Melian
Período composto por insubordinação.
Para abrir com chave de ouro, uma lista com obras muito bem selecionadas. Éomer fez comentários pertinentes, mesclando uma excelente síntese do enredo das obras, uma sutil análise, com as sensações que elas lhe proporcionaram.
Éomer disse:Aí vai a minha lista. É difícil escolher cinco livros, mesmo eu sendo um leitor medíocre. São muitos livros bons, então eu procurei colocar na lista aqueles que, não sendo os melhores talvez, são pelo menos os mais especiais. Tentei fazer um pequeno resumo de cada um. Não ficou grande coisa pois o tempo era curto, mas talvez sirva para aqueles que não tenham lido qualquer um dos livros se situem melhor.
Dom Quixote (El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de La Mancha, 1605 e 1615): Miguel de Cervantes.
D. Quixote e Sancho - Ilustração de Gustave Doré
Não tem como começar uma lista de cinco livros favoritos sem citar primeiro o Dom Quixote. É com certeza o livro que eu mais li e releio até hoje. Desde a versão de D. Quixote das Crianças, do M. Lobato, passando pelo "resumão" lançado pela editora Scipione na série Reencontro até finalmente chegar na clássica tradução portuguesa feita pelos Viscondes de Azevedo e de Castilho.
D. Quixote conta a história do fidalgo de vida medíocre Alonso Quijana, que de tanto ler livros de cavalaria (alguns de qualidade mais que duvidosa) acaba não distinguindo mais realidade de fantasia e resolve sair pelo mundo feito cavaleiro para vingar os fracos, amparar donzelas e justiçar os mal feitores, numa paródia aos ideais decadentes dos livros de cavalaria num mundo que se fazia cada vez mais individualista. Sua Dama é uma camponesa sem educação, que ele imagina uma fidalga belíssima. Suas princesas, vagabundas de beira de estrada. Seu corcel um pangaré velho meio morto de fome. Seus gigantes malvados são moinhos de vento. Seu escudeiro Sancho Pança, ao invés de ser um pajem bem nascido é um camponês ignorante. Aliás, D.Quixote e Sancho são dois personagens que se completam, quase como duas partes de uma só pessoa. Sancho é materialista, preocupado em primeiro lugar com a mesa farta, com o copo cheio e a cama bem feita. Apesar de ter a sabedoria e o pragmatismo dos homens simples aceita servir seu amo esperando ser governador de uma ilha que o fidalgo ganhará em combate. É quando ele embarca na fantasia e se mostra tão louco quanto D. Quixote que nós temos os momentos mais hilários do livro. Quixote é o homem idealista, de alma tão boa e nobre que acaba criando um mundo a parte para fugir da realidade do mundo que não lhe serve. Cervantes trata a personagem da maneira mais amarga possível. Ele serve de brinquedo aos poderosos. É espancado pelos ingratos presos que liberta e é ridicularizado de todas as maneiras possíveis. E quando finalmente se cura de sua loucura, no fim da vida, se dá conta da realidade e percebe que não existem mais herois. Se é que alguma vez existiram.O livro é perfeito. Não é a toa que foi escolhido em 2002 o maior livro de todos os tempos.
Ulisses (Ulisses, 1922) James Joyce
A leitura desse livro é daquelas coisas que acaba virando experiência de vida e pela qual ninguém passa inalterado. Depois de uma tentativa de leitura aos 16 (quando a gente não sabe nada de porra nenhuma) eu acabei tomando coragem para ler o livro novamente só ano passado, num processo que levou mais de meio ano. Ainda não tenho cacife para ler o livro no original. Ainda... A tradução escolhida foi a da professora Bernardina Pinheiro do Nascimento, publicada em 2007.
Ulisses, escrito em forma de paródia da Odisséia de Homero, descreve um dia (precisamente 16/06/1904) da vida do dublinense Leopold Bloom, de sua mulher Molly Bloom e do jovem Stephen Dedalus.
