. Como mulher, já o ouvi algumas vezes.

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Por último, existe uma certa "visão de mundo" romântica da possibilidade, e estrita permissibilidade, de diálogos sem traços de incivilidade de nenhum tipo, em que as paixões seriam associadas ao tipo mais baixo de discurso, e o controle virtuoso e asséptico de tudo o que possa ser lido, verbal ou não-verbalmente, como desagradável seria o ápice da civilidade e da racionalidade. Razão e paixão, de acordo com essa visão de mundo, estariam em extremos opostos do que é verdadeiro e ético e do que não é.

Quanto a ela, acredito que seja ingenuidade e falsa dicotomia. Logicamente, razão e paixão não fazem parte do mesmo eixo, então não podem ser extremos. Pragmaticamente, incivilidades deveriam ser evitadas, mas 1) creio que nem todo tipo de "incivilidade" deve ser absolutamente extinguido, e me refiro ao policiamento do tom e 2) infelizmente, extinguir todo o tipo de incivilidade não é realista. Humanos têm paixões. É desagradável e não ideal, e discursos civis e incivis se misturam muitas vezes. O que não significa que, se acontece, não deve ser evitado, mas sim que acho difícil dissociar completamente o termo "incivilidade" de eventos que podem até ser vistos como progressistas - é uma dificuldade analítica mesmo, de identificar e separar de forma clara e precisa os discursos que são ou deveriam ser ou não usados.

A razão, talvez, seja o único meio de se obter algum progresso (não vejo exemplo contrário, mas ele pode existir), mas definitivamente não é suficiente, já que, por mais impecável que seja um discurso, pode-se respondê-lo de forma incivil, e por isso também não tenho crença nessa visão romântica de racionalidade ou discurso.

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Provavelmente todos desse fórum já sabem disso e alguém se pergunte qual a utilidade da lista.

Eu não tenho motivo preciso, além de querer discutir isso em algum lugar e não achar o modelo do reddit satisfatório. Acho complexo E difícil o discernimento claro e seguro dos modos de discurso, e quais devem ser aceitos e quais não, e em que contextos. É como tentar criar um algoritmo para aplicar a todas as situações sociais. Não vejo um que poderia funcionar.

Algumas perguntas que poderia fazer são se vocês acham que essas descrições são apropriadas ou se faltou algum tipo de nuance, se tais modos de discurso não são tão incivis assim, se discordam de algo ou não, se há outros modos de discurso incivil que eu não tenha listado (e que eu gostaria de saber), etc.

E especialmente se discordam de algo e gostariam de dizer o que pensam.

Sei que não posto muito. Sou lurker esporádica.
 
Li em um artigo falando que antes ao estabelecerem uma nova Revolução Industrial ocorrem as guerras específicas daquela revolução industrial e no momento, no sentido de ambiência de discussão, estaríamos vivendo as "guerras da Quarta Revolução Industrial".

No que estamos passando por um tempo socialmente tumultuoso do lado de fora das faculdades, e bem tenso, a espionagem industrial campeia livremente em novos domínios, enfrentamos as guerras tradicionais psicológicas mas também novos conflitos na guerra cibernética na guerra no espaço, etc...

A intelectualidade nesses cenários, na maioria das faculdades, deixa de ter protagonismo e passa a se mover segundo as políticas científicas do momento, aderindo bem pouco a missão básica da educação da população.

Em um trecho do livro Psicologia das Multidões (Psychology of The Crowd) do Gustav Le Bon, um influenciador do Carl Jung, o autor comenta que os indivíduos quando são inseridos em um grupo ou num coletivo, tendem (sob pressão) a dissolverem ou diluirem a personalidade.

Aqui no Brasil o Olavo de Carvalho no livro O Imbecil Coletivo, faz uma crítica a intelectualidade local com relação a confusão promovida nas universidades ao criarem programas pautados por visão unicamente antropológica nas discussões acadêmicas, que serviria apenas no sentido da descrição, sem fazer esforço de reconhecer diferenças de valores entre produtos da sociedade ao mesmo tempo em que expulsa do campus outras áreas legitimamente científicas e de estudo, a filosofia, a ética, a moral, a teologia. O Le bon parece ser interessante para colocar na prática o que ele cita sobre os 4 tipos de discursos de Aristóteles e que as pessoas usam hoje em dia nos debates das arenas (Retórica, Poética, Análise, etc...). Essa distorção criaria pensadores que se imaginam capazes de separar razão emoção da ciência quando no passado o pensador tinha o dever de enfrentar a luta em todos os campos, sob pena de se apequenar mesquinhamente ao ver o mundo só com seus óculos diante dos pares.

No fim o que se apresenta comumente no cenário popular é cada vez mais um simulacro ou farsa de discussão. Isso resulta que mesmo em países com educação de melhor nível como o Japão se mantenha sempre a separação entre escolas para o proletariado e escolas para elite e solidifica o vaticínio bíblico que até ao fim dos tempos haverá pobres no mundo.

Interessante notar que no filme Um Método Perigoso, estrelando o Viggo Mortensen (o ator que faz o papel de Aragorn dos filmes de SdA), sobre as histórias de Freud e Jung Freud alerta Jung para o perigo de discutir apenas o campo de estudo deles devido a batalha visceral da época sob contaminação mental de ideologia quando o Freud diz a Jung que estavam num momento em que a Universidade Européia na Psicologia seria acusada de ser demasiadamente judaica.
 

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