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The Hero of Time
Psicólogo varreu as ruas da USP para concluir sua tese de mestrado da "invisibilidade pública".
15/04/2003 - Plínio Delphino
Ele comprovou que, em geral, as pessoas enxergam apenas a função social do outro. Quem não está bem posicionado sob esse critério, vira mera sombra social.
O psicólogo social Fernando Braga da Costa vestiu uniforme e trabalhou oito anos como gari, varrendo ruas da Universidade de São Paulo. Ali, constatou que, ao olhar da maioria, os trabalhadores braçais são "seres invisíveis, sem nome".
Em sua tese de mestrado, pela USP, conseguiu comprovar a existência da
"invisibilidade pública", ou seja, uma percepção humana totalmente prejudicada e condicionada à divisão social do trabalho, onde enxerga-se somente a função e não a pessoa. Braga trabalhava apenas meio período como gari, não recebia o salário de R$ 400 como os colegas de vassoura, mas garante que teve a maior lição de sua vida: "Descobri que um simples bom dia, que nunca recebi como gari, pode significar um sopro de vida, um sinal da própria existência",explica o pesquisador.
O psicólogo sentiu na pele o que é ser tratado como um objeto e não
como um ser humano. "Professores que me abraçavam nos corredores da USP passavam por mim, não me reconheciam por causa do uniforme. Às vezes, esbarravam no meu ombro e, sem ao menos pedir desculpas,
seguiam me ignorando, como se tivessem encostado em um poste, ou em um orelhão", diz.
Apesar do castigo do sol forte, do trabalho pesado e das humilhações
diárias, segundo o psicólogo, são acolhedores com quem os enxerga..
E encontram no silêncio a defesa contra quem os ignora.
Perguntas
Como é que você teve essa idéia?
Fernando Braga da Costa - Meu orientador desde a graduação, o
professor José Moura Gonçalves Filho, sugeriu aos alunos, como uma
das provas de avaliação, que a gente se engajasse numa tarefa
proletária. Uma forma de atividade profissional que não exigisse
qualificação técnica nem acadêmica. Então, basicamente, profissões
das classes pobres.
Com que objetivo?
A função do meu mestrado era compreender e analisar a condição de
trabalho deles (os garis), e a maneira como eles estão inseridos na
cena pública. Ou seja, estudar a condição moral e psicológica a qual
eles estão sujeitos dentro da sociedade. Outro nível de investigação, que
vai ser priorizado agora no doutorado, é analisar e verificar as barreiras e
as aberturas que se operam no encontro do psicólogo social com os garis. Que barreiras são essas, que aberturas são essas, e como se dá a aproximação?
Quando você começou a trabalhar, os garis notaram que se tratava de um
estudante fazendo pesquisa?
Eu vesti um uniforme que era todo vermelho, boné, camisa e tal. Chegando lá eu tinha a expectativa de me apresentar como novo funcionário, recém-contratado pela USP pra varrer rua com eles. Mas, os garis sacaram logo, entretanto nada me disseram. Existe uma coisa típica dos garis: são pessoas vindas do Nordeste, negros ou mulatos em geral. Eu sou branquelo, mas isso talvez não seja o diferencial, porque muitos garis ali são brancos também. Você tem uma série de fatores que são ainda mais determinantes, como a maneira de falarmos, o modo de a gente olhar ou de posicionar o nosso corpo, a maneira como gesticulamos. Os garis conseguem definir essas diferenças com algumas frases que são simplesmente formidáveis.
Dê um exemplo.
Nós estávamos varrendo e, em determinado momento, comecei a papear
com um dos garis. De repente, ele viu um sujeito de 35 ou 40 anos de
idade, subindo a rua a pé, muito bem arrumado com uma pastinha de
couro na mão. O sujeito passou pela gente e não nos cumprimentou, o
que é comum nessas situações. O gari, sem se referir claramente ao
homem que acabara de passar, virou-se pra mim e começou a falar: "É
Fernando, quando o sujeito vem andando você logo sabe se o cabra é
do dinheiro ou não. Porque peão anda macio, quase não faz barulho.
Já o pessoal da outra classe você só ouve o toc-toc dos passos. E
quando a gente está esperando o trem logo percebe também: o peão
fica todo encolhidinho olhando pra baixo. Eles não. Ficam com olhar
só por cima de toda a peãozada, segurando a pastinha na mão."
