Continuo devendo a bibliografia.. Vamos ver nesse fim de semana, certo, Robin?
Certo, Batman.
Brianstorm disse:
Mavericco disse:
Menard é o tlon de Cervantes. É o reflexo almostasiano de Cervantes... Isso parece, de fato, assustador, mas por mais que Menard tente ser Menard, ele sempre vai ser o reflexo maldito do grande Cervantes...
E como seria se esse conto viesse antes, fosse o primeiro do livro?
Pergunta maléfica a sua, rapaz... Vou pegar seu lenço e assoar meu nariz quando estivermos em cima de uma torre em Dublin.
Enfim. Vamos lá, então.
O que sabemos?
- Um ser humano pode reescrever uma obra literalmente X anos depois;
- A leitura de algo é influenciada pelo tempo em questão;
- Toda forma de arte é inútil;
- A genialidade individual é um equívoco;
Menard -> Tlon
Quem, afinal de contas, criou Tlon? Foi mesmo o Orbis Tertius? Ou ela foi uma recriaão? Borges dá a entender que a Rosa Cruz talvez tenha sido um desdobramento disto, mas será que o Orbis Tertius não existiu no passado? Será ele uma recriação literal de algo?
Provavelmente, sim. É possível que no passado tenha existido essa mesma sociedade, e porque não pensar nesse mesmo narrador conjecturando sobre a abominação dos espelhos ou da paternidade? Uma probabilidade pode até mesmo apontar essa dualidade dizendo que nesse primeiro Orbis Tertius, apenas a paternidade era abominável, mas com o passar dos anos, essa primeira sociedade deu luz a uma segunda (abominável, por natureza) que passou a considerar a paternidade e o espelho como sendo abomináveis... Mas, se ela é abominável em sua natureza, o que se pode acreditar dela?
Pode-se, realmente, depreender algo? Esse segundo Tlon, espelho dum segundo factível, é uma recriação literal, mas com efeitos diferenciados... E é aí que mora o perigo, senhoras e senhores. Até que ponto podemos confiar no narrador? As opiniões dele acerca de Tlon podem muito bem ser deturpadas... Ele pode dizer que não existia a contagem numérica definida em Tlon mas isso pode ter sido uma interpretação dele para com essa segunda versão da Enciclopédia... É possíve que um narrador antigo, que tenha analisado o primeiro Tlon, não tenha chegado a essa conjectura...
Mas, se considerarmos que existiu apenas um Orbis Tertius, e não dois, ainda podemos seguir raciocínio? Claro que podemos. Vamos imaginar esse OT como uma barra de ferro. No começo, o começo, é óbvio. Esse começo, no entanto, foi sendo recriado literalmente por seus sucessores... OT, sendo assim, foi recriado literalmente "n" vezes ao longo dos anos.
Mas porque toda essa recriação literal? Isso só vai encontrar resposta no final do conto, onde nós vemos Tlon dissolver o mundo real. Mas será que ele ainda vai dissolver? Ele já dissolveu. A recriação literal de Tlon pode ser vista como uma forma de se manter a fogueira alegre viva, fazendo com que as análises de Tlon multipliquem-se e não se prendam no que dantes fora concebido...
A genialidade individual apenas reforça a teoria de que Tlon não foi desenvolvido por apenas uma pessoa.
A inutilidade da arte talvez seja um reforço para a minha ideia da justificação da recriagem literal de Tlon ao longo dos anos... É tão inútil que se não fosse essa recriação, teria morrido!
Menard -> Almostásim
A Aproximação a Almostásim é a recriação literária de qual obra, sendo assim? The Sacred Fount vem em minha mente. Postei um tempo atrás sobre isso e sobre o que é o livro, mas o que fica interessante ressaltar aqui é onde se diferem os textos, ambos iguais. Apenas no fator temporal? Acho pouco. É preciso que analisemos o fator geográfico, onde Almostásim é o primeiro livro policial de Bombaim... Sendo assim, a dualidade geográfica-temporal é determiante para a compreensão da obra, e me pergunto se no conto de Menard a geografia territorial não foi também determinante: afinal de contas, a terra de Cervantes difere da terra de Menard bem como todo o campo físico que os cerca...
