Apesar de uma abordagem simples, esse tema não deixa de ser interessante. De um ponto de vista mais próximo e menos fantasioso, podemos pensar no controle poderoso que Sauron tinha sobre seus orcs por uma perspectiva mais mundana e semiológica.
Como sabemos, Sauron elaborou a nefasta Língua Negra para que seus servos a utilizassem em comunicações entre si; segundo o Apêndice E, ele criou essa língua nos Anos Escuros e “desejava fazer dela o idioma de todos os que o serviam, mas ele falhou neste intento. Da Língua Negra, porém, foram derivadas muitas das palavras que estavam disseminadas entre os orcs na Terceira Era, tais como ghâsh 'fogo', mas após a primeira queda de Sauron, este idioma em sua forma antiga foi esquecido pode todos, exceto pelos nazgûl. Quando Sauron se ergueu novamente, ele se tornou mais uma vez o idioma de Barad-dûr e dos capitães de Mordor".
Num primeiro momento, parece que apenas a nata militar de Mordor se utilizava da Língua Negra com direito ou, ao menos, com maior presteza. Mas era do intento de Sauron que todos os seus servos a utilizassem em algum momento; em curto prazo, porém, ele precisava de comandantes que lhe fossem totalmente submissos, para que esses generais comandassem seus próprios capitães nas guerras em que ele se envolveria, com ilusória maior liberdade, já que suas vontades estariam, em última instância, sujeitas a Sauron.
É claro, contudo, que nunca seria interessante para aquele Maia, outrora lugar-tenente de Morgoth em pessoa, que houvesse a possibilidade de revolta. A Língua Negra, então, já entra fazendo seu papel (ver adiante) logo de início nos grandes capitães. A submissão total para a adoração de Sauron se daria, militarmente falando, de cima para baixo, pensando em níveis hierárquicos.
Como, então, conseguir subserviência impassível de revolta?
A resposta está na linguagem.
A linguagem está intimamente ligada à liberdade. Os seres racionais pensam porque detêm uma linguagem, pois, quando pensamos, pensamos enquanto linguagem. Não que o homem, enquanto ser consciente, seja incapaz de pensar sem palavras, mas a partir do momento em que inventa linguagens para manifestar estes pensamentos, um fica essencialmente ligado a outro. Isso quer dizer que, a partir do momento em que inventamos e utilizamos a linguagem, assim como nos inserimos num mundo e cultura onde a linguagem assume papel não só importante, como essencial, o vínculo se fortalece e se torna praticamente indissociável. Portanto, pensamos enquanto linguagem porque temos a necessidade de traduzir os nossos pensamentos ou manifestações no código em que temos maior domínio; no caso de uma sociedade estruturada e cultural, a linguagem. Tolkien, sendo filólogo, possivelmente tinha conhecimentos abrangentes sobre semiologia e, assim, era ciente disso.
Típico do totalitarismo é a manipulação da linguagem; os tiranos a subvertem em seu favor, metamorfoseando os verdadeiros significados semânticos e dando novos às palavras e expressões que utilizam. Desse modo, eles manipulam a própria verdade.
Esse tema é discutido figurativa e brilhantemente na obra 1984, de George Orwell; nessa obra, as pessoas são totalmente padronizadas e manipuladas a crer naquilo que o Partido (a força totalitária) deseja, em grande parte, senão a maior, graças à chamada Novilíngua.
A criação da Novilíngua consiste no controle do próprio pensamento da população; a evolução dessa língua limita a liberdade; se ela for limitada, também se limitam os nossos pensamentos; dessa forma, há um controle do próprio ato de pensar à medida que essa liberdade de pensamento, ou seja, a própria linguagem, é amputada e exorcizada. Segundo o próprio Orwell em seu ensaio Politics and the English Language no livro A Collection of Essays: “A linguagem política destina-se a fazer com que a mentira soe como verdade e o crime se torne respeitável, bem como a imprimir ao vento uma aparência de solidez”.
