Acho que todas as discussões éticas já foram feitas. Acho que todas as discussões emocionais, que, não raro, recorrem à ética, também foram feitas. E acho que, embora, muitas vezes, tenhamos um jeito incisivo de nos posicionar, compreendemos que não se trata de considerarmos o aborto como uma questão individual, mas, sim, como uma questão de saúde pública.
Talvez, o ponto mais complicado, e necessário, seja o de compreendermos a descriminalização como uma maneira de não punir as mulheres por algo que elas já fazem. E, muitas vezes, o fazem colocando suas vidas em risco (as mulheres pobres, vale ressaltar. As de classe média, ricas, enfim, têm clínicas seguras para fazerem o procedimento. Não sejamos inocentes.) Não vou entrar no mérito do que consideraríamos como vida, ou não, embora seja fato que a mulher é, indiscutivelmente, um ser humano (embora não seja tratada como tal, mas isso é assunto para outra hora), não algo que pode vir a ser.
No presente momento, considero a existência da vida humana a partir do momento em que o sistema nervoso está formado. Nas semanas iniciais da gravidez, biologicamente, temos potencial para que haja uma vida humana, mas é isso. E, honestamente, eu sei que, no âmbito individual, a mulher chama o amontoadinho de células dela do que quiser. Aposto que eu também chamaria meu amontoadinho de células de tudo quanto é nome fofo, se eu quisesse ser mãe.
Sou surtada, mas racional. Tenho a plena consciência de que, se um dia, eu sentir vontade de ser mãe (ainda não senti), vou fazer terapia (não para aprender a ser mãe, claro, mas para aprender a lidar com o fato de que eu vou aprender a ser mãe no processo), porque não sou irresponsável a ponto de não colocar a vida da criança (que eu escolhi ter, que eu decidi ter, mesmo que não tenha planejado; vale ressaltar) em primeiro lugar.
E eu sei que não existe uma fórmula certa para ser uma boa mãe ou um bom pai, mas se eu quero criar um ser humano íntegro, livre e feliz, eu preciso cuidar da minha saúde mental, para não sair projetando as merdas tudo na criança, para não pensar que ela é apenas um objeto que existe para cumprir as minhas expectativas, para fazer o que eu não fiz, e para ser melhor do que eu. Eu quero que ela seja ela, não eu. Mas estou divagando.
Voltando ao assunto do tópico: tive criação católica, queria ser freira, fui evangélica... enfim, tive de percorrer um caminho longo para conseguir compreender a questão do aborto de modo racional. Ficou mais fácil para eu compreender a descriminalização do aborto quando entendi que não se tratava do meu umbigo, das minhas crenças, das minhas escolhas. No campo da teoria, eu falo que, provavelmente, eu não faria um aborto (se não fosse em caso de anencefalia, de concepção proveniente de estupro, ou coisa do tipo). Mas fica difícil medir as pessoas a partir da minha régua, da minha noção de mundo, das minhas escolhas. As mulheres que escolhem abortar têm seus motivos, e eles passam, embora não fiquem por aí, por uma questão de elas terem o mínimo de gerência sobre seus corpos. Quaisquer elucubrações morais que eu queira fazer são irrelevantes, diante disso. Por isso, eu prefiro acolhê-las e lutar para que elas possam manter a dignidade diante de uma situação tão complicada.