(continuação direta do último trecho postado)
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- Venham comigo – disse Henrich assim que o banqueiro, resmungando, foi até a mesa de aperitivos. Todos o seguiram para uma sacada – Sentem-se.
PARTE 3
Como recendo ordens de um general, Catherine, Minerva e o Visconde de Will’emar sentaram-se no banco – que se encontrava encostado na parede, embaixo de uma linda janela – e o fitaram, em ar de pirraça.
Henrich retirou, do bolso de sua roupa, dois maços de cartas amarradas por um fio de barbante. Elas já estavam amarelando, revelando a sua fraqueza e a efemeridade até mesmo das palavras diante da vida. Ele não disse nada. Pegou uma carta, ergueu-a a no ar em um gesto que indicada que precisaria de atenção, ergueu as sobrancelhas e começou a ler, em voz baixa:
“Querida M. M
Ainda me encontro na Itália. Ultimamente tenho alugado uma cana em Toscana. O sol aqui é tão lindo. Conheci um homem, italiano, que faz todas raparigas debruçarem-se nas janelas quando passa. Mesmo assim, eu não estou interessada nele. Nos tornamos grandes amigos!
Ele diz que é pintor. Nunca vi quadro algum que ele tenha pintado. Mas o modo com que ele fala é fabuloso. Posso ver a paixão arrebatadora saltar de dentro dele e atacar-me sem piedade. Ele está vivo, mais do que todos, e isso é irreal.
Agradeço mais uma vez seu presente. Talvez fosse o que eu aguardava, de fato.
Agora preciso ir.
Sinceramente sua,
E. M.”
- Não sei o que dizer – confessou o Visconde, após algum tempo.
- O que você pretende com isso, Henri? – atacou Catherine – Levantar poeira? Não entendo. Não vai nos ajudar.
- Por favor. Tentem entender
- Não há o que entender! – Catherine começou a gritar – Não, você é quem não entende. Minerva, você vê?
- Cath... – Minerva tentou acalma-la – Deixe o Lorde Humington terminar.
- Não. Você não, não se intrometa. Você não sabe nem do que estamos falando aqui, Minerva! Como você pode julgar o que eu to sentindo?
- Eu só pensei que... – Minerva disse, assustada.
- Não. Desculpe-me, desculpe-me. Eu estou falando bobagens. Continue, querido. Confio em você. Sempre.
- Está bem. Você vai entender, de qualquer forma. Vejam esta carta – ele disse, pegando uma carta do outro maço – enviada pela Duquesa para a senhora E.M.
“Minha querida E.M,
Fico feliz que você esteja aproveitando o sol da Toscana. A Itália é realmente linda, toca-me a minha ausência nesse país incrível por longos anos. Isto é; cada um faz o que acha que é certo e meu destino não estava no sul. Estava aqui, no norte.
E foi por isso que lhe disse que fizesse essa viagem. Talvez o seu destino esteja em videiras, oliveiras ou macieiras. Talvez esteja nos olhos de um pintor – desconhecido, não me disse seu nome!
Mas é você quem vai escolher.
Só escolha de modo correto. Modo este que só se atinge seguindo o coração e a intuição feminina. É tudo que temos, minha querida!
Sinceramente sua,
Duquesa de Marsui,
que você apelidou por algum motivo que desconheço de M.M.”
- Leio a próxima? – Henrich perguntou, olhando por cima dos óculos que ele colocou durante a leitura.
- Por favor – respondeu o Visconde.
- Está bem. Esta aqui – pegou uma do primeiro maço – é de extrema importância. Foi enviada para a Duquesa após o recebimento da carta que acabei de ler.
“Querida Duquesa,
Desculpe-me pelo nome que lhe atribuí, com iniciais. É assim que se escreve, não é? O fiz porque pensei que era mais digno de sua posição. Mas não importa. Seu destino, no norte? Não! Seu destino está pelo mundo, em todos lugares e em um único lugar. Você não tem um destino fixo, Duquesa. E eu a admiro por isso.
Se meu destino está no sul não sei. Espero sinceramente que esteja. Se você me disser que ele está nos olhos do pintor, porém, temo discordar. Seu nome é Lucas. Seus olhos – não sei como você adivinhou – são lindos. Azul-de-mar.
Creio que você terá tempo sobrando quando receber esta carta. Já sinto o vento do inverno uivar mais alto e ambas sabemos que o inverno é seu momento de descanso. Já que é assim, não vejo problema em contar parte do problema.
Lucas, assim que mandei a minha última carta, desapareceu por completo aqui da cidade onde moramos. Ele ainda estava em sua casa, todos nós sabíamos, mas ninguém mais o via pela rua ou em qualquer lugar. Comecei a ouvir boatos de que ele podia estar morto, lá em cima, no seu sótão. Morto de amor, à espera de alguém que venha salvar seu corpo.