É importante também ressaltarmos aqui outra faceta interessante: Almostásim teve duas versões: a princeps e a que o comentarista tem em mãos. Esta última é prefaciada por Dorothy Sayers... Mas.. Será que ela fez apenas o prefácio? São duas obras diferentes por natureza, mas creio ser válido pensarmos se Sayers, eventualmente não reescreveu literalmente a editio princeps de Almostásim, adicionando suas visões de mundo religiosas -- visto que ela traduziu a Divina Comédia, poema cristão (quer dizer, pelo menos a crítica clássica o diz) por natureza...
Já a genialidade de Almostásim pode sair muito bem do campo "autor-da-obra" e alcançar o ponto do enredo. Almostásim é o doctor universalis do texto. Mas será que ele é mesmo este tal? Manu, mais abaixo, fala de Jorge que diz que aceitar o doctor universalis
é confessar nossa fraqueza de espírito ou a nossa barbárie... Sendo assim, acreditar em Almostásim é aceitar a fraqueza de espírito e a barbárie?
Cai como uma luva. O narrador do livro é fraco de espírito, tanto que procura por Almostásim, simbolizado por uma figura divina... Isso sem contar na "barbárie" que o narrador fez ao assassinar um hindu ou um muçulmano ou ao simplesmente matar a fraqueza de seu espírito, a ponto de procurar um Deus ou qause isso -- coisa inconcebível antes...
Menard -> Tlon -> Almostásim
Temos aqui um Tlon que precisa ser recriado literalmente de tempos em tempos pois é fraco, pois não é um doctor universalis, pois precisa das releituras temporais para existir.
Passamos dessa atmosfera propícia para uma narração de perseguição aos moldes policiais, onde um narrador procura um homem simbolicamente tido como Deus. Podemos retirar algumas coisas dessas conjecturas.
A primeira é a da renovação literal afim de se alcançar uma pujança, digamos, subsistente. O narrador precisa se renovar, ou se purificar (com bosta de búfalo?), para alcançar a plenitude espiritual, ou ao mesmo almejar ser um doctor universalis. Mas ele precisa recriar-se literalmente tendo como molde quem? Em uma hipótese, ele não sabe e está à procura de Almostásim. A primeira parte do livro, que compreende a primeira viagem, quando ele "mata" o hindu-muçulmano e encontra o ladrão, ele percebe sua vileza e tenta fortalecer seu espírito de várias formas; mas é apenas com o primeiro reflexo que ele encontra seu objetivo principal, que é o de encontrar Almostásim. Na segunda hipótese, ele já sabe quem é Almostásim e procura por ele desde sempre, mas enquanto no começo tenta procurar Almostásim sendo ele mesmo, logo depois ele passa a procurar Almostásim sendo Almostásim -- e daí o reconhecimento dos reflexos almostasianos nas pessoas.
A segunda parte está nas conjecturas acerca da originalidade da figura de Almostásim. Sabemos que ele não é original, que ele é provavelmente uma recriação literal de algo, assim como o narrador é sua recriação literal. Mas de quem Almostásim seria uma recriação?
O parente santo de Almostásim parece jogar uma luz no assunto, mas para por aí. Talvez com outros contos aprofundemos mais nestas conjecturas...
Penso, aqui, numa rede de recriações, ou de hronirs, que segue o infinito ou uma tabela finita extensa. Muito bem. Sabemos que a ordem dos hronirs de hronirs pode modificar seu estado (ver mais abaixo no post), e isso pode dar algumas luzes interessantes... Afinal de contas, alguns hronirs de X graus podem ser tanto abomináveis ao extremo bem como normais ou até mesmo uma pureza...
Essa questão da pureza, por sua vez, leva-me a perguntar-me se a purificação do narrador não estaria relacionada com este fator: se o narrador for um hron de nono grau (ou múltiplo), então ele estaria purificando-se... Mas isso cairia novamente nas conjecturas de "antepassados", que por enquanto é por demais nebulosa.
