Sinceramente, você acha ou viu (aqui eu de antemão digo que não lembro de ter visto) algum artista claramente racista, xenofóbico e/ou homofóbico fazendo alguma obra onde fizesse uma defesa (explícita ou implícita) dos direitos de grupos marginais reais (nada de heterofobia ou cristofobia)? Se ele, o artista, levantasse a discussão seria de que forma, em defesa ou como crítica?
Meu ponto não é - nunca foi - sobre quais seriam as intenções por trás de um eventual artista declaradamente, sei lá, homofóbico. Meu ponto era sobre sua tentativa de associar tal caráter ao conservadorismo ou à direita.
Bem, na sua concepção, o que mais faz alguém ser conservador? Tirando os casos óbvios de autopromoção (seja política, pessoal etc)? Falo conservador no sentido sociológico, não econômico. Como você mesmo apontou nesse post, o conservadorismo vulgar. "pelo bem da família", "em defesa da família tradicional" etc é algo anacrônico.
Conservadorismo é antes de tudo uma ideologia política. O entendimento político ou sociológico do que caracteriza um conservador e o conjunto de ideias conservadores não é algo que se vá explicar aqui, é assunto deveras extenso e complexo. Mas, grosso modo, acho que é preciso dizer duas coisas:
1) é equivocada a visão que entende o conservadorismo como uma simples tentativa de
conservar as coisas como são/eram. Há, na verdade, muitos matizes dentro do conservadorismo sobre como abordar o processo de mudança social. Mas um elemento comum que surge dessa questão é que conservadores são contra mudanças radicais, daí geralmente* se oporem a revoluções. Isso não significa querer manter o status quo apenas porque sim; significa, antes, não confiar cegamente numa aventura imprevisível que pode colocar toda uma sociedade numa situação pior do que estava e do que pretendiam as almas bem intencionadas por trás da revolta (o caminho do inferno é pavimentado de boas intenções, diria até o Marx). Disso advém o elemento cético dos conservadores em relação à política e à concetração de poderes, e também o segundo ponto:
2) conservadores tendem a valorizar o conhecimento acumulado nas instituições e costumes da sociedade, entendendo que muitos desses elementos nos permitiram chegar até aqui e que portanto não devem ser simplesmente descartados como se fossem algo supérfluo, desnecessário - ainda mais se tal descarte for o que pretende algum poder central ou algum grupo de interesse bem organizado.
* para você ver como a coisa não é tão simples: Burke, considerado por muitos como o pai do conservadorismo moderno, se colocou contra a Revolução Francesa, mas apoiou a Revolução Americana.
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Note que estou aqui usando pinceladas largas para ser sucinto. Mas desses elementos acima já dá pra visualizar uma míriade de posicionamentos diferentes que podem advir desse conjunto de ideias, inclusive contradições. Por exemplo, quando eu disse que conservadores são céticos em relação à política e à concentração de poderes, você deve ter imaginado que "não é bem assim". De fato, para alguns conservadores (muitos dos quais podemos colocar naquela categoria "vulgar") a ideia de preservar certas instituições ou valores estará acima da desconfiança com o poder, e verão com bons olhos um poder que defenda sua agenda - chegando, por vezes, a extremos como a defesa de um poder militar para tanto.
Também poderia mencionar o próprio Burke e o conservatismo que deriva mais diretamente dele, que pode ser entendido como um posicionamento favorável a mudanças graduais na sociedade. Aliás, lembrei agora
desse ótimo artigo que visa mostrar como, seguindo a lógica burkeana, um conservador deveria ser pró casamento de pessoas do mesmo sexo.
Poderia, ainda, dizer que atitutes conservadoras não são exclusivas de quem se identifica com a ideologia conservadora. Quando alguém de esquerda reclama que o capitalismo malvadão está descaracterizando culturas, ou que o advento da sociedade de mercado é uma aberração histórica (à la Polanyi) que deve ser expurgada, ele está agindo de maneira conservadora (talvez até reacionária) em relação a essas questões. O mesmo vale para quando se defende que as conquistas históricas dos trabalhadores devem ser protegidas: há aí um elemento conservador. Até porque o conservadorismo, nesse sentido, é sempre relacional: em algum momento, mesmo revolucionários hão de querer proteger suas conquistas e aquilo que julgam o melhor para a sociedade.
Enfim, eu entendo todo o desgosto pela patota conservadora vulgar que tanto se vê por aí. Mas há sempre que se fazer um esforço para não se colocar tudo dentro de um binarismo maniqueísta, tomando as ideias (e as pessoas que as defendem) apenas por seus mínimos denominadores comuns. Pessoas e ideias são coisas bastante complexas, e mesmo quem só adere de maneira tangencial a um conjunto de ideais não deve ser tomado por simples ignorante ou mal intencionado. E quanto mais você tenta simplificar as coisas e colocá-las em compartimentos estanques, mais você se aproxima daquilo de que reclama.