E apiedei-me do pobre coitado pintor. Pintores sempre são tão tristes. Quis salvar seu corpo, sua alma ou seu coração; o que estivesse morto, lá em cima, no sótão. Bati à sua porta depois de alguns dias e ele me recebeu com os cabelos desgrenhados, a barba esquecida e a roupa amarrotada.
Só posso dizer que sua expressão foi indescritível e nada me fez tão bem. Seu rosto tornou-se rubro em um instante e seu sorriso perdido achou-se e escondeu-se, de vergonha. Ele olhou para as próprias roupas, passou a mão pela barba e quis fechar a porta, mas eu impedi. Mostrei que aquilo não me interessava.
E entrei na sua casa. Ele me levou até o sótão, como eu sugeri, após alguns protestos. Eu precisava ver o que ele tanto fazia lá em cima. Queria que ele me mostrasse um de seus quadros misteriosos.
Assim que acabei de subir a escada em espiral quis gritar. Era lindo, Margot! O homem tinha um talento que eu não imaginava. O sótão estava repleto de quadros e mais quadros de tamanhos e formas diversas. Havia um – imagine só – que retratava uma mulher semelhante a você. Em um canto vi também um olho azul desenhado que parecia refletir o mar.
Ele parecia constrangido. Não me contentei. No estado emocional em que eu me encontrava eu queria conversar e entender todos à minha volta para talvez entender a mim mesma. Perguntei pelo quadro que estava fazendo-o esquecer dos outros e de si mesmo.
Se eu disser que ele negou mostrar-me o tal quadro você acredita? Recusou, com todas as letras que o alfabeto permite. Chegou a ruborizar novamente, creio que de raiva. Ele mostrou-se um homem impulsivo. Não deixando, claro, de ser interessante.
Eu sei que isso não foi um ato de ódio, desprezo ou nada do gênero. Ele apenas expressou o que estava sentindo. Não queria mostrar o quadro. Mas minto se disser que não me senti totalmente ofendida. De qualquer modo, fui-me embora e agora lhe escrevo.
E por isso contestei se meu destino estava nos olhos dele. Porque eu percebi que depois que li seu comentário fiquei feliz e acreditei no que você disse e depois tornei a ficar triste, decepcionada por ter que levar a minha amizade com Lucas na velocidade normal.
Vou escolher certo. Dessa vez vou. Eu sei.
Com meus sinceros agradecimentos pela atenção,
E.M.”
- Não entendo ainda, Henri – disse Catherine.
- Alguém aqui o faz? – perguntou, em tom de deboche, o Visconde. Minerva mantinha seu olhar afastado que Catherine julgou sagaz demais para o momento.
- Não entendo – Minerva disse – Mas ao mesmo tempo compreendo que essas cartas têm alguma importância. Desde que, é claro, a senhora E.M, cujo nome ainda desconheço, seja de importância para vocês. É tudo que posso supor.
- Não importa – desconversou Henrich – Continuarei a ler e talvez vocês comecem a compreender melhor a situação. À próxima?
- Sem delongas. – disse o Visconde de Will’Emar.
“Querida Duquesa,
Sei que minha última carta não foi enviada há muito tempo e provavelmente o bom senso pede que eu espere que você responda, mas tenho tantas coisas a contar que tive que segurar na pena e começar a escrever; mesmo sem a intenção de realmente enviar esta carta.
É sobre Lucas. Ele está a cada dia me fascinando mais de modo que, temo eu, logo eu estarei apaixonada por ele. Porque não posso controlar. Não posso nem quero. Amar é tão bom, ah, Margot! Você sabe do que falo.
Ele é um artista e tanto, pinta como se conversasse com as estrelas. Eu adoro o olhar que ele ostenta quando encara a tela vazia e visualiza seu próximo mundo. Ele é encantador, encantador!
Hoje deu-se uma situação interessante. Fomos, ambos, convidados para uma festa em uma grande casa não muito distante de Toscana por uma rica filha de um produtor de vinho; e, inevitavelmente, nos encontramos assim que chegamos lá e começamos a conversar.
Não conhecíamos – eu, pelo menos – viva alma dentro daquela imensidão, então o destino acabou por nos reservar momentos bons de constrangimento. Não se pergunte ainda porque estou contando para você como foi aquela noite entediante. A resposta já vem.
Em determinado momento um conhecido da anfitriã, vindo de Marselha, se pôs a tocar piano e todos nós nos reunimos próximos a ele para contemplar a arte inegável que ele fazia escorrer de seus dedos.