Menard -> Almostásim -> Tlon
Almostásim fala da fraqueza de espírito e da barbárie, fala de fatores temporais-geográficos, fala de recriações literais tendidas à religiosidade, relaciona-se com buscas superficiais (como em The Sacred Fount).
Vamos começar com a religiosidade. Se Tlon é uma recriação de algo, então, porque não imaginar que é uma recriação tendida a um aspecto religioso, como a hipotética recriação de Dorothy Sayers? Isso cairia como uma bomba no texto de Tlon, pois no texto os comentários acerca da religião limitam-se em:
Na seção histórica (página 920) soubemos que, por causa das perseguições religiosas do século XIII, os ortodoxos buscaram amparo nas ilhas, onde ainda perduram seus obeliscos e onde não é raro exumar seus espelhos de pedra.
(...)
Sua linguagem e as derivações de sua linguagem - a religião, as letras, a metafísica - pressupõem o idealismo.
(...)
Esses cones e muito pesados (feitos de um metal que não é deste mundo) são imagem da divindade, em certas religiões de Tlön.
(...)
Essa conjetura feliz afirmava que há um só sujeito, que esse sujeito indivizível é cada um dos seres do universo e que estes são os órgãos e máscaras da divindade. X é Y e é Z. Z decobre três moedas, porque se lembra que X as perdeu; X encontra duas moedas no corredor porque se lembra que foram recuperadas as outras... O décimo primeiro volume deixa entender que três razões capitais determinaram a vitória total desse panteísmo idealista (...) a terceira a possibilidade de conservar o culto dos deuses.
(...)
Deixar-lhes-á suas cordilheiras auríferas, seus rios navegáveis, suas várzeas pisadas pelo touro e pelo bizão, seus negros, seus prostíbulos e seus dólares, sob uma condição: "a obra não pactuará com o impostor Jesus Cristo". Buckley não acredita em Deus mas quer demonstrar ao Deus não existente que os homens mortais são capazes de conceber o mundo.
Vamos por partes, como diria Jack Estripador.
Os espelhos de pedra como forma de adoração aos deuses é uma abominação em relação à religião tloniana, o que soa um tanto quanto paradoxal... Uma recriação errônea? Pode ser que esse recriador de Tlon, ao considerar aspectos religiosos, os fez para com sua época, pois foi influenciado pelo tempo-geografia, e por isso distorceu a ideia...
A religião pressupondo o idealismo. A busca por Almostásim é ideal assim como a recriação menardiana também o é. Seriam estes, então, protótipos tlonianos? O fato é que esse idealismo anularia a possível abominação para com a recriação religiosa de Tlon, pois que esta teria um propósito ideal da recriação literal, logo, não constitui erro.
Os cones pesados não nos dizem nada por enquanto... Podem possuir alguma relação com a geometria tloniana, que fala da superfície... A superfície de um cone é um setor circular... Um setor circular é uma parte de um círculo que remete a um quantitativo em graus. Esse quantitativo é inexistente e abominável em Tlon, sendo que um setor circular é marcado com imprecisão... Seriam, então, as divindades de Tlon parciais ou imprecisas? A recriação literal de Tlon tendida à religiosidade ganha uma prova concreta de sua imprecisão...
A hipótese das moedas determina a teoria de Deus a partir da unidade. Almostásim é unidade com o narrador bem como Menard é com Cervantes. Talvez sem muitas dificuldades, mas talvez ressaltando que se uma divindade é unidade com um humano qualquer (X, Y ou Z), uma recriação tendida à religiosidade mostrar-se-ia inútil.
Se não se acredita em Cristo... Não parece estranho uma recriação literária que tenda à religiosidade? Não falo do cristianismo, mas este pode ser uma opção... Acima nós falamos da unidade, onde Amostásim, Deus, Cristo, Budda, whatever, é unidade com o narrador do texto em questão. Sendo assim, como Buckley não quer Cristo em Tlon se o mesmo é unidade com todo ser vivo em Tlon? Buckley queria, afinal Tlon povoado? Ou ele queria Tlon?
Bem... A fraqueza de espírito pode indicar uma explicação à criação de Tlon, mui bem observada se relermos a frase a seguir pensando que os criadores de Tlon estavam "fracos" e "cansados":
Buckley não acredita em Deus mas quer demonstrar ao Deus não existente que os homens mortais são capazes de conceber o mundo.
