Caro Visitante, por que não gastar alguns segundos e criar uma Conta no Fórum Valinor? Desta forma, além de não ver este aviso novamente, poderá participar de nossa comunidade, inserir suas opiniões e sugestões, fazendo parte deste que é um maiores Fóruns de Discussão do Brasil! Aproveite e cadastre-se já!
Sobre a tradução de Martin no Brasil: o processo
Bom. Vamos lá então falar por extenso sobre este assunto.
Para quem não está por dentro dele, aqui fica um resumo: A Leya vai publicar no Brasil a série As Crónicas de Gelo e Fogo, de George R. R. Martin. Para esse efeito comprou a minha tradução à Saída de Emergência e adaptou-a ao português brasileiro. Eu soube que era eu o tradutor da edição brasileira ao mesmo tempo do público brasileiro, através duma mensagem no twitter que remetia para a divulgação dos primeiros capítulos da edição brasileira no site Omelete. Quem estiver interessado, pode obter esse PDF aqui. Reagi, como se compreenderá, com completa estupefação.
Houve, claro, uma falha de comunicação entre mim e a SdE, mas entretanto a comunicação fez-se, conversámos e o problema está resolvido a contento. Infelizmente, não foi essa a única falha de comunicação que existiu em todo este processo. Houve outra falha de comunicação com consequências mais sérias para a qualidade final do trabalho, entre mim e a própria Leya.
Parece ser razoavelmente consensual entre os leitores portugueses que a minha tradução destes primeiros livros da série do Martin não é má. Tem até havido quem a tenha apelidado de excelente ou fantástica. Alegra-me que assim seja, mas tenho de confessar aqui com toda a clareza que não partilho do entusiasmo. A Guerra dos Tronos foi apenas o quarto livro que traduzi de fio a pavio na minha carreira. Hoje, três anos e meio mais tarde, sou um tradutor diferente, muito mais experiente, que olha para o trabalho que fez nessa época e não consegue evitar torcer de vez em quando o nariz. Cometi alguns erros por inexperiência. Se a Leya tivesse comunicado comigo, esses erros poderiam ter sido corrigidos na edição brasileira. Infelizmente não o fez. Cometi outros, em especial nos topónimos, por não ter lido toda a série antes de começar a traduzir o primeiro livro e por isso não saber ao certo qual a origem deste ou daquele nome. Agora, já a li. Se a Leya tivesse contactado comigo, esses erros poderiam ter sido corrigidos na edição brasileira. Infelizmente não o fez.
Depois há a questão da adaptação ao português brasileiro. Também aqui, a falta de comunicação foi total mas não devia ter sido. O trabalho ficaria muito melhor se tradutor e adaptador tivessem estado em contacto permanente. Ter-se-iam evitado erros, ter-se-iam evitado opções que desvirtuam algumas das coisas que considero melhor conseguidas na minha tradução. Mas infelizmente, tradutor e adaptador não contactaram nem por uma vez ao longo de todo este processo. E o resultado deixa-me perplexo.
Não percebo, por exemplo, por que motivo se adaptaram algumas coisas e não se adaptaram outras. Não percebo porque "A minha mãe disse-me que os mortos não cantam" é transformado em "Minha mãe disse-me que os mortos não cantam" e não em "Minha mãe me falou que os mortos não cantam" ou pelo menos "Minha mãe me disse que os mortos não cantam", que soa bem mais natural aos ouvidos brasileiros. É uma questão de registos de linguagem. Quem fala é um homem humilde que deve falar como pessoa humilde. Também não percebo porque foi "E a noite está a cair" adaptado para "E a noite está para cair" e não para "E a noite está caindo", que seria mais correto porque o "a cair" comum no português de Portugal se refere a algo que está a acontecer no presente, tal como o gerúndio que se prefere usar no do Brasil, e não ao futuro próximo que está implícito em "para cair".
E é mais do que incómodo aquilo que sinto por adaptações erradas que desvirtuam o próprio significado do texto, como a transformação de "Estava há quatro anos na Muralha. Da primeira vez que fora enviado para lá dela" em "Estava havia quatro anos na Muralha. Da primeira vez que fora enviado para lá". Ser-se enviado para lá de qualquer coisa significa ser-se enviado para além dessa coisa, para os territórios que se estendem do outro lado; ser-se enviado para "lá", sem mais, é ser-se enviado para a própria coisa. A personagem, aqui, reflete sobre as suas primeiras patrulhas pela floresta assombrada, mas a adaptação brasileira faz com que reflita sobre a própria Muralha.
