É temporada de Oscar! Com as indicações anunciadas na semana passada, os grandes centros brasileiros finalmente podem se sentir como Nova York ou Los Angeles – as cidades onde a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que dá as estatuetas, exige que os filmes tenham ficado em cartaz pelo menos por uma semana em determinado ano para que uma produção possa se candidatar aos prêmios. A comparação – já sei – é exagerada, pois as distribuidoras brasileiras, ao contrário das americanas, só programam seus lançamentos depois de as indicações oficiais terem saído – minimizando assim os riscos de seus investimentos, e privando nós, os espectadores, das múltiplas escolhas abundantes em LA ou NY. Mas não estou aqui hoje para reclamar desse modelo que já se repete anos.
Aliás, não estou aqui agora nem para falar dos filmes indicados este ano – um assunto que prefiro degustar aos poucos, à medida que eu for assistindo às estreias da temporada. Hoje vou totalmente “na contramão”, dividir com você minhas opiniões sobre um lançamento recente que não conseguiu sequer uma indicação ao Oscar – nem mesmo naquela categoria onde talvez houvesse uma esperança, a relativamente pouco lembrada “melhor maquiagem” (e logo mais vou desenvolver sobre isso). Não faço isso por teimosia, pelo contrario: o que quero hoje é mostrar minha solidariedade com milhões de fãs de “Harry Potter” e de “Crepúsculo”, que se sentiram traídos, nem que fosse em um aspecto qualquer, quando viram seus livros favoritos adaptados para a grande tela.
Devo avisar, no entanto, que a adaptação que me decepcionou não é a de um grande bestseller da magnitude da saga Potter, ou mesmo da trilogia “Crepúsculo”. Trata-se de um modesto – ainda que ambicioso – livro, que ainda nem ganhou uma edição brasileira. Leitores e leitoras mais frequentes do blog já suspeitam que eu estou falando de “Cloud atlas”, de David Mitchell – que já citei mais de uma vez aqui como uma das melhores leituras que fiz nos últimos tempos!!! (E não, as três exclamações que acabei de colocar aqui não são um exagero). Não está reconhecendo o título em português entre os filmes que atualmente estão em cartaz? Bem, talvez seja porque os distribuidores quem sabe no afã de conquistar não só aos cinéfilos fãs da trilogia “Matrix” (os irmãos Wachowski assinam a direção junto com Tom Tykwer, de outro “cult” clássico, “Corra Lola, corra”), mas também aos admiradores de “Nosso lar”, resolveram rebatizar o filme de… “A viagem”!
Ah! Lembrou agora? Pois então, não se trata de nenhuma utopia espírita – posso garantir. Infelizmente, levando-se em consideração os talentos que assinam a produção, “A viagem” não é também nenhuma grande visão de uma utopia delirante, capaz de nos levar por incríveis cenários – e de bônus nos fazer achar que estamos tendo uma aula de filosofia. A mensagem de “A viagem” está mais para o Budismo (já explico melhor), e o visual, bem mais diverso e arejado do que se podia esperar dos Wachowski. Como você pode imaginar, essas são boas credenciais. Junte a elas um livro que foi admirado pela crítica internacional desde seu lançamento nos Estados Unidos em 2004 (para o leitor brasileiro, tenho o prazer de informar que você pode saciar sua curiosidade procurando por ele em alguma livraria virtual de Portugal, como a Bertrand, uma vez que os nossos patrícios já ganharam há tempos o privilégio de uma tradução de “Cloud atlas” para o português). E um elenco não só com nomes tarimbados, como Tom Hanks e Halle Berry – ou mesmo Hugh Grant -, que são garantia de uma boa bilheteria, mas também a fina flor da interpretação, como Susana Sarandon, Jim Broadbent, e o jovem Ben Wishaw. Somando tudo, temos todos os ingredientes necessários para um grande filme, certo?
Errado! Mas não errado de uma maneira simples, resultado de uma mera frustração com as discrepâncias entre um livro que você adora, interpretado por diretores que você admira, com atores que você simpatiza, e o resultado final na tela. “A viagem” erra em grande estilo. É um desastre monumental. Um daqueles poucos filmes que faz você sair do cinema se perguntando: “Por que ele foi feito?”. Um trem que descarrila desde sua saída da estação. Uma produção capaz de colocar em questão a própria existência do cinema hoje em dia. E, no entanto, na última segunda-feira, lá estava eu numa sala escura, esforçando-me ao máximo para gostar de um filme que parecia fazer questão de provocar apenas uma reação em quem o assistia: repulsa! E, pior, no final da sessão eu me vi dizendo a mim mesmo que eu tinha… gostado do filme! Isso mesmo! Como é possível isso? Vamos tentar explicar.
Um bom começo é resumir o argumento do filme. Melhor ainda: vou tentar contar a proposta do livro. Através de seis historias bastante diferentes – a primeira no final do século 19 e a última num futuro bem distante -, em estilos totalmente diversos – que vão de um diário de bordo a uma entrevista com um arquivista – o autor, David Mitchell quer mostrar que tudo está conectado. (E essa, se você me permite certa liberdade religiosa, é a proposta budista da história). Os personagens que conhecemos numa grande galera que cruza o Pacífico há mais de cem anos, voltam de alguma maneira na Bélgica do início do século 20, nos Estados Unidos dos anos 70, na Inglaterra contemporânea, na Seul de um futuro próximo, e sei lá em que lugar de um futuro distante. Eu sei, parece uma mensagem de autoajuda barata. Mitchell, porém, é um autor com talento suficiente para transformar essa premissa em um “tour de force” literário.
