[SIZE=4,5]Tentando voltar à pergunta que eu lancei, pois acho que ela vai um pouco mais a fundo num argumento que tem sido repetido com ênfase por quem defendeu o boicote: posso concordar que as obras expostas não continham apologia e que não é crime e que você é livre pra fazer suas miçangas. Mas, seguindo o que o Grimnir expôs, existe investimento público pelo menos indireto. Logo, tem meu dinheiro envolvido. Ora: existiam obras na exposição que faziam críticas ou que no mínimo mexiam com susceptibilidades religiosas. Então me parece razoável perguntarmos:
Investimento público deve ser feito apenas numa arte que agrade a maioria ou que pelo menos não a faça torcer o nariz?
Vamos abstrair por exemplo o ricochete de que, a depender da resposta, eu vou ter aguentar calado quando militantes resolverem boicotar obras de arte dos santos padroeiros do meu espectro ideológico sob alegações de machismo, racismo, terraplanismo e alpinismo.
Eu também não tenho uma opinião formada sobre o assunto... Cheguei a ler algumas coisas a respeito no começo do ano mas depois da OAB eu já não lembro nem quais foram as conclusões Mas eu tentaria formular assim:
1) Se formos investir apenas no que as pessoas gostam, então criamos o risco de que o investimento público se veja refém de setores mastodônticos da iniciativa privada. Ou seja, a chance de que a grana corresse para os bolsos de um Wesley Safadão ou de uma Globo Filmes seria enorme. As pessoas, claro, não são massa de manobra pura e simplesmente, mas ao mesmo tempo não se pode menosprezar o impacto que é viver num ambiente inteiramente imerso de cultura de massas e com o acesso a uma alta cultura (sei que os termos são problemáticos mas proponho que relevemos) no geral restrito.
2) Então eu penso que, com exceção dos liberais, que obviamente possuem um pé atrás com a simples ideia do financiamento público, conservadores e esquerdistas concordam que é até positivo que o investimento exista, mas que seja feito de maneira inteligente. A postura conservadora grosso modo dizendo que precisamos investir numa arte engrandecedora que faça jus aos grandes monumentos da nossa cultura e a postura esquerdista defendendo uma produção artística plural e crítica. Com isso não se quer dizer que investimento público em artes redunde necessariamente em colocar grana no cofrinho de militantes. Imagino que a maioria das orquestras sinfônicas no país dependa de subsídios públicos em algum sentido -- e se é assim, então estamos diante de um investimento público que certamente agradará os conservadores.
3) Logo, creio que a defesa de investimentos públicos em arte seja razoável. E creio que podemos dizer com relativa tranquilidade que deve se pautar pela diversidade, afinal de contas qualquer um que conheça um mínimo de arte sabe que a arte é quase que por definição extremamente plural. Não estou pedindo pra que você considere como arte um tubarão num tanque de formol ou então performances onde uma fila indiana de mulheres mija nas calças. Considere apenas os versos livres de Walt Whitman e os sonetos de Heredia, ou então a poesia metafísica de um Rilke e a poesia erótica de um Aretino. É fácil concluir que a arte é diversa, isso mesmo excluindo o avant-garde ou a arte conceitual da jogada.
4) Logo, considerando que investir em arte deve ser não apenas investir em artistas determinados mas fomentar o meio cultural de um modo mais amplo, permitindo que por exemplo pessoas comuns produzam arte e possam compreendê-la, tenho que o investimento em arte deve se pautar também pela pluralidade, uma vez que seria empobrecedor investir só numa parcela. Mesmo um bom conservador sabe que quando tratamos de alta cultura ou de uma arte engrandecedora nós não falamos de estátuas marmóreas de anjos rechonchudos. Podemos falar, por exemplo, de obras que escancarem a degradação da condição humana.
5) Só que a partir daqui, é claro, começamos a pisar em terrenos áridos. Existem manifestações localizadas em zonas extremamente cinzentas do que seria arte -- e elas datam de pelo menos meio século atrás. Qualquer um consegue citar uma obra de arte wtf que já deve ter visto em algum vídeo zanzando pela internet. Devemos investir em obras de arte assim -- ou seja, obras que se localizam de maneira consciente em zonas fronteiriças de um conceito de arte?