Também não percebo porque em "Aposto que foi ele próprio quem as matou a todas, ah pois aposto" a única adaptação foi a remoção do "a" de "a todas", mantendo o "ah pois" que é usado (exageradíssimamente, diga-se) pelos brasileiros como sinal inconfundível de identificação do português de Portugal. Trata-se uma fala, de outra personagem de origem humilde, ainda que na recordação do protagonista deste capítulo. Se eu tivesse sido consultado, teria sugerido algo como "aposto que foi ele mesmo quem as matou a todas, aposto sim". Mas não fui. E, no sentido inverso, não consigo perceber porque "Alguma vez vistes uma tempestade de gelo, senhor?" foi transformado em "Alguma vez viu uma tempestade de gelo, senhor?" Ao contrário do que alguns brasileiros possam pensar, o uso da segunda pessoa do plural não é português de Portugal padrão; é a forma que encontrei para, por um lado, ampliar a minha escolha de formas de tratamento e níveis de linguagem e melhor separar o que é formal e respeitoso do que é informal e, por outro, melhor inserir as personagens num ambiente antiquado e respeitar o texto do autor.
Sim porque, ao contrário do que tem sido dito por aí, Martin utiliza estruturas fraseológicas e algum léxico arcaicos. Surgem com alguma frequência ao longo das Crónicas palavras que nem sequer vêm nos dicionários (tive mesmo de o consultar um par de vezes sobre o significado de algumas delas) e com mais frequência ainda surgem palavras que aparecem nos dicionários mas antecedidas da notazinha "arc." Ele próprio me disse, quando esteve em Portugal há um par de anos, que só não utiliza mais desse tipo de coisas porque o editor não deixa. O texto dele está salpicado de arcaísmos, e o uso de "vós" no texto português foi uma das formas que encontrei para respeitar esses salpicos. Para a generalidade dos leitores portugueses, esse uso é precisamente tão estranho como para a generalidade dos leitores brasileiros. A exceção é uma zona dialectal do Norte do país, perto da fronteira com a Galiza, onde a segunda pessoa do plural ainda é de uso corrente. São talvez 5% dos portugueses. Para os outros, não é nada que estejam habituados a encontrar, mas nenhum deles se queixou de que isso prejudicava a fluidez do texto. No máximo, exigiu-lhes umas páginas de adaptação. As mesmas, suponho, que os arcaísmos do Martin terão exigido aos leitores anglófonos. Por isso custa-me mesmo muito a aceitar que a adaptação ao português do Brasil destrua este aspeto da tradução. Quem sabe, se tivesse havido comunicação talvez não destruísse.
E chega. Tudo isto aparece nas primeiras duas páginas. Não vale a pena dizer mais.
Um trabalho deste género exigiria um contacto e colaboração estreitos entre tradutor e adaptador, que infelizmente não existiu. Não sei porquê, nem me vou pôr a especular. Mas não posso estar contente com o resultado final tal como aparece no PDF que foi disponibilizado. Esta, embora seja a minha tradução, não é a minha tradução.
E é isto o que tenho a dizer sobre este assunto em concreto. Ainda tenho mais umas ideias gerais sobre a questão das traduções únicas entre países (e portanto mercados) e dialetos diferentes, mas isso ficará para mais tarde, porque são ideias que tenho vindo a desenvolver ao longo de anos e com maior premência durante a recente discussão à volta do acordo ortográfico, portanto a única coisa que têm a ver com este assunto é o facto de eu ter sido tocado diretamente por um caso destes. Por ter sido tocado diretamente por um caso destes, farei um post sobre esses assuntos em breve, mas porque eles não têm diretamente a ver com a tradução concreta que aqui se discute, acho aconselhável separar as coisas.
Blog Leitura Escrita disse:E isso é lambança, não tem outro nome. Os custos operacionais seriam tão grandes assim para o texto não ter sido adaptado? Creio que não, ainda mais sabendo que o lucro num mercado em ascensão e onde obras de fantasia começam a figurar na lista dos mais vendidos. Custava ter carinho e cuidado mínimos com o público consumidor e com a obra a ser traduzida/adaptada, ou qualquer coisa vende com o marketing adequado e que se dane a qualidade?
anacarol_atreides disse:Nossa, citaram meu blog aqui e eu nem tinha visto