De maneira engenhosa, ele interrompe cada história num momento crucial – e avança no tempo, fazendo o leitor perceber aos poucos as conexões entre as narrativas. Tudo culmina num futuro longínquo, quando a Terra está fadada à extinção – habitada por pequenas colônias sobreviventes, ameaçadas por uma tribo mercenária cujo único objetivo é a extinção total da raça humana. Se você, como eu, nutre uma certa desconfiança por cenários apocalípticos assim, relaxe. Mitchell é tão genial que apresenta essa última história de maneira original e sedutora – ele chega ao requinte de inventar uma espécie de dialeto entre esses últimos terrestres capaz de desafiar mesmo quem tem boa fluência no inglês… Mas o mais interessante é que essa última etapa não é o desfecho do livro. A partir dela, o autor começa a voltar no tempo, e a retomar as outras narrativas, encerrando cada uma delas de maneira brilhante. Raras vezes fechei um livro com tanto pesar – não pela experiência da leitura, claro, mas pelo simples fato de ter concluído uma obra que eu estava adorando!
Teria, apesar das dificuldades, dado um filme maravilhoso. Recentemente conferi “As aventuras de Pi” – que é uma gloriosa adaptação de um livro que também é bem cultuado e era, até então, famoso por ser “inadaptável”! Com um pouco de esforço, eu sempre acho que tudo é possível. Mas aí vem os Wachowski e Tykwer para me contrariar. Os irmão Lana e Andy, mais o diretor alemão, dividiram as historias entre eles – duas para cada um. E na hora da montagem… Bem, na hora da montagem eles jogaram todas para cima e… Bem, virou tudo uma bagunça.
Talvez a ideia fizesse sentido – pelo menos para quem já havia lido o livro. Mas mesmo eu, que sei passagens de “Cloud atlas” de cor, tive dificuldade para encaixar alguns trechos de “A viagem”. Já um amigo meu que me acompanhava na sessão, que nunca tinha lido o livro e só arejava uma leve noção do que se tratava através de críticas que tinha lido, ficou ainda mais confuso! Por que os diretores fizeram isso?
Esta semana mesmo li um curioso artigo revista do jornal “The New York Times” que pode nos dar uma pista para entender essa escolha. Sob o título “Era uma vez uma pessoa que dizia ‘Era uma vez’ “, o escritor e professor de escrita criativa Steve Almond lamentava que boa parte dos textos de seus alunos, quando ele pedia para a classe escrever alguma diferente, tinha a ver com um cara que acordava num lugar que ele não sabia onde era e tentava juntar as pistas do que tinha acontecido com ele. É… Tipo “Amnésia”, de Christopher Nolan…
Não é o caso aqui de discorrer sobre esse outro clássico “cult”, mas, para continuarmos a discussão, basta dizer que Almond defende a ideia de que temos mais de uma geração de leitores / espectadores / internautas que cresceram sem a figura do narrador. Acostumados a uma narrativa pulverizada, as pessoas agora nem esperam que as coisas façam sentido. Nos tornamos coletores de nacos de informação – e desistimos de dar a eles o que um dia chamamos de contexto. Quem fazia isso era a figura do narrador – hoje aposentada das grandes produções culturais. E o filme “A viagem” é só o exemplo mais recente disso.
Todas essas coisas passavam pela minha cabeça ao mesmo tempo em que eu via o filme. Juntando todos os pedaços da história que eu tinha tanto amado no livro, eu me forçava a gostar daquilo. Aos poucos – e por conta da minha devoção pelo livro – fui passando por cima dos obstáculos. Ignorei a presença incomoda de Tom Hanks. Ignorei a mensagem “new age”. Ignorei a maquiagem ridícula – “ridícula” com oito vogais, igual a Aline, primeira eliminada do “BBB 13″, usou para criticar o Bambam. Ignorei as nem sempre poéticas alterações na história original. Ignorei ainda a embaralhada gratuita nas historias. O que fiz, no final, foi simplesmente me divertir com a capacidade de alguém pegar algo tão legal como era o livro original e transformar aquilo tudo num exercício estético-anárquico e pseudo-elaborado.
Na época do lançamento de “A viagem” nos EUA, li varias entrevistas com o autor. Em quase todas ele se dizia fascinado com a transposição do seu trabalho para as telas. David Mitchell chegou até a declarar que estava encantado com o fato de escrever alguns diálogos que iam parar na boca de atrizes como Berry. Em todos seus depoimentos, porém, era possível notar certo incômodo seu, que aparecia timidamente, sem chegar a estragar seu fascínio pela adaptação. Era como alguém que sabe que está sendo gravado numa picadinha, mas dá uma piscada para câmera – como que para dizer: tudo bem, vamos nessa. Foi com essa mesma atitude que eu consegui atravessar “A viagem” – um filme ruim, que eu adorei.