Bloom representa Odisseu, mas, ao contrário do grego que é herói favorito de vários deuses, é um homem tremendamente comum, que enfrenta sozinho suas provações, desde o anti-semitismo até adultério. Molly Bloom é Penelope, mas ao contrário da fiel esposa do grego, que espera pacientemente pelo término das aventuras de seu marido, é uma mulher fogosa e amoral, sensual e plena de vida, que trai o marido com seu empresário. Traição da qual Bloom tem plena consciência e é um dos motivos de sua odisséia por Dublin enquanto a esposa recebe o amante. Penélope guarda vinte anos de castidade até a volta de Ulisses. Bloom não faz sexo com a esposa desde a morte do filho, há mais de onze anos. Stephen Dedalus, companheiro de andanças de Bloom pelo labirinto de Dublin, representa Telêmaco, mas ao contrário do príncipe de Ítaca não procura um pai, mesmo insatisfeito com aquele que tem. Bloom, um pai à procura do filho perdido, acaba convidando Stephen a morar com ele.
O livro é dividido em dezoito capítulos (seis a menos que os 24 cantos da Odisséia) e em cada um deles é usada uma técnica de narrativa diferente. Monólogos interiores, delírios. O último capítulo (meu preferido do livro) é contado através de um fluxo de consciência de Molly, sem pausas, sem parágrafos, sem vírgulas, sem sentenças bem definidas. Um verdadeiro redemoinho de palavras para demonstrar a o turbilhão de sentimentos que são o corpo e, principalmente, a alma dessa mulher sedutora. Quanto a palavra em si, Joyce abusa da criação de neologismos, justaposição de palavras, uso de palavras estrangeiras, de gíria, erros propositais de concordância, interrupção de frases, etc. O grande livro do séc. XX e que dificilmente será superado.
Hamlet (Hamlet, 1602) - William Shakespeare
Esse é daqueles livros para se discutir durante horas e horas. Simplesmente não dá pra fazer uma lista de cinco livros favoritos sem citar algum do Shakespeare. Fiquei em dúvida forte se citava Hamlet ou Macbeth aqui, mas Hamlet acabou prevalecendo, apesar de achar o último também um livro perfeito, ao contrário da opinião de alguns escritores, que não tiveram tanta influência quanto o bardo na literatura universal, e que criticavam o livro
Hamlet conta a história do príncipe da Dinamarca que tem como missão dada pelo fantasma do finado pai (o rei Hamlet): vingar seu assassinato pelo irmão Cláudio, que além de usurpar o trono ainda tomou a sua mulher, Gertrudes. Cabe ao filho vingar o crime cometido contra o pai. Isso seria simples não fosse o próprio desejo que o príncipe demonstra de ter cometido o mesmo crime. Isso fica evidenciado na peça que Hamlet monta para que o rei Cláudio denuncie a si mesmo, apropriadamente chamada "A Ratoeira" (armadilha). Só que nessa peça não é o irmão do rei, mas sim o seu sobrinho, que o mata para casar-se com a viúva, sua mãe. Também fica nítido o desejo de Hamlet na forma vívida com que ele descreve à mãe as relações sexuais que ela deveria evitar ter com o marido. Na verdade ele se pergunta: matar alguém que cometeu um crime que eu cometeria? Ou então: vale a pena cometer o crime para provar que sou melhor que ele? Edipianismos à parte, o grande tema do livro é a Vingança e o que as pessoas são capazes de fazer e sacrificar em nome dela, como a honra, a sanidade ou o amor verdadeiro. A vingança é a grande personagem e leva a todos no final.
O Retrato de Dorian Gray ( The Picture of Dorian Gray, 1891) - Oscar Wilde
Esse daqui, além de ser um ótimo livro, eu coloquei na lista por nostalgia. Foi o primeiro romance estrangeiro "adulto" que eu li há bastante tempo.