A barbárie pode remeter a talvez alguma guerra (uma guerra espelhada, segundo a concepção Menardiana, e não militaresca, segundo a concepção Cervantiana?) ou à barbárie de se criar um mundo que vai dissolver o nosso.
As buscas superficiais, a meu ver, encaixa-se com a geometria e a concepção espacial de Tlon... Mas também se encaixa com a óbvia criação de Tlon a partir de modelos pré-existentes na Terra... Afinal de contas, Tlon não é um doctor universalis, e não existe genialidade pessoal e etc.
Por fim, gostaria de salientar isso, no conto Tlon:
Lemos, por exemplo que as terras baixas de Tsai Jaldun e o Delta do Axa definem a fronteira do Sul, e que nas ilhas desse delta procriam os cavalos selvagens.
Esses cavalos tem alguma relação com os ladrões de cavalo de Almostásim? Ou eles se relacionam, de alguma forma, com o Roncinante quixotesco?
Brianstorm disse:
Mavericco disse:
Acho que ele percebeu, talvez por um reflexo ou algo assim, que conseguiria apenas sê-lo às custas de Cervantes... A "alegre fogueira" que ele fazia, quem sabe, tenha sido a prova disso...
Concordo.
Mavericco disse:
Mas é claro que toda obra de arte é inútil... Pra quê escrever Dom Quixote se daqui há X séculos vão reescrevê-lo literalmente? A arte é um game of shifting mirrors, com a diferença desses espelhos atingirem apenas a burguesia e vez outra mostrarem-se fidedignos...
Mas ele irá durar X séculos. O que o homem faz que dura tudo isso? Então tudo é inútil, melhor não fazer nada (estou lembrando do Schopenhauer
).
A arte não atinge apenas a burguesia, porém concordo que seja algo elitizado.
É, é... Bem lembrado essa dele durar X séculos... Quer dizer... Isso é apenas uma probabilidade. O universo pode muito bem ser eterno... A teoria das cordas mesmo diz que um big bang pode acontecer (ou estar acontecendo num ponto longínquo) e o universo recomeçar do zero...
Mesmo porque, o tempo não existe no universo, lembra?
Mencionei que os homens desse planeta concebem o universo como uma série de processos mentais que não se desenvolvem no espaço, mas de modo sucessivo no tempo.
Universo é espaço, e não tempo. Ao mesmo tempo que aqui Cervantes escreve Quixote, simetricamente Menard também o faz. Se esse universo for finito, temos um numero X de Quixotes simultâneos... Mas e se ele for infinito? Aí já viu, né... Vai ter sacanagem.
Kelvin disse:
Como as citações estão muito grandes não vai dar para respondê-las uma a uma. Aí vão minhas primeiras impressões. A referência a Don Quixote, obra em que o mundo fictício interfere no mundo real não é aleatória (Quixote fica louco ao ler livros ficcionais de Cavalaria= mais um exemplo do mundo fictício interferindo no mundo real) e parece refletir os demais contos anteriores na forma narrada pela Manu em post anterior (espelhos). Acho que a 4ª interpretação sobre o diálogo entre as Armas e as letras é a que melhor condiz com o conto. Nela é dito:
Bem lembrado essa da loucura do Quixote...
Kelvin disse:
"A essa terceira interpretação (que acho irrefutável) não sei se me atreverei a adicionar uma quarta, que condiz com a quase divina modéstia de Pierre menard: seu hábito resignado ou irônico de propagar idéias que eram o estrito reverso das preferidas por ele".
Durante todo o conto, Borges (=Menard) defende idéias que não condizem de forma alguma com sua biografia como "não há exercício intelectual que não resulte inútil" (isso soa estranho vindo de alguém que leu todas as obras de filosofia do seu tempo) ou "o quixote é um livro contingente, o Quixote é desnecessário" (Borges era fã do Quixote). Aliás, o item "p" da biografia parece ressoar essa idéia.
