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CLARICE LINSPECTOR

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Denethor II

Pontífice Inquisidor de Gondor
PRIMEIRAMENTE: de acordo com a lei, é permitido publicar e anunciar ao maximo 10% de um conteúdo literario. Esse texto a seguir tem menos de 10%, por isso, é extremamente legal sua cópia.

Alem de ser um dos livros mais famosos da literatura brasileira, "A Hora da Estrela" é a ultima das obras de Clarice Linspector, uma mulher que sem duvida nenhuma tem um capitulo em especial na história da cultura brasileira.

A seguir deixo o inicio do livro "A hora da Estrela", quem estiver disposto a ler, quando terminar de ler o texto, talvez sinta a mesma ancia que 9 de 9 anos meus sentiram: eu necessito ler esse livro... Aí vai!


Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse
sim a outra molécula e nasceu a vida.
Mas antes da pré-história havia a pré-história da
pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre
houve. Não sei o que, mas sei que o universo jamais
começou.
Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade
através de muito trabalho.
Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta
continuarei a escrever. Como começar pelo início, se
as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da
pré-pré-história já havia os monstros apocalípticos?
Se esta história não existe, passará a existir. Pensar
é um ato. Sentir ó um fato. Os dois juntos - sou eu
que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A
verdade é sempre um contato interior e inexplicável. A
minha vida a mais verdadeira é irreconhecível,
extremamente interior e não tem uma só palavra que a
signifique. Meu coração se esvaziou de todo desejo e
reduz-sé ao próprio último ou primeiro pulsar. A dor
de dentes que perpassa esta história deu uma fisgada
funda em plena boca nossa. Então eu canto alto agudo
uma melodia sincopada e estridente - é a minha própria
dor, eu que carrego o mundo e há falta de felicidade.
Felicidade? Nunca vi palavra mais doida, inventada
pelas nordestinas que andam por aí aos montes.
Como eu irei dizer agora, esta história será o
resultado de uma visão gradual - há dois anos e meio
venho aos poucos descobrindo os porquês. É visão da
iminência de. De quê? Quem sabe se mais tarde saberei.
Como que estou escrevendo na hora mesma em que sou
lido. Só não inicio pelo fim que justificaria o começo
- como a morte parece dizer sobre a vida - porque
preciso registrar os fatos antecedentes.
Escrevo neste instante com algum prévio pudor por
vos estar invadindo com tal narrativa tão exterior e
explícita. De onde no entanto até sangue arfante de
tão vivo de vida poderá quem sabe escorrer e logo se
coagular em cubos de geléia trêmula. Será essa
história um dia o meu coágulo? Que sei eu. Se há
veracidade nela - e é claro que a história é
verdadeira embora inventada - que cada um a reconheça
em si mesmo porque todos nós somos um e quem não tem
pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade
por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro - existe a
quem falte . o delicado essencial.
Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda
o desconheço, já que nunca o vivi? É que numa rua do
Rio de Janeiro, peguei no ar de relaxe o sentimento de
perdição no rosto de urna moça nordestina. Sem falar
que eu em menino me criei no Nordeste. Também sei das
coisas por estar vivendo.
Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe. Assim é
que os senhores sabem mais do que imaginam e estão
fingindo de sonsos.
Proponho-me a que não seja complexo o que
escreverei, embora obrigado a usar as palavras que vos
sustentam. A história - determino com falso livr
arbítrio = vai ter uns sete personagens e eu sou um
dos mais importantes deles, é claro. .Eu, Rodrigo S.
M. Relato antigo, este, pois não quero ser, modernoso
e inventar modismos à guisa de originalidade.
Assim é que experimentarei contra os meus hábitos
uma história com começo, meio e "gran finale" seguido
de silêncio e de chuva caindo.
História exterior e explícita, sim, mas que contém
segredos - a começar por um dos títulos, "Quanto ao
futuro", que é precedido por um ponto final e seguido
de outro ponto final. Não se trata de capricho meu -
no fim talvez se entenda a necessidade do delimitado.
(Mal e mal vislumbro o final que, se minha pobreza
permitir, quero que seja grandioso.) Se em vez de
ponto fosse. seguido por reticências o título ficaria
aberto a possíveis imaginações vossas, porventura até
