Melian
Período composto por insubordinação.
Tolstói disse que os temas mais complexos podem ser explicados ao menos inteligente dos homens, caso ele ainda não tenha uma ideia formada sobre eles; mas o assunto mais banal não pode ser esclarecido ao mais inteligente dos homens caso ele esteja convencido de que já conhece sem sombra de dúvida o que tem diante de si. Ao analisarmos as duas — a primeira está aqui — listas de livros favoritos do Paganus percebemos que ele nunca está convencido. Cada livro escolhido, numa lista ou na outra, parece ser uma tentativa de se convencer do que é apenas vestígio e, embora ele argumente de modo satisfatório, está, sempre, em busca de outros argumentos, o que é possível notarmos mesmo quando se trata de O Pequeno Príncipe, livro que está presente em ambas as listas, e que o Paganus afirma reler todo mês, para poder redescobrir, para poder encontrar coisas que nem desconfiava existir. E é impossível falarmos sobre procura sem que mencionemos Clarice Lispector, que figura na lista por intermédio de A paixão Segundo G.H. Este livro, não por acaso, tem início com o gerúndio, que indica uma ação em andamento. Não estamos, todos, procurando, tentando entender e dar a alguém o que vivemos? É que viver, dizia Riobaldo, é muito perigoso. Mas o que ele não disse é que não viver é ainda mais perigoso.
1. O Pequeno Príncipe (Antoine de Saint-Exupéry)
Esse aqui não sai nunca mais da minha lista. É um livro com um significado profundo, cujas lições valiosas serão, sempre, extraídas, de formas novas. Eu leio pelo menos uma vez por mês, para não perder o contato e a amizade com o principezinho, a raposa, a rosa, tão amada rosa, tão disposta a ferir como a perdoar... Para além de lições morais, eu costumo dizer que é um livro rico em pensamento e reflexão, porque vai além de determinar regras de conduta. Os valores estão ali, na carne de um texto infantil, e isso se percebe no próprio texto, belíssimo e sempre rico.
2. O amor nos tempos do cólera (Gabriel García Márquez)
Não existe livro mais precioso para mim. É o livro que me fez querer ser escritor, que me fez me apaixonar pelo ofício, pela habilidade e capacidade de um ser humano despertar tais emoções, tais pensamentos no leitor. Não se mencione que a história de amor descrita aqui se assemelha muito à minha própria, ou que eu ame como as relações mais puramente carnais são expressas com tanto sentimento e vivacidade, mas o fato é que o que ele possui de mais sensual está na escrita, na narração da história.
3. Grande Sertão: Veredas (Guimarães Rosa)
Cleozinha vai querer me matar pelo meu atraso em fazer o tópico do Rosa, mas esse livro eu vou falar, já: é quase uma pintura, de tão bem feito. É uma escrita revolucionária, um estilo inigualável, uma obra que o homem dificilmente poderá fazer parecida em sua estranha aventura na Terra. Não é só uma obra-prima, é um clássico instantâneo, um monumento literário. Como se já não bastasse o enredo faustiano (bem em linha com nosso Clube de Leitura), envolvendo supostos pactos, e as querelas filosóficas que o jagunço Riobaldo se mete a enfrentar, sem resolver, poucas vezes um romance tão profundo foi tão belamente escrito, a ponto de se querer ler o livro em voz alta o tempo todo, pois parece um crime cada segundo que bicho homem passa na existência sem se deleitar com a bruxaria que o Rosa foi capaz de evocar aqui; levantando o sentido da terra mais seca e mais árida, aqui tornada eloquente, viva, profética.
4. Ulysses (James Joyce)
E falar de Rosa sem falar de Joyce é falhar em muita coisa. O Ulysses, talvez não sua obra mais extensa e complexa (esse papel cabe a Finnegan's Wake), mas aqui Joyce criou o antirromance, a tentativa mais ousada e destrutiva de recriação da arte literária. O que há de mais impressionante nesse livro? Certamente, não é o enredo banal: um dia corriqueiro da vida do judeu Bloom. Seria a profusão de gêneros literários que compõem os capítulos? A diversidade de tons, sentidos e linguagens? As mudanças repentinas de focalização, abordagem e tratamento das mesmas questões? Ou o tom abertamente debochado com que toda a tradição ocidental, e não apenas literária, é defenestrada, ridicularizada? Talvez, seja tudo isso; talvez, nada disso. O que sei é que essa leitura é um desafio, e é um desafio que é um prazer, e as recompensas são muitas, variadas, e se dirigem especialmente àqueles de nós que estão cansados dessas "palavras grandes que nos deixam tão tristes". Aqui o grande tesouro está no percurso, no esforço que ele exige, no prazer com que tantas referências e cânones são destruídos; o prazer secreto de todo leitor, o grande orgasmo sempre prometido e jamais cumprido. Aqui. Agora. Sim.
5. A paixão segundo G. H. (Clarice Lispector)
Falando em bruxaria, minha querida não poderia faltar. Eu não sei se é meu livro preferido dela, sendo que só li os contos, alguns bem mais impressionantes, mas essa obra é chocante. Choca ler as reflexões filosóficas dessa mulher, que come a carne de uma barata morta; mas a barata, sejamos sinceros, é o que choca menos, depois de uma excursão pelo que há de baixo da pele da vida. Os sábios de Torá, os cabalistas mais bem preparados, só sorririam ao passar os olhos pela obra dessa judia moderna, independente e tão forte: a tradição mística judaica pulsa nas veias desse trabalho, e não de forma aberta e panfletária, mas sutil, poética. A viagem nos leva para dentro da nossa pele, para o interior do sentido próprio e individual da existência humana, e nos deixa aos pés de Ha'Kadosh Baruch Hu, o Eterno, Bendito Seja. No stones unturned, que miséria, Clarice, que você faz com a minha alma?