Será que ao propagar ideias que eram contra sua índole ele não estava tentando ser menos abominável? Ou será que ele tentava ser menos Menard? Ou mais Menard?
Kelvin disse:
Quanto a pergunta do Brian se existiriam outros Quixotes na literatura consigo me lembrar dos seguintes: a) o Quixote apócrifo (extremamente criticado pelo "Cavaleiro da Triste Figura" na segunda parte do livro Don Quixote de Cervantes), b) Emma Bovary (=um reflexo distorcido do Quixote de Cervantes que também enlouquece por ler livros de ficção e querer viver na vida real o que acontece nos livros de ficção); c) o Don Quixote de Strauss; d) o livro Don Quixote e Sancho de Unamuno que inclusive parece ser criticado no presente conto (como não li o livro de Unamuno não dá pra ter certeza se de fato há crítica). No mais, muito interessantes os últimos comentários do Brian, Manu e Mavericco.
Mais uma vez, muito bem lembrado o livro apócrifo do Quixote! Eu inclusive expando: a segunda parte do Dom Quixote só foi possível graças ao Livro Apócrifo... É como se o Cervantes tivesse tentando reescrever o Livro APócrifo mas não sendo o autor do livro apócrifo, mas sim Cervantes... Ou mais ainda:
O primeiro Quixote é o objeto. O apócrifo é a imagem, logo, é abominável. O segundo Quixote, espelho do apócrifo, anula toda a sentença, logo, não é abominável...
E digo mais ainda:
O apócrifo é o hron do primeiro Quixote. O segundo Quixote é o hron do apócrifo ou o hron do hron do primeiro.
Vamos relembrar o que Borges nos fala sobre sequências de hronirs?
Até há pouco os hrönir eram filhos fortuitos da distração e do esquecimento.
(...)
Fato curioso: os hrönir de segundo e de terceiro grau - os hrönir derivados de outro hrön, os hrönir do hrön de um hrön - exageram as aberrações do inicial; os de quinto são quase uniformes; os de nono confundem-se com o de segundo; nos de décimo-primeiro, há uma pureza de linhas que os originais não têm. O processo é periódico: o hrön de décimo-segundo grau já começa a decair.
Sendo assim, tanto a segunda parte quanto o apócrifo aberram o primeiro...
Manu M. disse:
Mas...
Tive um outro insight. Acho que Borges não estava só sendo irônico, não. Sabe o item "p" da bibliografia de Menard, que é "o reverso exato de sua verdadeira opinião sobre Válery"? Acho que o que Borges faz nesse conto é o mesmo. Ele "desdenha" do D. Quixote justamente por sua opinião sobre ele ser o oposto. É o causo do autor que desfigura os acontecimentos, etc. Acho que assim faz mais sentido, né? rs.
Realmente, bem pensado...
Manu M. disse:
Outra coisa que eu queria destacar, aprofundando um pouco o que eu disse antes, é que Borges brinca com essa coisa de significante/significado (faz sentido, já que o Menard era um simbolista), e achei isso o máximo. É mais ou menos o que o lindo do Kundera faz em
A insustentável leveza do ser, ao criar o "pequeno léxico de palavras incompreendidas" (e grande parte da obra do Kundera gira em torno desse tema): como uma mesma coisa tem um significado para um e outro significado absurdamente diferente para o outro.
O próprio Borges já antecipa alguns desdobramentos para esse viés (fiquei tão empolgada que até fiz um desenho):
acho que esses desdobramentos dão mil coisas a que pensar, né?
Excelente tabela!
Manu M. disse:
Diante disso, fiquei pensando que o assunto principal do conto é mesmo esse
doctor universalis, e que ele faz com que a genialidade individual, a glória pessoal, seja um equívoco. Como aparece nos parágrafos finais:
(...) recordar com ingênua estupefação o que o doctor universalis pensou, é confessar nossa fraqueza de espírito ou a nossa barbárie. Todo o homem tem de ser capaz de todas as ideias e entendo que no porvir será.
(Será que ele já imaginava a wikiculture? hihihi)
Não deixa de ser um cometário refinadamente ácido. Esse cara é um gênio, putz grila.