O livro conta a história do jovem Dorian Gray, um rapaz que tem uma beleza que fascina a todos e que tem seu retrato pintado por Basil Hallward, pintor que, pelo que sugere Wilde, inclusive nutriria uma paixão platônica pelo modelo. Basil não quer expor a pintura, pois garante "ter colocado muito de mim mesmo" na obra. Na noite em que o retrato fica pronto, Dorian conhece Lorde Henry Wotton, um aristocrata cínico, hedonista e imoral. Ele faz Dorian ver como a vida é passageira e que inevitavelmente ele perderá seus bens mais preciosos: beleza e juventude. Então ele olha para a pintura, que não envelhecerá, e deseja que fosse o contrário; que o quadro envelhecesse e assumisse todas as marcas da passagem do tempo e de seus pecados enquanto ele permaneceria jovem e belo, inclusive se dispondo a entregar a própria alma para que isso acontecesse. Então, influenciado por Henry, ele se entrega à uma vida de prazeres cada vez maiores e mais perversos, até o dia que percebe que seu desejo se realizou. Então o processo de destruição da pintura se acelera pois ele cada vez mais se afunda em uma vida de vícios e maldade, inclusive chegando ao assassinato. No final, horrorizado com o que a imagem lhe mostra, ele resolve "matar" o retrato, o que acaba causando seu próprio fim.
O Tempo e o Vento (1949, 1951 e 1962) - Érico Veríssimo
Na escolha desse livro acabou predominando o meu lado bairrista. Como disse Tolstói "se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia". O Tempo e o Vento conta a história da formação do estado e do povo gaúcho, desde o final do Sec. XVIII, epoca das Missões Jesuíticas, quando parte do estado ainda pertencia à Espanha, até o ano de 1945, com a queda de Getúlio e o fim do período Estado Novo. É dividido em três livros: O Continente (1949), O Retrato (1951) e O Arquipélago (1962).
O Continente, que é meu livro favorito da trilogia, se passa entre o ano de 1745 até o final da Revolução Federalista de 1895. A formação do "gaúcho" é representada pelo encontro do mestiço Pedro Missioneiro, proveniente de uma redução jesuítica destruída por soldados portugueses e Ana Terra, filha de um descendente de colonizadores açorianos. O filho de Ana e Pedro, Pedro Terra, dá origem as duas principais famílias do livro, os Terra e os Terra Cambará, através do casamento de sua filha Bibiana com o Cap. Rodrigo Cambará. Assim como Ana Terra é o personagem feminino símbolo da obra, Rodrigo Cambará e o personagem masculino gaúcho característico: valente, viril, mulherengo, audacioso, perito com as armas e amante da liberdade. De um tempo em que palavras como honra, palavra e hombridade ainda estavam em moda. Sempre que questionado de onde vem ele responde: "de muitas guerras". E de fato a Guerra é uma das personagens principais de O Continente. A ação se desenvolve entre as várias guerras, escaramuças e revoluções, sejam elas guerras travadas com os "castelhanos", como a da Cisplatina e a do Paraguai ou revoluções internas como a Farroupilha e a Federalista. E é durante essas guerras que se desenvolve o plano de fundo para os personagens femininos brilharem. As mulheres de o Tempo e o Vento são quem de fato conferem a força ao livro. Mulheres como Ana, Bibiana e Maria Valéria. São elas que ficam e garantem a continuidade de tudo, o "chão". Apesar de vistas muitas vezes pelos homens quase como que servindo apenas para servir e parir. Muito mais corajosas, mas lutando uma guerra diferente conforme as palavras de Floriano Cambará, espécie de alter ego de Veríssimo na obra: " Sem mulheres como a velha Ana Terra, a velha Bibiana e a velha Maria Valéria não existiria também o Rio Grande. Elas eram o chão firme que os heróis pisavam. A casa que os abrigava quando eles voltavam da guerra. O fogo que os aquecia. Mãos que lhes davam de comer e de beber. Elas eram o elemento vertical e permanente da raça."
O Retrato e o Arquipélago tem sua trama girando em torno do Dr. Rodrigo Cambará, descendente do Cap. Rodrigo, personagem onde o "gaúcho típico" e o "homem civilizado" por vezes entram em conflito. Homem de gosto sofisticado e culto mas que às vezes revela o gaúcho violento e escravo de suas paixões. Bem intencionado no começo de O Retrato aos poucos vai se deixando corromper. Ao contrário de Dorian Gray, seu famoso retrato permanece inalterado, mostrando o glorioso futuro que se desenhava a sua frente. Tanto que nas palavras de Dom Pepe, o pintor, é no retrato que pintou que se conserva o Rodrigo verdadeiro. O outro é uma fraude. Mais uma das ilhas de incomunicabilidade que são os personagens do grande Arquipélago que é o ultimo livro da trilogia.