Quanto tempo depois eles falaram sobre essa percepção de que você era
diferente?
Isso não precisou nem ser comentado, porque os fatos no primeiro dia
de trabalho já deixaram muito claro que eles sabiam que eu não era
um gari. Fui tratado de uma forma completamente diferente. Os garis
são carregados na caçamba da caminhonete junto com as ferramentas. É
como se eles fossem ferramentas também. Eles não deixaram eu viajar
na caçamba, quiseram que eu fosse na cabine. Tive de insistir muito
para poder viajar com eles na caçamba. Chegando no lugar de trabalho,
continuaram me tratando diferente. As vassouras eram todas muito velhas. A única vassoura nova já estava reservada para mim.
Não me deixaram usar a pá e a enxada, porque era um serviço mais pesado. Eles fizeram questão de que eu trabalhasse só com a vassoura e, mesmo assim, num lugar mais limpinho, e isso tudo foi dando a dimensão de que os garis sabiam que eu não tinha a mesma origem socioeconômica deles.
Quer dizer que eles se diminuíram com a sua presença?
Não foi uma questão de se menosprezar, mas sim de me proteger.
Eles testaram você?
No primeiro dia de trabalho paramos pro café. Eles colocaram uma garrafa térmica sobre uma plataforma de concreto. Só que não tinha caneca. Havia um clima estranho no ar, eu era um sujeito vindo de outra classe,varrendo rua com eles. Os garis mal conversavam comigo, alguns se aproximavam para ensinar o serviço. Um deles foi até o latão de lixo pegou duas latinhas de refrigerante cortou as latinhas pela metade e serviu o café ali, na latinha suja e grudenta. E como a gente estava num grupo grande, esperei que eles se servissem primeiro. Eu nunca apreciei o sabor do café. Mas, intuitivamente, senti que deveria tomá-lo, e claro, não livre de sensações ruins. Afinal, o cara tirou as latinhas de refrigerante de dentro de uma lixeira, que tem sujeira, tem formiga, tem barata, tem de tudo. No momento em que empunhei a caneca improvisada, parece que todo mundo parou para assistir à cena, como se perguntasse: "E aí, o jovem rico vai se sujeitar a beber nessa caneca?" E eu bebi. Imediatamente a ansiedade parece que evaporou. Eles passaram a conversar comigo, a contar piada, brincar.
"Essa experiência me deixou curado da minha doença burguesa."
O que você sentiu na pele, trabalhando como gari?
Uma vez, um dos garis me convidou pra almoçar no bandejão central.
Aí eu entrei no Instituto de Psicologia para pegar dinheiro, passei
pelo andar térreo, subi escada, passei pelo segundo andar, passei na
biblioteca, desci a escada, passei em frente ao centro acadêmico,
passei em frente a lanchonete, tinha muita gente conhecida. Eu fiz
todo esse trajeto e ninguém em absoluto me viu. Eu tive uma sensação
muito ruim. O meu corpo tremia como se eu não o dominasse, uma angústia, e a tampa da cabeça era como se ardesse, como se eu tivesse sido sugado. Fui almoçar não senti o gosto da comida, voltei para o trabalho atordoado.
E depois de oito anos trabalhando como gari? Isso mudou?
Fui me habituando a isso, assim como eles vão se habituando também a
situações pouco saudáveis. Então, quando eu via um professor se aproximando
- professor meu - até parava de varrer, porque ele ia
passar por mim, podia trocar uma idéia, mas o pessoal passava como
se tivesse passando por um poste, uma árvore, um orelhão.
E quando você volta para casa, para seu mundo real?
Eu choro. É muito triste, porque, a partir do instante em que você
está inserido nessa condição psicossocial, não se esquece jamais.
Acredito que essa experiência me deixou curado da minha doença
burguesa. Esses homens hoje são meus amigos. Conheço a família
deles, freqüento a casa deles nas periferias. Mudei. Nunca deixo de
cumprimentar um trabalhador. Faço questão de o trabalhador saber que
eu sei que ele existe. Eles são tratados pior do que um animal
doméstico, que sempre é chamado pelo nome. São tratados como se
fossem uma coisa.
Fonte
Recebi isso no meu e-mail e achei legal passar pro pessoal...
E vocês: param pra comprimentar garis?