Apenas corrijo: Borges tornou-se gênio. Ele era quase cego assim como Milton ou Joyce mas enfiava a cara nos livros e lia pra caramba... Tenho certeza que ele está orgulhoso do nosso clube clandestino, em cima de uma torre sendo purificado com bosta de búfalo *-*
Mas...Porque a glória pessoal é um equívoco?
Ontem eu descobri que a Divina Comédia não é tão original quanto eu imaginava =D... Legal, né? Descobri que a Al-Isrá, do Alcorão, é o puro e íntegro molde da Divina Comédia, com direito a viagens infernais (que Virgílio mesmo já fazia) acompanhadas dum guia, viagens ao céu e até mesmo desenhos angelicais macrocéfalos...
Sendo assim, o que pode ser original hoje em dia? Algum dia já o foi? A arte é original?
Pouco a pouco vou digerindo o primeiro conto... É porque ele é de fato a chave. Está ficando mais do que claro que Borges não colocou o primeiro conto lá aleatoriamente. É claro que não.
Nos hábitos literários é também todo-poderosa a idéia de um sujeito único. É raro que os livros estejam assinados. Não existe conceito de plágio: estabeleceu-se que todas as obras são obra de um só autor, que é inteporal e é anônimo. A crítica costuma inventar autores, escolhe duas obras dissímeles - o "Tao Te King" e as "1001 Noites", digamos - atribui-as a um mesmo escritor e logo determina com probidade a psicologia desse interessante homme de lettres...
Também os livros são diferentes. Os de ficção abarcam um único argumento, com todas as permutações imagináveis. Os de natureza filosófica invariavelmente contém a tese e a antítese, o rigoroso pró e contra de uma doutrina. Um livro que não encerre seu contralivro é considerado incompleto.
Como dito anteriormente por alguém, não existe plágio em Tlon. Mas no nosso universo também é assim. O conhecimento que Homero tinha para escrever a Ilíada veio de coisas que ele ouviu e que fora contadas por alguém que também ouviu alguém falando... Seguiremos essa linha até chegar num hipotético Adão primordial, cercado duma terra que por si só é uma história e uma fonte de conhecimento fértil... E essa terra formou-se dum processo calado, junto com o universo, que algumas teorias julgam ser eterno... Logo, nada é original, tudo é uma cópia, uma releitura de algo..
O princípio do universo foi um ponto. Aí sim nós podemos dizer que foi tudo o que existiu foi original, não acham?
Mas zé zão, nosso falecido zé zão, rip rip urra! para ele, discorreu acerca do ponto em Tlon:
zé zão disse:
A geometria visual ter como base a superficie é genia, a nossa geometria tendo o ponto como base é falha pq o ponto em si não existe(é mais uma das ilusões multiplicadas. O que muitas vezes desenhamos ou vemos e chamamos de ponto é formado por inúmeros outros pontos. Ao invés de se admitir a infinitude tenta-se determinar o indeterminável).
Se o ponto em si não existe, se ele não pode ser calculável pois
a base da geometria visual é a superfície, não o ponto. Essa geometria desconhece as paralelas e declara que o homem que se desloca modifica as formas que o circundam. O fundamento de sua aritmética é a noção de números indefinidos., então esse ponto primordial do universo não podia ser calculado, não podia ser mensurado... Ele não pode ser um ponto de partida.
Pois esse mesmo povo acreditava que o passado, o passado do universo, é uma memória do presente... Ou que todo tempo já foi transcorrido e nós somos uma memória, uma recriação plagiada duma era que já existiu, como se o Deus de outra teoria deles (a de que um deus subalterno escreveu o universo sob os atiçamentos dum demônio) que pode muito bem ser um Menard Sagrado, ou um Menard Almostásim...
A genialidade individual nada mais é que um compêndio de genialidades inúmeras, e o que antes considerávamos como sendo um ponto, trasladou-se de fato para uma superfície, pois o fantasmagórico Homero não é o ponto de saberes ocidentais que se expandiu e englobou o ocidente inteiro; ele é uma superfície de influências que vão desde tempos remotos até futuros remotos, como vamos ver mais tarde, onde tanto Joyce quanto Virgílio
influenciaram Homero...