Lula no meio da nova guerra fria
Alcino Leite Neto
12/04/2002
Lula não contava com isso. Foi mais do que ele esperava. Sua presença no comício de Lionel Jospin em Bordeaux, a famosa cidade que dá nome aos melhores vinhos franceses, significou para o petista uma consagração política e pessoal que ele não tinha recebido até agora no exterior.
Depois do comício, Lula não escondia a satisfação com tudo que ocorrera e estava evidentemente emocionado. O primeiro-ministro da França não apenas lhe havia dado o seu apoio político para as eleições no Brasil, como consagrara a biografia do brasileiro como a de um exemplar homem de esquerda, contando ao público a trajetória de Lula desde sua saída do Nordeste. "Ele foi, criança, para a grande cidade. E fez o caminho todo a pé, em 15 dias", disse Jospin.
Boa parte dos franceses no auditório imenso do Parque de Exposições de Bordeaux jamais tinha ouvido falar em Lula. Eram 5 mil pessoas e, entre elas, havia muitos idosos, jovens militantes, muita gente simples, do interior da França, da região agrícola de Bordeaux. O público aplaudiu Lula de pé. Duas vezes.
Lula veio à França para manifestar o seu apoio à Jospin, que é também candidato à Presidência nas eleições que ocorrem em primeiro turno no dia 21 de abril.
Para o petista, a viagem significava sobretudo subir ao palanque de um importante político europeu, o primeiro-ministro francês ainda em exercício (a lei daqui permite acumular o cargo e a campanha), demonstrando assim para o Brasil que ele tem um relevante apoio na Europa.
Para o Partido Socialista francês, o convite firmava uma amizade de anos com o PT, sedimentada no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, mas também representava toda uma aposta política da qual se falará mais abaixo.
Até há poucos dias, a viagem de Lula à França tinha mais importância para o brasileiro do que para o francês. Coincidentemente, porém, Lula chegou ao país num momento em que Jospin cai nas pesquisas de opinião, ficando atrás de seu principal concorrente, o atual presidente Jacques Chirac, de direita.
A equipe de Jospin constatou que o candidato deveria abandonar a estratégia anterior de campanha, que enfatizava o seu "centrismo", e precisaria reforçar o discurso de esquerda, a fim de recuperar os votos que evadiam para outros partidos menos hesitantes que o PS.
A presença de Lula caiu como uma luva e não foi pouco aproveitada no comício. O primeiro-ministro afirmou que a maior prova de que ele continuava sendo um homem de esquerda era o apoio de Lula à sua candidatura. Tanto quanto Jospin serviu à imagem de Lula no Brasil, Lula pode dizer que serviu à de Jospin na França. A troca de apoios acabou equânime no jogo político.
Mas, para os socialistas, Lula não é apenas uma carta útil e momentânea da campanha. Eles foram sinceros e emocionantes na homenagem que fizeram ao brasileiro. Mais do que isso, o PS assumiu estruturalmente sua ligação com o Partido dos Trabalhadores e passa a apostar tudo na vitória de Lula.
O Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, como já pude dizer nesta coluna, tanto para o PS francês quanto para o PT brasileiro não foi apenas o encontro da antiglobalização. Nos bastidores, os partidos firmaram relações e acertaram apoios mútuos para um programa político que visa fortalecer os laços do Brasil com a França e a União Européia contra a hegemonia norte-americana nas Américas e no mundo. É a oposição ao avanço imperial dos EUA, de fato, o novo programa das esquerdas mundiais.
Para os socialistas e social-democratas europeus, uma vez que o candidato à Presidência pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), José Serra, está muito próximo dos Estados Unidos, Lula é agora a melhor e mais promissora chance de de eles conseguirem estabelecer no Brasil um porto firme para a economia de seus governos, acossados pelo "unilateralismo norte-americano", como dizem.
Os socialistas franceses são os principais defensores de uma tendência da esquerda européia no poder que pretende que Lula seja mais do que um líder histórico das lutas sociais no mundo _o que Jospin saudou euforicamente no seu discurso. Eles querem transformar Lula, caso ele venha a governar uma das dez economias do planeta, num líder com prerrogativas suficientes para pilotar uma frente latino-americana de oposição ao avanço dos EUA. Foi isso, aliás, o que sugeriu o secretário do PS francês, François Hollande, em conversa com a imprensa.
A Guerra Fria se extinguiu, mas uma nova, de um novo tipo, está vindo aí. Ela vai pôr em confronto os EUA e a Europa. O antiamericanismo europeu e sobretudo francês é cada vez maior. Ele é comum tanto à direita quanto à esquerda. Não é um antiamericanismo estritamente ideológico, intelectual. É exercido na prática política e econômica. A esquerda depende dele para sobreviver, pois o transformou num programa de ação.
Para enfrentar os EUA, a Europa não pode contar apenas consigo própria. Precisa do América Latina, da Ásia, precisa do Oriente Médio. Conforme refletiu o ensaísta e poeta Nelson Ascher, por aí se entende muito das reações européias à guerra que é travada agora no Oriente Médio, o tom evasivo, as reticências, os jogos diplomáticos, as insinuações a favor dos palestinos... Mesmo Tony Blair, um parceiro de primeira hora dos norte-americanos, não tem adotado postura clara sobre o assunto, pensando certamente nos negócios ingleses com os árabes e no que representaria uma vitória dos EUA na região.
Para os socialistas franceses, que são os mais engajados na consolidação de um poderio europeu continental, a Alca (Aliança de Livre Comércio das Américas, que unirá as economias de norte a sul no continente) precisa ser adiada a qualquer custo. Lula parece ser a melhor forma de fazer o relógio norte-americano parar na América do Sul e de colocar em marcha ali o cronômetro europeu.
(Folha on line)