imported_Wilson
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[align=justify]José era um poeta por natureza, mas a consciência lhe fizera prosador. José nunca conseguiu ser feliz por causa disso. Um homem nobre com um defeito trágico, lhe disse o padre certa vez. Os dedos de Deus eram tortos. Minha alma é torta, José pensava. Serei por toda a vida um homem quebrado. Apenas um reflexo pálido no espelho. Suas feições brancas e sua postura cadavérica, definhando em reclusão anos a fio. Um morto entre os vivos, pensou. Com a certeza de quem tem a morte entre os dedos e, no esquema maior das coisas como devem ser, enxerga sua insignificância e a infinita tristeza à qual foi destinado. Às vezes, José escreve, sonho que estou preso no centro de um labirinto escuro, de olhos vendados, e as vozes que me cercam são apenas os sussurros de minha própria cabeça e não há nada a fazer senão sentar-me no chão ou bater-me cegamente pelas paredes de espinhos por toda a eternidade. Em outros sonhos, José se vê flutuando acima do labirinto. Ele vê a saída, ele sabe o caminho, mas não consegue gritar a solução e ele está lá embaixo e não consegue ouvir. José nunca conseguiu escrever prosa. Por anos a fio tentou escrever os mais diversos contos de horrores e novelas de intriga, criar vidas e histórias, mundos e realidades, infiltrar-se no mais misterioso da consciência humana pela intricada mecânica da escrita e da ficção. Agora, em seu leito de morte, José escreve: José deixa o planeta com a fortuna e o reconhecimento de um dos maiores poetas da literatura mundial. José nunca escrevera um livro. Nunca conseguiu. E isso o corroeu por dentro até o ponto do suicídio. Levo para o meu túmulo todas as histórias que nunca escrevi e todos aqueles personagens aos quais nunca dei vida. Termina de escrever e olha em volta: um quarto pobre e miserável é o que lhe abriga. Paredes de cimento úmido e rachado. Goteiras por todo canto, pilhas de jornais amarelados, prestes a se desfazerem, fileiras de cadernos amarrotados sobre prateleiras enferrujadas: em letras, quarenta e cinco anos de uma existência pobre e miserável, recordações em grafite apagada, devaneios borrados, anotações e garranchos. José escreve: José deixa o mundo sem filhos, sem família, sem amigos, sem... Alguém bate a porta. José estremece. Não tem filhos, não tem família, não tem amigos, não recebe visitas. Pensa que foi a chuva, estaria delirando, é a fome, é a falta de cigarros... Mais duas pancadas. Nítidas. Há alguém do outro lado da porta, ele ouve uma voz pequenina e abafada, infantil. Sentado no chão como estava, rasteja no cimento gelado e cola o ouvido contra a madeira da porta e tenta escutar qualquer coisa. Escuta uma voz de menina. Por favor... abra a porta... por favor. José espera. A chuva continua a batucar na janela, nas paredes, no chão, está em todo lugar. A voz do outro lado não lhe parece real. Continua a falar para si mesma, como uma reza, por favor... abra a porta... por favor. José escuta um choro de menina. Não sabe se vai, não sabe se fica. Ele para, cruza as pernas, e sorri para a parede. Como no filme. E a história termina.
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Lendo agora, penso que pode haver uma continuação.
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Lendo agora, penso que pode haver uma continuação.