Domínio público e alterações em clássicos abrem novo campo de batalha para editoras
George Orwell, Monteiro Lobato e Freud são alguns dos autores que vêm sendo lançados por diferentes casas editoriais
O mercado editorial brasileiro está cada vez mais seduzido pelo passado, a julgar pela proliferação de diferentes edições de uma mesma obra escrita por autores em domínio público.
Um caso emblemático é o da publicação de “O pequeno príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944). Desde 2015, quando seu criador entrou em domínio público no Brasil, dezenas de editoras correram a publicar o livro, criando diferentes versões do produto: novas traduções, “capa almofadada”, “capa que brilha no escuro”, adaptações em cordel, edição “de luxo”, de bolso etc.
O prazo para um autor cair em domínio público difere de país a país. No Brasil, a proteção ao direito autoral é válida por 70 anos e termina a partir do primeiro dia do ano seguinte, quando qualquer um que se interesse pode publicar a obra sem pagamento de royalties. Embora na França o prazo seja o mesmo, o criador de “O pequeno príncipe” ainda não está em domínio público em seu país devido a “prorrogações de guerra” e a seu status de autor “morto pela França”, uma vez que estava em missão quando o avião que pilotava desapareceu.
Nem todos os autores em domínio público exibem grandes volumes de venda, mas é natural que as editoras se interessem por aqueles em torno dos quais há um mercado aquecido. Um exemplo é o britânico George Orwell (1903-1950), que, entre nós, entrou em domínio público em 2021. Como diz Lucas de Sena, editor da Globo Livros - que, assim que isso se deu, publicou “1984” e “A revolução dos bichos” -, é preciso oferecer um diferencial para os leitores frente à ampla oferta de um mesmo título.
“Muitas obras em domínio público ficam meio esquecidas, mas, no caso dos romances de Orwell, havia grande interesse. Apostamos em boas traduções [Bruno Gambarotto para “1984” e Petê Rissatti para “Revolução dos bichos”] e ao mesmo tempo em conseguir um preço competitivo”, diz o responsável pelo selo Biblioteca Azul da Globo Livros. Como diferencial, foram convidados para escrever as apresentações pessoas da comunicação digital, os influencers Rita Von Hunty, do canal Tempero Drag do YouTube, e Orlando Calheiros, podcaster de Benzina e PopCult, o que conferiu um formato mais pop às duas obras intrinsecamente políticas.
Criada em 2019 com um modelo de negócio calcado na publicação exclusiva de clássicos em domínio público, a editora Antofágica tem também “1984” como um dos títulos mais vendidos de seu catálogo. O editor Roberto Jannarelli confirma que o desafio, neste nicho, é apresentar algo que se destaque em relação às edições de outras casas editoriais.
Na Antofágica, o cuidado gráfico é um dos pontos em destaque. “Publicar clássicos com design moderno e interpretações artísticas contemporâneas faz parte da idealização da editora”, observa. Outra estratégia é investir na qualidade dos paratextos (prefácios, posfácios etc.). Cada edição traz uma apresentação curta que convida o leitor à história e três posfácios, incluindo informações sobre vida e obra do autor, e a relação da obra com outras formas de arte, ciências e cultura pop. “No caso dos títulos que são publicados por muitas editoras”, comenta Jannarelli, “torna-se ainda mais necessário ocupar o espaço digital. Na Antofágica, disponibilizamos videoaulas para o público geral sobre os lançamentos, além de um canal no YouTube com conteúdos diversos.”
No mercado nacional, o mais recente grande nome a entrar em domínio público foi Monteiro Lobato (1882-1948). Inicialmente os direitos pertenciam à editora Brasiliense, que firmou contrato com o próprio escritor em 1945. Em 2007, porém, os direitos passaram à Globo Livros através de um acordo com seus herdeiros. Ao entrar em domínio público, em 2019, dezenas de editoras passaram a publicar o precursor da literatura infantil nacional. Enquanto a Globo manteve-se fiel aos textos originais de Lobato, muitas outras partiram para adaptações, com o objetivo de retirar da obra trechos alegadamente racistas, como passagens relativas à tia Nastácia, mencionada como “boa negra” ou “negra de estimação”. A editora Moderna foi uma delas e encomendou ao escritor Pedro Bandeira uma nova versão de “Reinações de Narizinho”. A bisneta do escritor, Cleo Monteiro Lobato, também optou pelo caminho da modernização.