6) Do mesmo modo, a polêmica levantou uma questão que, como dito, realmente me parece interessante: defender o investimento público em arte parece funcionar quando eu cogito coisas como as orquestras sinfônicas. Mas e quando eu trato de obras que incorporam para si críticas sociais ferrenhas? Não é essa, aliás, uma defesa comumente feita do valor da arte por setores de esquerda -- ou seja, de que a arte nos faz pensar, de que a arte é crítica? (Eu particularmente discordo mas enfim.) Sei que nesse caso a coisa parece ficar fácil de ser respondida pois nós podemos ridicularizar essas obras pretensamente críticas quando descobrimos que seu autor é um militante aleatório que tira meleca do nariz. Mas e quando a obra de arte é, sei lá, L'Origine du Monde do Courbet? Os contribuintes vão gostar de saber que o Estado está gastando uma fortuna investindo num quadro que retrata uma vagina gigantesca?
7) Contra-resposta óbvia: posso dizer que se trata de uma obra importantíssima para a história da arte. Ao que eu indagaria: então se uma obra possuir uma importância para a história da arte, por mais polêmica e estarrecedora que ela seja, justifica os investimentos públicos recebidos? Porque se for assim, podemos investir em obras polêmicas e estarrecedoras que sejam clássicas mas não podemos investir nas que sejam contemporâneas, uma vez que a sedimentação de um valor artístico é por definição um processo histórico que requer um debate crítico que às vezes dura décadas... Eu até poderia investir em obras contemporâneas que tenham recebido muitos prêmios e o aval de grandes críticos, mas ainda assim a sedimentação não seria tão consolidada pois não passaria por exemplo pelo teste do tempo, que comumente é citado como uma maneira sólida de mensurar a relevância artística de uma obra.
8) Enfim. Não sei se ficou claro, mas desta exposição eu termino por chegar a conclusões próximas do argumento liberal, de que o investimento público em arte não parece ser uma boa ideia, ou então termino por chegar a uma concepção de investimentos públicos em arte que se pautem a partir numa defesa e numa busca as mais amplas possíveis pela diversidade. Afinal de contas:
8.1) se a obra questiona os limites da arte, não faz sentido que ela se apoie numa instância de legitimação artística tão consolidada como seria o caso da instância estatal;
8.2) o investimento público, se diante de obras polêmicas e estarrecedoras, obviamente choca seu público contribuinte e o deixa incomodado, de modo que ou eu me arvoro numa reputação artística que a obra possua, o que só é solidamente possível para obras clássicas, ou então eu elejo uma obra sem toda essa reputação crítica e ainda assim invisto nela, o que é uma maneira me parece claramente autoritária de proceder.[/SIZE]
Investimento público deve ser feito apenas numa arte que agrade a maioria ou que pelo menos não a faça torcer o nariz?
Vamos abstrair por exemplo o ricochete de que, a depender da resposta, eu vou ter aguentar calado quando militantes resolverem boicotar obras de arte dos santos padroeiros do meu espectro ideológico sob alegações de machismo, racismo, terraplanismo e alpinismo.
Eu também não tenho uma opinião formada sobre o assunto... Cheguei a ler algumas coisas a respeito no começo do ano mas depois da OAB eu já não lembro nem quais foram as conclusões Mas eu tentaria formular assim:
1) Se formos investir apenas no que as pessoas gostam, então criamos o risco de que o investimento público se veja refém de setores mastodônticos da iniciativa privada. Ou seja, a chance de que a grana corresse para os bolsos de um Wesley Safadão ou de uma Globo Filmes seria enorme. As pessoas, claro, não são massa de manobra pura e simplesmente, mas ao mesmo tempo não se pode menosprezar o impacto que é viver num ambiente inteiramente imerso de cultura de massas e com o acesso a uma alta cultura (sei que os termos são problemáticos mas proponho que relevemos) no geral restrito.
2) Então eu penso que, com exceção dos liberais, que obviamente possuem um pé atrás com a simples ideia do financiamento público, conservadores e esquerdistas concordam que é até positivo que o investimento exista, mas que seja feito de maneira inteligente. A postura conservadora grosso modo dizendo que precisamos investir numa arte engrandecedora que faça jus aos grandes monumentos da nossa cultura e a postura esquerdista defendendo uma produção artística plural e crítica. Com isso não se quer dizer que investimento público em artes redunde necessariamente em colocar grana no cofrinho de militantes. Imagino que a maioria das orquestras sinfônicas no país dependa de subsídios públicos em algum sentido -- e se é assim, então estamos diante de um investimento público que certamente agradará os conservadores.