Em 1984, o lingüista Syme fala sobre isso quando discorre da evolução da Novilíngua, e que no futuro não será preciso pensar (o Partido pensaria pelos homens), e que não haverá crime de pensamento (chamado, na ficção, de crimidéia) porque não haverá como expressar esse crime; as palavras da Novilíngua são engodos e vitais à forja da verdade. Em termos práticos e exemplificativos, como pensar em liberdade se não há palavras para expressá-la? Pensando de maneira análoga, para se ter uma leve e pequena noção, é só lembrar de alguma vez em que tentamos expressar alguma idéia e nos esquecemos da palavra que a define, e da dificuldade decorrente disto. Evidentemente, no caso de realmente inexistir a palavra, dificilmente teríamos a idéia por trás dela.
No livro de Orwell, o protagonista Winston escreve, no seu diário, a seguinte frase: “A liberdade é a liberdade de dizer que dois mais dois são quatro”. Fazendo uma interpretação dessa frase dentro do presente contexto, podemos dizer, portanto, que alegoricamente, enquanto existir a linguagem que permita dizer que dois mais dois são quatro, ter-se-á liberdade; consequentemente, não haveremos de ser livres quando estivermos em tamanho controle, com tamanha amputação da linguagem, que não poderemos dizer que dois mais dois são quatro; nesse momento, perderemos nossa liberdade; seja num recinto, seja entre um grupo (as noções de moralidade e ética não deixam de ser, a seu modo, também amputações de linguagem) ou num mundo todo, caso ocorresse (ou ocorra) algo do terror totalitário de Orwell.
É claro que o livro de Orwell apresenta outros temas interessantes, mas não convém, aqui, ficar discorrendo sobre eles.
Em textos como Mitos Transformados e também na Carta 131, Tolkien escreve que Sauron, em verdade, não desejava destruir a Terra-média (como Melkor-Morgoth almejava em sua decadência), mas sim ordená-la e subverter seus habitantes à sua vontade, tornando-se Senhor e Deus de todos sob o céu. Nas palavras do próprio Tolkien “Sauron não objetava à existência do mundo, contanto que pudesse fazer o que quisesse com ele. E ainda tinha os resquícios de propósitos positivos, que descendiam do bem da natureza na qual ele começou: fora sua virtude (e então também a causa da sua queda, e da sua recaída) que ele amasse ordem e coordenação, e repugnasse toda a confusão e atrito dissipador” - Mitos Transformados.
Então, Sauron queria a total submissão por parte de seus servos, e os meios de alcançar isso poderia ser não somente por um mero domínio mental, mas, numa humanização da obra tolkienia, por um domínio sociológico que se daria com o tempo, evoluindo e aplicando a Língua Negra e limitando a liberdade de pensamento de seus servos. Ele teria controle sobre aqueles que o servem porque estes não teriam capacidade de se rebelar, pois não teriam como expressar essa rebelião, já que estariam com seu pensamento limitado graças à sua linguagem limitada. Até que os seres subservientes ao Senhor do Escuro se dessem conta disso, ele já teria exercido domínio por muitos séculos.
Talvez fosse também desta forma que Sauron fazia para manter grande influência sobre o pensar de seus servos, em principal os Nazgûl que eram os que utilizavam a Língua Negra com maior perícia e, contudo, eram os mais submissos dos servos de Sauron. Assim poderia vir a ser com todos os habitantes de uma Terra-média sob a tirania do Herdeiro de Morgoth.
Com o tempo, a Língua Negra evoluiria (ou involuiria, poder-se-ia dizer) ao estágio de pequeno ou inexpressivo vocabulário, onde Sauron seria quem determinaria os pensamentos, ideologias e moralidades de todos sob o seu jugo; então, o seu objetivo estaria totalmente completo, e seu domínio sobre a Terra-média e seus povos estaria totalmente disseminado; e ele não mais precisaria tentar estabelecer controle pelo domínio mental e não haveria de temer a derrota, pois ele controlaria o pensar, por dominar a linguagem. E seriam poucos, ou nenhum, os que perceberiam isso.