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Remorso

Luciano R. M.

vira-latas
[align=right]“He will never know discretion,
Never eat. the bread of honor,
Never drink the cup of wisdom”
-do Kalevala
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Ainda estava no começo da noite e eu acabara de adormecer. Uma das raras horas em que é noite para nós dois. E fui despertado com sua voz, aflita, ao telefone:
‘Minulla oli unelma, painajainen, ja olet kuollut.’
‘O quê?’ respondi, sem entender.
‘Minulla oli unelma, painajainen, ja olet kuollut.‘
E você começou a chorar e desligou e eu comecei a chorar e não pude mais dormir.
Minha vida é como uma colcha de retalhos. Pedaços vindos de muitos lugares, todos costurados de forma mais ou menos organizada, mas ainda num desalinho impossível de ser desfeito. Mas o mais distante é o mais próximo.
Éramos tão promissores e agora somos nada: vozes que se despertam para conversar, em idiomas distintos, sobre a morte, sobre a dor, e que depois desaparecem. Coisas que duram para sempre, desde que o Sol não apareça, desde que os pesadelos persistam.
Eu poderia nos comparar a uma partida de xadrez, entre campeões, entre homens apaixonados pelo jogo: movimentos calculados mas ainda irrascíveis e impulsivos. Cada movimento de ataque corresponde a um movimento defensivo que, por sua vez, é um novo ataque.
Jogamos, no entanto, sem reis: ninguém podia vencer, ninguém podia perder. Uma partida infinita, torturante e ao mesmo tempo envolvente. Jogamos até o tempo acabar, e depois que isso aconteceu, sobrou apenas a frieza da possibilidade abortada.
Eu desliguei o telefone e não pude dormir. Eu desliguei o telefone e não pude dormir, por isso sentei-me na cama e acendi um cigarro. No escuro, eu só podia ver os dígitos, verdes e terríveis do rádio-relógio, que serviam para me lembrar das seis horas que nos separavam. No escuro, eu só podia ver a brasa do cigarro, queimando vermelha, prestes a desaparecer.
Tudo sempre esteve prestes a desaparecer. Agora é tarde demais para reconhecer, agora é tarde demais para sonhar que eu morri.
Observo- sem na verdade enxergar- a fumaça do cigarro que se espalha pelo quarto e torna-se invisível. Observo as suas palavras que se diluem em mim e se tornam indistinguíveis dos meus remorsos.
Era outra coisa que eu queria ter respondido. Era outra peça que eu queria ter movido: não tinha um rei para tombar, mas desistiria da vitória, pediria um armistício. E assim talvez pudéssemos ter um continente único, nossa própria Pangeia: era usando uma terceira língua, da qual ambos éramos filhos adotivos, que conversávamos longas noites e trocávamos cartas.
‘Teit meistä kauniin. Teit meistä kauniimpaa kuin mikään muu‘, foram as primeiras palavras que você me ensinou: como uma criança que aprende poesia antes de saber chamar os pais. E eu nunca mais lembrei disso. Mas é porque eu nunca me esqueci: não se precisa lembrar daquilo que não se esquece.
Eu achava que o jogo havia acabado, que os retalhos eram todos iguais. Eu achava que a fumaça realmente sumia e eu achava que se eu morresse em seus sonhos, o tabuleiro seria jogado fora. Mas eu estava enganado: eu estava enganado porque as histórias nunca acabam e os remorsos nunca desaparecem e as pessoas nunca são esquecidas, e os heróis nunca existiram.
E se eu não tivesse sido surpreendido pela sua voz eu diria que também sonhei com a sua morte, eu diria que queria uma noite de Sol, branca como a tristeza e fria como a neve.
 

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