3) Logo, creio que a defesa de investimentos públicos em arte seja razoável. E creio que podemos dizer com relativa tranquilidade que deve se pautar pela diversidade, afinal de contas qualquer um que conheça um mínimo de arte sabe que a arte é quase que por definição extremamente plural. Não estou pedindo pra que você considere como arte um tubarão num tanque de formol ou então performances onde uma fila indiana de mulheres mija nas calças. Considere apenas os versos livres de Walt Whitman e os sonetos de Heredia, ou então a poesia metafísica de um Rilke e a poesia erótica de um Aretino. É fácil concluir que a arte é diversa, isso mesmo excluindo o avant-garde ou a arte conceitual da jogada.
4) Logo, considerando que investir em arte deve ser não apenas investir em artistas determinados mas fomentar o meio cultural de um modo mais amplo, permitindo que por exemplo pessoas comuns produzam arte e possam compreendê-la, tenho que o investimento em arte deve se pautar também pela pluralidade, uma vez que seria empobrecedor investir só numa parcela. Mesmo um bom conservador sabe que quando tratamos de alta cultura ou de uma arte engrandecedora nós não falamos de estátuas marmóreas de anjos rechonchudos. Podemos falar, por exemplo, de obras que escancarem a degradação da condição humana.
5) Só que a partir daqui, é claro, começamos a pisar em terrenos áridos. Existem manifestações localizadas em zonas extremamente cinzentas do que seria arte -- e elas datam de pelo menos meio século atrás. Qualquer um consegue citar uma obra de arte wtf que já deve ter visto em algum vídeo zanzando pela internet. Devemos investir em obras de arte assim -- ou seja, obras que se localizam de maneira consciente em zonas fronteiriças de um conceito de arte?
6) Do mesmo modo, a polêmica levantou uma questão que, como dito, realmente me parece interessante: defender o investimento público em arte parece funcionar quando eu cogito coisas como as orquestras sinfônicas. Mas e quando eu trato de obras que incorporam para si críticas sociais ferrenhas? Não é essa, aliás, uma defesa comumente feita do valor da arte por setores de esquerda -- ou seja, de que a arte nos faz pensar, de que a arte é crítica? (Eu particularmente discordo mas enfim.) Sei que nesse caso a coisa parece ficar fácil de ser respondida pois nós podemos ridicularizar essas obras pretensamente críticas quando descobrimos que seu autor é um militante aleatório que tira meleca do nariz. Mas e quando a obra de arte é, sei lá, L'Origine du Monde do Courbet? Os contribuintes vão gostar de saber que o Estado está gastando uma fortuna investindo num quadro que retrata uma vagina gigantesca?
7) Contra-resposta óbvia: posso dizer que se trata de uma obra importantíssima para a história da arte. Ao que eu indagaria: então se uma obra possuir uma importância para a história da arte, por mais polêmica e estarrecedora que ela seja, justifica os investimentos públicos recebidos? Porque se for assim, podemos investir em obras polêmicas e estarrecedoras que sejam clássicas mas não podemos investir nas que sejam contemporâneas, uma vez que a sedimentação de um valor artístico é por definição um processo histórico que requer um debate crítico que às vezes dura décadas... Eu até poderia investir em obras contemporâneas que tenham recebido muitos prêmios e o aval de grandes críticos, mas ainda assim a sedimentação não seria tão consolidada pois não passaria por exemplo pelo teste do tempo, que comumente é citado como uma maneira sólida de mensurar a relevância artística de uma obra.
8) Enfim. Não sei se ficou claro, mas desta exposição eu termino por chegar a conclusões próximas do argumento liberal, de que o investimento público em arte não parece ser uma boa ideia, ou então termino por chegar a uma concepção de investimentos públicos em arte que se pautem a partir numa defesa e numa busca as mais amplas possíveis pela diversidade. Afinal de contas:
8.1) se a obra questiona os limites da arte, não faz sentido que ela se apoie numa instância de legitimação artística tão consolidada como seria o caso da instância estatal;
8.2) o investimento público, se diante de obras polêmicas e estarrecedoras, obviamente choca seu público contribuinte e o deixa incomodado, de modo que ou eu me arvoro numa reputação artística que a obra possua, o que só é solidamente possível para obras clássicas, ou então eu elejo uma obra sem toda essa reputação crítica e ainda assim invisto nela, o que é uma maneira me parece claramente autoritária de proceder.[/SIZE]