Morando há 25 anos nos Estados Unidos, formada em história, ela entendeu ser necessária a atualização para o nosso tempo. “Há alguns anos dei um Google no nome do meu bisavô e só apareceram referências negativas. Eu tenho certeza, por tudo que minha mãe contava, que ele não era racista, mas Lobato descrevia a sociedade da sua época e escrevia para as crianças de seu tempo. Muitos termos que usou mudaram de significado, tornaram-se inapropriados. Graças a Deus, a sociedade evoluiu”, diz Cleo.
A partir desta constatação, ela não só modernizou a linguagem do escritor, como modificou traços dos personagens do Sítio do Picapau Amarelo. Na sua versão, comercializada através do site que criou sobre o escritor, tia Nastácia não é mais empregada da família, mas uma amiga de infância de dona Benta, que com ela gerencia o sítio.
“É ela que dá colo a Narizinho e continua fazendo bolinhos de chuva, mas não lava mais roupa no riacho. O Sítio já era atemporal e ficou ainda mais”, observa Cleo, que contou com as ilustrações do recifense Rafael Sam como reforço para sua atualização.
Já Lucas de Sena, o editor da Globo Livros, ressalta que, tanto quando detinham a exclusividade dos direitos como agora, a opção foi deixar aos mediadores de leitura - basicamente, pais e professores - a tarefa de conduzir as discussões sobre os trechos polêmicos, com a inclusão de notas pedagógicas. “Não quisemos fazer uma censura à obra original. O julgamento deve ser feito pela comunidade leitora”, resume.
Um aspecto que não pode ser desconsiderado nas múltiplas adaptações das obras é que, para as vendas de governo, que representam um suporte fundamental para a saúde financeira das editoras brasileiras, no tocante a obras em domínio público, valem apenas as adaptações, e não os textos originais.
Quanto à alteração editorial ou de conteúdo de obras em domínio público para retirar traços de racismo ou homofobia, condição que vem sendo adotada nos últimos tempos em alguns países, o tema permanece controverso. Neste ano, as obras de Agatha Christie, Roald Dahl (autor de “A fantástica fábrica de chocolate”) e Ian Fleming (criador do agente secreto James Bond) sofreram mudanças.
No caso de Agatha Christie (1890-1976), a editora HarperCollins alterou alguns romances da criadora de Hercule Poirot e Miss Marple para retirar trechos considerados ofensivos. O mesmo não ocorreu, no entanto, no braço nacional da editora, que preferiu recorrer a notas para a contextualização destas passagens.
“Nosso trabalho como editora é contextualizar a obra dentro de seu período para que o leitor faça a sua própria reflexão. Não podemos falar pelas propostas editoriais no exterior, mas, nacionalmente, temos desde 2020 uma nova tradução de Agatha Christie com notas de rodapé e comentários, que visam informar o leitor sobre termos e expressões usados na época que, hoje, podem ser considerados sensíveis”, explica Samuel Coto, editor da HarperCollins Brasil.
Flávio Moura, da editora Todavia, concorda que o melhor, quanto às adaptações, é incluir aparatos textuais que discutam os pontos problemáticos da obra. “Alguns autores vão envelhecer de maneira irremediável. O filtro do tempo é mais severo e eficaz que alterações cosméticas”, acredita.
Além da HarperCollins Brasil, que trouxe ao mercado uma coleção formada por dezenas de títulos da chamada Dama do Crime, com capa dura e novas traduções, ainda é possível encontrar obras de Agatha Christie com selos de editoras como Globo Livros e L&PM.
