O tom de Shakespeare era qualquer coisa perto de um Guimarães Rosa em Grande Sertão: o coloquial com o elaborado. Ao mesmo tempo que ele utiliza os tu e vós da vida (sim, eu sei que isso não é o 'mais elaborado', mas enfim, não consigo pensar em outro exemplo), ele recheia o texto de momentos como o "Sua puta!" de Antônio para Cleópatra. Isso para não falar da linguagem dos atenienses "comuns", em Sonhos de Uma Noite de Verão, por exemplo.
O que eu quero dizer é: a linguagem dele é rica - o que não significa que não seja coloquial em alguns momentos.
Sem dúvida, tanto o formal quanto o coloquial estão presentes nas peças dele. O problema é que a maioria das traduções é feita de um modo que o texto fica
totalmente coloquial, sem distinção entre as falas de personagens de origens diferentes. Fica como se todos fossem "atenienses comuns", inclusive os reis (vide o
Hamlet do Millôr, por exemplo, além do SdA que citei, onde também há simplicação da pior espécie, principalmente porque o trabalho lingüístico de Tolkien tem um peso enorme na obra toda). A coisa é nivelada por baixo, o que
definitivamente não é bom.
Eu gosto das traduções do Millor - pelo menos das duas que li (Noite de Reis e Hamlet). Sinto que ele foi, no mínimo, cuidadoso com as traduções, e soube resolver alguns problemas que surgiram de forma que outros não conseguiram (inclusive a Barbara, que tanto elogiam).
O porém é que deixou de fora algumas coisas - e não se sabe bem o motivo. Isso eu acho que prejudica a leitura de quem não sabe Inglês e não tem oportuniade de ler os originais, uma vez que fica sem alguns momentos do todo.
Acredite, apesar de tudo que eu falei das traduções dele, eu também gosto delas... em certa medida. Dentro dessa linha das "traduções facilitadas", as dele sem a menor sombra de dúvida são as melhores, tendo em vista que existem outras na mesma linha que simplesmente dá vontade de jogar no lixo assim que tu começa a ler. Foi como eu disse: embora esse tipo de tradução seja até agradável de se ler devido a fluência do texto (especialmente na mão de alguém que realmente
sabe o que e como escrever), o que temos no final não deixa de ser uma adaptação, uma "abridged version" do original - coisa que o Millôr aparentemente fez meio incoerentemente, já que as traduções dele parecem muito mais voltadas para serem lidas como livros em si, e não encenadas, de modo que nem há essa possibilidade de justificativa para elas. O negócio seria perguntar para ele por que raios ele optou por fazer isso. Ele bem pode ter uma boa razão, mas também pode ter feito por simples capricho autoral.
Mas enfim, se você já leu o original (e para dizer o que disse, acredito que tenha lido), sabe que a tradução de Shakespeare é problemática - inclusive se partir do princípio de que muitas das palavras utilizadas por ele tinham um sentido completamente diferente na época. Um reflexo disso é a quantidade de notas de rodapé em todas as traduções que li e, mais do que isso, nos originais mesmo.
Sim, já li no original (e agora que tenho minha edição do
Complete Works, posso reler tudo à vontade e mais a fundo para estudos
) e sei muito bem o quanto Shakespeare é problemático em tradução - o que, para mim, simplesmente é um dos seus maiores charmes; nenhum tradutor que se preze foge da raia - essas traduções problemáticas via de regra são as mais recompensadoras possíveis! Independente da linha que o tradutor resolva adotar (fidelidade ou simplificação), ele tem que segui-la da melhor maneira possível. O Millôr aparentemente faz bem o que ele se propôs a fazer (seja lá o que ele
realmente tenha se proposto a fazer) - o problema é que ele também é uma minoria, e o que abunda são traduções "meia-boca", sejam elas visando uma adaptação para teatro ou não. Traduzir não é simplesmente sentar com o texto original e um dicionário do lado. É preciso
conhecer o que se está traduzindo, o mais a fundo e pelo maior número de vertentes semânticas possíveis, para aí então se escolher uma delas e se concentrar nela para deixar a coisa coerente. O problema é que a maioria acha que realmente é só sentar e colocar o texto no Babelfish e pronto.
(Aliás, vou hoje mesmo assistir uma montagem de
Hamlet aqui em Porto Alegre, a qual tem sido muito elogiada por quem é da área, tanto literários como teatrólogos; é uma versão que manteve o cenário original, o figurino de época, não aquelas coisas do tipo "Hamlet encontra Matrix", que é o que predomina por aqui; vamos ver se os elogios realmente se justificam - depois eu comento a peça aqui.)
Quanto às notas de rodapé, já falei sobre isso (de um modo geral, mas que serve para Shakespeare também) num outro tópico por aqui, mas não lembro mais em qual.
E, sinceramente, já estou muito tentado a direcionar uma das minhas áres de pesquisa em literatura (que geralmente tem sido ficção de fantasia) na faculdade para a tradução de Shakespeare. É meio batido e todo mundo já fez? Sim, mas acho que não vou sossegar enquanto não tiver a
minha versão das coisas.