malsãs e sem piedade. Bem, é verdade que também eu não
tenho piedade do meu personagem principal, a
nordestina: é um relato que desejo frio. Mas tenho o
direito de ser dolorosamente frio, e não vós. Por tudo
isto é que não vos dou a vez.
Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo
vida primária que respira, respira; respira. Material
poroso, um dia viverei aqui a vida de uma molécula com
seu estrondo possível de átomos. O que escrevo é mais
do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa
moça entre milhares delas. E dever meu, nem que seja
de pouca arte, o de revelar-lhe a vida.
Porque há o direito ao grito.
Então eu grito.
Grito puro e sem pedir esmola. Sei que há moças que
vendem o corpo, única posse real, em, troca de um bom
jantar em vez de um sanduíche de mortadela. Mas a
pessoa de quem falarei mal tem corpo
para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua,
não faz falta a ninguém. Aliás - descubro eu agora -
também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo
um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria
que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar
piegas.
Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas
por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de
balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que
são facilmente substituíveis e que tanto existiriam
como não existiriam. Poucas se queixam e ao que eu
saiba nenhuma reclama por não saber a quem. Esse quem
será que existe?
Estou esquentando o corpo para iniciar, esfregando
as mãos uma na outra para ter coragem. Agora me
lembrei de que houve um tempo em que para me esquentar
o espírito eu rezava: o movimento é espírito. A reza
era um meio de mudamente e escondido de todos atingir-
me a mim mesmo. Quando rezava conseguia um oco de alma
- e esse oco é o tudo que posso eu jamais ter. Mais do
que isso, nada. Mas o vazio tem o valor e a semelhança
do pleno. Um meio de obter é não procurar, um meio de
ter é o de não pedir e somente acreditar que a
silêncio que eu creio em mim é resposta a meu - a meu
mistério.
Pretendo, como já insinuei, escrever de modo cada
vez mais simples. Aliás o material de que disponho é
parco e singelo demais, as informações sobre os
personagens são poucas e nâo muito elucidativas,
informações essas que penosamente me vêm de mim para
mim mesmo, é trabalho de carpintaria.
Sim, mas não esquecer que para escrever não-importa-
o-quê o meu material básico é a palavra. Assim é que
esta história será feita de palavras que se agrupam
em frases e destas se evola um sentido secreto que
ultrapassa palavras e frases. É claro que, como todo
escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos:
conheço adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos
e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em
vias de ação, já que palavra é ação, concordais? Mas
não vou enfeitar a palavra pois se eu tocar no pão da
moça esse pão se tornará em ouro - e á jovem (ela tem
dezenove anos) e a jovem não poderia mordê-lo,
morrendo de fome. Tenho então que falar simples para
captar a sua delicada e vaga existência. Limito-me a
humildemente - mas sem fazer estardalhaço de minha
humildade que já não seria humildade - limito-me a
contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade
toda feita contra ela. Ela, que deveria ter ficado nó
sertão de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma:
datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o
terceiro ano primário. Por ser ignorante era obrigada
na datilografia a copiar lentamente letra por letra -
a tia é que lhe dera um curso ralo de como bater à
máquina. E a moça ganhara uma dignidade: era enfim
dalilógrafa. Embora, ao que parece, não aprovasse na
linguagem duas consoantes juntas e copiava a letra
linda e redonda do amado chefe a palavra "designar" de
modo como em língua falada diria: "desiguinar".
Desculpai-me mas vou continuar a falar de mim que
sou meu desconhecido, e ao escrever me surpreendo um
pouco pois descobri que tenho um destino. Quem já não
se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?
Quero antes afiançar que essa moça não se conhece
senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse
a tolice de se perguntar "quem sou eu?'' cairia
estatelada e em cheio no chão. É que "quem sou eu?"
provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade?
Quem se indaga é incompleto.

[...]
 
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E não chame a Clarice de LiNspector.


:jornal:
 
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