Então olhei para Lucas e vi que ele estava, próximo do piano, de olhos fechados. Ele movia os lábios lentamente e comprimia suas pálpebras. Este fato não teria nenhum motivo especial se eu não sentisse, dentro do meu âmago, que eu nunca esqueceria aquele momento. Nunca! A música, o ar, as pessoas, a chuva fina... E ele, ali, totalmente desarmado! Nada tiraria aquilo da minha memória, eu sabia!
Tenho medo. Estou me apaixonando porque estou deixando e porque quero. Mas diga-me que ele está no meu caminho por acaso e cesso de escrever para você, Duquesa! Parece que suas palavras foram mágica, pura mágica. Meu destino parece, indubitavelmente, estar aqui, no sul.
Sinto muito perturba-la. Talvez sua resposta à carta anterior já tenha sido enviada e você tenha o trabalho de escrever novamente, assim que receber essa carta. Eu precisava, porém, fazer o que faço.
Sinceramente sua,
E.M”.
“Querida E.M,
Não se preocupe quanto às duas cartas. Houve tempo para receber ambas e responder em uma só. Não foi incômodo nenhum. Definitivamente você fez o que achou correto e isto é o que importa.
As iniciais? Ah, foi uma bela brincadeira! Eu não me importo que me chame assim, agora vejo. Vou continuar lhe chamando pelas iniciais do seu nome de qualquer forma, se não se importa.
Meu destino está no norte sim, minha cara. Aqui, em minha mansão, nessa cidade. Nas minhas festas, sempre tão belas, sempre tão precisas! Sabe, como eu, quanto eu adoro tudo isto e quão claramente meu destino é esse. Pobrezinha, com tantos problemas provavelmente esqueceu como meus olhos brilham quando tudo ocorre conforme planejei, não foi?
De fato. Estou com um certo tempo de ócio o qual tento há dias preencher. Comecei a pensar na primeira festa da primavera e decidi que alguns preparativos requerem uma atenção prévia que ainda não dei. Mesmo assim ainda sobra um pequeno tempo que ficaria imensamente contente em poder dividir com a ponta de sua pena.
Morto por amor? Quem morre por amor é poeta e, pelo que me contou, Lucas é pintor. Você não devia ter perdido seu tempo com preocupações, querida. Lendo mais um pouco eu vejo que ele estava vivo e não me surpreendo. Eu estava correta. Ah, se eu estivesse aí com você eu estaria lhe poupando tantas coisas!
Não se sinta feliz por ele ter sentido-se mal ao vê-la. Não necessariamente denota que ele sente alguma forma de amor ou carinho por você. Já lhe contei das minhas viagens pela Espanha – acompanhada de meus amigos artistas – e já lhe disse que eles são demasiado vaidosos. Não se iluda assim, de antemão.
Se você quer saber o que penso, diria que você foi precipitada demais. Ele já deixou claro que é reservado, correto? Deixe que ele mostre por livre iniciativa o quadro que tanto ocupa sua mente, sim? Então você terá sua demonstração de carinho, pois sei que uma é necessária para você.
Temo ter que dizer que levar as coisas em uma velocidade maior que a normal é pedir por perder-se dentro de si mesma. Você já dirigiu uma carroça? É claro que não, não é? Mas você provavelmente já viu uma e já pensou que, caso ela corra muito, pode acabar desmontando ou talvez se soltando do cavalo que a conduz. Por isso, vá na cauda do tempo. É o que eu digo.
Seria demais se eu pedisse que me dissesse o nome desta sua amiga que é filha de um produtor de vinho da Toscana? Creio que a conheço, posso mandar-lhe uma carta e, se for do seu agrado, faço que ela a convide para uma estadia em sua casa. Claro que eu poderia sugerir que Lucas também fosse convidado. A casa desta moça, se bem me lembro, é capaz de abrigar inúmeros hóspedes. Só me diga o nome.
Do modo com que você fala deste pintor eu sinto-me tentada a conhece-lo também. E a ama-lo, porque nunca amei um artista. Pareço devassa falando deste modo, mas estou sozinha e isso é fatal à consciência de qualquer mulher que tem um mínimo de auto-estima.
Concordo que este momento ficará para sempre em suas lembranças. Ainda mais agora que você parece pedir para que ele o faça. Mas tenha sempre em mente que isso pode ser só mais uma fonte inesgotável de lágrimas para macular seu lindo rosto.
Creio que não há mais nada a falar. Todos aqui sentimos sua falta, minha querida. Continue me escrevendo, não aja como se precisasse seguir alguma ética ou algo do gênero. Só nós duas lemos as cartas, não é mesmo? Se para mim todas essas regras são perda de tempo, porque continua com toda essa preocupação em saber quando ou o que escrever. Seja livre, minha amiga!
Sinceramente sua,
Duquesa de Marsui,
M.M”