Acho que ao invés do nosso desprezo eles merecem
15/04/2003 - Plínio Delphino
Ele comprovou que, em geral, as pessoas enxergam apenas a função social do outro. Quem não está bem posicionado sob esse critério, vira mera sombra social.
O psicólogo social Fernando Braga da Costa vestiu uniforme e trabalhou oito anos como gari, varrendo ruas da Universidade de São Paulo. Ali, constatou que, ao olhar da maioria, os trabalhadores braçais são "seres invisíveis, sem nome".
Em sua tese de mestrado, pela USP, conseguiu comprovar a existência da
"invisibilidade pública", ou seja, uma percepção humana totalmente prejudicada e condicionada à divisão social do trabalho, onde enxerga-se somente a função e não a pessoa. Braga trabalhava apenas meio período como gari, não recebia o salário de R$ 400 como os colegas de vassoura, mas garante que teve a maior lição de sua vida: "Descobri que um simples bom dia, que nunca recebi como gari, pode significar um sopro de vida, um sinal da própria existência",explica o pesquisador.
O psicólogo sentiu na pele o que é ser tratado como um objeto e não
como um ser humano. "Professores que me abraçavam nos corredores da USP passavam por mim, não me reconheciam por causa do uniforme. Às vezes, esbarravam no meu ombro e, sem ao menos pedir desculpas,
seguiam me ignorando, como se tivessem encostado em um poste, ou em um orelhão", diz.
Apesar do castigo do sol forte, do trabalho pesado e das humilhações
diárias, segundo o psicólogo, são acolhedores com quem os enxerga..
E encontram no silêncio a defesa contra quem os ignora.
Perguntas
Como é que você teve essa idéia?
Fernando Braga da Costa - Meu orientador desde a graduação, o
professor José Moura Gonçalves Filho, sugeriu aos alunos, como uma
das provas de avaliação, que a gente se engajasse numa tarefa
proletária. Uma forma de atividade profissional que não exigisse
qualificação técnica nem acadêmica. Então, basicamente, profissões
das classes pobres.
Com que objetivo?
A função do meu mestrado era compreender e analisar a condição de
trabalho deles (os garis), e a maneira como eles estão inseridos na
cena pública. Ou seja, estudar a condição moral e psicológica a qual
eles estão sujeitos dentro da sociedade. Outro nível de investigação, que
vai ser priorizado agora no doutorado, é analisar e verificar as barreiras e
as aberturas que se operam no encontro do psicólogo social com os garis. Que barreiras são essas, que aberturas são essas, e como se dá a aproximação?
Quando você começou a trabalhar, os garis notaram que se tratava de um
estudante fazendo pesquisa?
Eu vesti um uniforme que era todo vermelho, boné, camisa e tal. Chegando lá eu tinha a expectativa de me apresentar como novo funcionário, recém-contratado pela USP pra varrer rua com eles. Mas, os garis sacaram logo, entretanto nada me disseram. Existe uma coisa típica dos garis: são pessoas vindas do Nordeste, negros ou mulatos em geral. Eu sou branquelo, mas isso talvez não seja o diferencial, porque muitos garis ali são brancos também. Você tem uma série de fatores que são ainda mais determinantes, como a maneira de falarmos, o modo de a gente olhar ou de posicionar o nosso corpo, a maneira como gesticulamos. Os garis conseguem definir essas diferenças com algumas frases que são simplesmente formidáveis.
Dê um exemplo.
Nós estávamos varrendo e, em determinado momento, comecei a papear
com um dos garis. De repente, ele viu um sujeito de 35 ou 40 anos de
idade, subindo a rua a pé, muito bem arrumado com uma pastinha de
couro na mão. O sujeito passou pela gente e não nos cumprimentou, o
que é comum nessas situações. O gari, sem se referir claramente ao
homem que acabara de passar, virou-se pra mim e começou a falar: "É
Fernando, quando o sujeito vem andando você logo sabe se o cabra é
do dinheiro ou não. Porque peão anda macio, quase não faz barulho.
Já o pessoal da outra classe você só ouve o toc-toc dos passos. E
quando a gente está esperando o trem logo percebe também: o peão
fica todo encolhidinho olhando pra baixo. Eles não. Ficam com olhar
só por cima de toda a peãozada, segurando a pastinha na mão."