Outra autora britânica - esta já totalmente em domínio público - cujos livros saem por diferentes casas editoriais é Virginia Woolf (1882-1941). O leitor desavisado pode ficar confuso ao tentar comprar, por exemplo, um exemplar de “Mrs. Dalloway”, uma de suas principais obras. Qual das edições escolher - a da Penguin-Companhia, Antofágica, Martin Claret, Novo Século, L&PM, Nova Fronteira ou Autêntica?
Rejane Dias, editora executiva do grupo Autêntica, acredita que há público para as diferentes edições. Todos os livros de Virginia Woolf que saíram pela Autêntica têm o premiado Tomaz Tadeu como tradutor. “É um projeto pessoal do Tadeu, que ganhou um Jabuti em 2013 pela tradução de ‘Mrs. Dalloway’ e se tornou um especialista em sua obra. Quando lançamos o livro, vendemos 2 mil exemplares em menos de três meses, o que nos fez ver que Virginia tem uma comunidade de fãs. Então publicamos também, sempre com edições cuidadas, de capa dura, seis outros títulos da autora”, diz Dias.
Ela conta que viu o potencial dos livros em domínio público quando, em 2008, lançou uma edição bilíngue português-latim de “Ética”, de Spinoza. “Posso dizer que esta edição marcou um antes e um depois na história da editora, fundada em 1997. Compreendi que o papel do editor é trazer o autor para o nosso tempo.”
Por isso, ela não se intimidou frente à consagrada edição das obras completas de Sigmund Freud, com tradução de Paulo César de Souza, pela Companhia das Letras, e lançou uma coleção alternativa do criador da psicanálise, com vários volumes, organizada segundo temas, e não na ordem cronológica em que foram escritos. “Esse é o segmento que mais vende em nosso catálogo e os livros de Freud têm em média duas reimpressões por ano, o que é bastante inusual”, diz. A editora observa que o fato de não precisar pagar royalties ao autor não faz, necessariamente, com que o lançamento de livros em domínio público seja barato ou mais simples.
O estabelecimento de texto de um autor como Machado de Assis, por exemplo, implica decisões criteriosas. Embora haja no mercado edições para todos os gostos e bolsos, a editora Todavia vai lançar ainda neste ano, em parceria com o Itaú Cultural, um projeto audacioso em torno do autor de “Dom Casmurro”: uma caixa com 26 livros, que inclui todos os títulos que o escritor publicou em vida com a assinatura Machado de Assis.
“O projeto é coordenado pelo professor Hélio Guimarães, da USP, grande pesquisador de Machado, que desde 2019 se dedica a fazer um estabelecimento muito rigoroso do texto, de modo a restituir a dicção de Machado, sua pontuação”, conta Flávio Moura, da Todavia. A coleção terá projeto gráfico cuidadoso, com apelo visual e tátil para atrair colecionadores. “Pode ser que, futuramente, venhamos a publicar separadamente os volumes, mas, de início, decidimos pela publicação em conjunto para alcançar maior impacto.”
Em 2024, outro grande nome da literatura nacional, Graciliano Ramos (1892-1953), hoje publicado com exclusividade pela editora Record, entrará em domínio público. O mercado de livros, em polvorosa, já planeja diversos lançamentos, pois, além de tudo, trata-se de autor muito adotado pelas escolas.
Pode-se indagar até que ponto é saudável para o mercado de livros brasileiro a concorrência em torno dos mesmos títulos, se eles não reduziriam ainda mais o espaço para novos autores. “É bom que o leitor tenha acesso a todas essas possibilidades, conhecendo o clássico e o contemporâneo, pois é assim que formamos nosso repertório”, pondera Jannarelli. “Não vejo a relação do domínio público com o autor atual como uma concorrência, mas como uma coexistência necessária. O maior concorrente do mercado literário não é uma outra obra literária, mas sim a série do streaming, o YouTube, o videogame etc.”
George Orwell, Monteiro Lobato e Freud são alguns dos autores que vêm sendo lançados por diferentes casas editoriais
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