Quanto tempo depois eles falaram sobre essa percepção de que você era
diferente?
Isso não precisou nem ser comentado, porque os fatos no primeiro dia
de trabalho já deixaram muito claro que eles sabiam que eu não era
um gari. Fui tratado de uma forma completamente diferente. Os garis
são carregados na caçamba da caminhonete junto com as ferramentas. É
como se eles fossem ferramentas também. Eles não deixaram eu viajar
na caçamba, quiseram que eu fosse na cabine. Tive de insistir muito
para poder viajar com eles na caçamba. Chegando no lugar de trabalho,
continuaram me tratando diferente. As vassouras eram todas muito velhas. A única vassoura nova já estava reservada para mim.
Não me deixaram usar a pá e a enxada, porque era um serviço mais pesado. Eles fizeram questão de que eu trabalhasse só com a vassoura e, mesmo assim, num lugar mais limpinho, e isso tudo foi dando a dimensão de que os garis sabiam que eu não tinha a mesma origem socioeconômica deles.
Quer dizer que eles se diminuíram com a sua presença?
Não foi uma questão de se menosprezar, mas sim de me proteger.
Eles testaram você?
No primeiro dia de trabalho paramos pro café. Eles colocaram uma garrafa térmica sobre uma plataforma de concreto. Só que não tinha caneca. Havia um clima estranho no ar, eu era um sujeito vindo de outra classe,varrendo rua com eles. Os garis mal conversavam comigo, alguns se aproximavam para ensinar o serviço. Um deles foi até o latão de lixo pegou duas latinhas de refrigerante cortou as latinhas pela metade e serviu o café ali, na latinha suja e grudenta. E como a gente estava num grupo grande, esperei que eles se servissem primeiro. Eu nunca apreciei o sabor do café. Mas, intuitivamente, senti que deveria tomá-lo, e claro, não livre de sensações ruins. Afinal, o cara tirou as latinhas de refrigerante de dentro de uma lixeira, que tem sujeira, tem formiga, tem barata, tem de tudo. No momento em que empunhei a caneca improvisada, parece que todo mundo parou para assistir à cena, como se perguntasse: "E aí, o jovem rico vai se sujeitar a beber nessa caneca?" E eu bebi. Imediatamente a ansiedade parece que evaporou. Eles passaram a conversar comigo, a contar piada, brincar.
"Essa experiência me deixou curado da minha doença burguesa."
O que você sentiu na pele, trabalhando como gari?
Uma vez, um dos garis me convidou pra almoçar no bandejão central.
Aí eu entrei no Instituto de Psicologia para pegar dinheiro, passei
pelo andar térreo, subi escada, passei pelo segundo andar, passei na
biblioteca, desci a escada, passei em frente ao centro acadêmico,
passei em frente a lanchonete, tinha muita gente conhecida. Eu fiz
todo esse trajeto e ninguém em absoluto me viu. Eu tive uma sensação
muito ruim. O meu corpo tremia como se eu não o dominasse, uma angústia, e a tampa da cabeça era como se ardesse, como se eu tivesse sido sugado. Fui almoçar não senti o gosto da comida, voltei para o trabalho atordoado.
E depois de oito anos trabalhando como gari? Isso mudou?
Fui me habituando a isso, assim como eles vão se habituando também a
situações pouco saudáveis. Então, quando eu via um professor se aproximando
- professor meu - até parava de varrer, porque ele ia
passar por mim, podia trocar uma idéia, mas o pessoal passava como
se tivesse passando por um poste, uma árvore, um orelhão.
E quando você volta para casa, para seu mundo real?
Eu choro. É muito triste, porque, a partir do instante em que você
está inserido nessa condição psicossocial, não se esquece jamais.
Acredito que essa experiência me deixou curado da minha doença
burguesa. Esses homens hoje são meus amigos. Conheço a família
deles, freqüento a casa deles nas periferias. Mudei. Nunca deixo de
cumprimentar um trabalhador. Faço questão de o trabalhador saber que
eu sei que ele existe. Eles são tratados pior do que um animal
doméstico, que sempre é chamado pelo nome. São tratados como se
fossem uma coisa.
Fonte
Recebi isso no meu e-mail e achei legal passar pro pessoal...
E vocês: param pra comprimentar garis?
Acho que ao invés do nosso desprezo eles merecem