Sobre Harry Potter: bem, ele é tudo, menos infantil no sentido estrito da palavra. Se fosse para classificá-lo, eu diria que é infanto-juvenil; pode ser que para alguns a divisão entre o que é infantil e o que é infanto-juvenil seja um pouco nebulosa, mas essa divisão existe, baseada em características específicas que definem ambos os gêneros. E HP, mesmo desde o primeiro livro, apenas "arranha" a superfície do infantil, uma vez que já lança mão de temas como morte, assassinato, preconceito racial/social, com tons e imagens que definitivamente não seriam propriamente adequadas para
crianças (fatos que não as impedem de ler os livros, claro, mas isso é outra história); e a partir do livro 4 então a coisa fica ainda mais pesada, culminando no que temos hoje no 6 que, qualidades literárias da autora à parte,
é pesado em diversos sentidos e totalmente não-infantil.
Quanto às notas: sou adepto delas e qualquer livro já aumenta consideravelmente no meu conceito assim que vejo que ele as possui, pois já é um indício de que o tradutor teve uma preocupação maior que a normal com relação à tradução, procurando deixar o leitor o mais informado possível sobre a obra em si, em especial em trechos que podem apresentar alguma dificuldade para aquele leitor que não possui uma bagagem cultural maior, que não está familiarizado o suficiente com o ambiente cultural de origem da obra, além de, é claro, as complicações inerentes da tradução em si. É um artifício que mais ajuda do que atrapalha. Contudo, concordo que, em determinadas obras, as notas
de rodapé podem ser um incômodo por quebrar o ritmo narrativo ou a beleza estilística de um poema. Mas para esses casos é que foram criadas as
notas de fim de livro, cujas melhores são aquelas que sequer possuem um número de referência no texto em si (coisa que também pode estragar o visual do texto), e sim indicam o número da página e citam o termo a ser esmiuçado - nos poemas, além da página, geralmente também é citada a estrofe e o verso. Elas ficam lá, no final do livro, e não se intrometem na leitura de forma alguma: estão lá apenas como uma opção para um aprofundamento, sendo perfeitamente possível ignorá-las por completo caso se deseje (ao contrário de uma referência numérica no meio do texto).
Logo, embora eu concorde que as notas de rodapé realmente seriam um "estorvo" para a principal faixa etária de leitores de HP, umas notas de fim de livro não fariam mal a ninguém, e seguramente contribuiriam para uma melhor receptividade da tradução (coisa que já deu pra ver que não acontece muito).
Quanto à qualidade das traduções: esse é um terreno perigoso, pois entra muito do gosto/birra pessoal de cada leitor, e geralmente tenho ainda mais receio de comentar tais coisas por eu mesmo ser um tradutor (embora eu esteja sempre aberto a críticas de minhas próprias traduções: sei que também erro, é claro, mesmo achando que em alguns momentos não tanto quanto alguns
); mas tentarei expor algumas opiniões que tenho a respeito disso.
Em primeiro lugar, pra mim um tradutor tem que ser antes de tudo um leitor, mas não um leitor ocasional, e sim um dos mais assíduos possíveis, seja da língua estrangeira com a qual trabalha (por motivos óbvios), seja de qualquer outra, mesmo que traduzida para língua materna, para uma maior aquisição de bagagem cultural. Nisso obviamente inclui-se a leitura não apenas da obra X que será traduzida, mas preferencialmente de
toda a obra literária do autor Y, pois creio ser essencial compreender o autor que se está traduzindo, entender seus motivos (da melhor maneira possível com os materiais disponíveis para isso), entender sua visão de mundo, pois tudo isso apenas contribui para a elaboração de uma tradução que melhor reproduza as intenções do autor. Infelizmente, na prática não é sempre que isso ocorre - aliás, acredito que seja muito raramente. Tradutores que trabalham permanentemente para editoras pegam para traduzir seja lá o que lhes for passado, na maioria das vezes com um prazo mínimo para o trabalho (vide HP novamente), o que invariavelmente impossibilita o tradutor de fazer uma pesquisa sobre o autor que vai traduzir. Resultado: traduções "mecânicas", sem uma profundidade sequer parecida com a do original (
nunca será a mesma, naturalmente)... ou seja, traduções fracas, que deixam muito a desejar e rendem muitas reclamações dos leitores conhecedores das obras do autor no original (daria para fazer uma lista imensa de exemplos, mas fiquemos com os mais óbvios e próximos dessa comunidade: fãs de Tolkien e de Rowling).
A "culpa" nem é tanto do tradutor, pois só quem já passou por isso sabe o que é traduzir um livro complexo em um prazo geralmente absurdo. A culpa em grande parte seria então das editoras, mas o pior é que nem podemos nos fiar muito nisso, pois elas simplesmente estão fazendo a coisa mais lógica no lugar em que se encontram: lucrar o máximo possível no menor tempo possível. A editora é antes de tudo uma empresa: se não lucrar, quebra. Nada mais simples e óbvio, então não vamos nos estender em questões mercadológicas, pois isso não vai mudar até Arda ser partida e refeita.
O que fazer então para ter uma tradução decente? Para mim a resposta é apenas uma: dar o máximo de si dentro das possibilidades de tempo, pois mais inglório que possa parecer (e muitas vezes é). Mas se é inglório, então por que fazê-lo? Bem, no meu caso, por uma simples razão: amor pelo que se faz. Eu realmente
amo traduzir; sei que ainda tenho muito que melhorar e aprender em muitas áreas, mas não vejo isso como um obstáculo, e sim como um estímulo para um resultado que sei que só tenderá a melhorar quanto mais eu me esforçar para fazer um trabalho que seja digno do que representa a obra do autor. Vejam que eu disse "decente" - é impossível se ter uma tradução
perfeita: o simples fato de ser uma
tradução já torna a coisa imperfeita, pois não é o original, nunca transmitirá exatamente o que o original transmite. É uma "aproximação", uma tentativa de colocar da melhor maneira possível na língua de chegada as intenções do autor, uma tentativa que pode ir do "medíocre" ao "excelente". E o que define essa qualidade da tentativa de tradução é justamente o empenho do tradutor que mencionei: quando se
vive o ambiente cultural original da obra, as chances da tradução chegar no "excelente" aumentam consideravelmente. O problema, claro, é conseguir conciliar tudo isso: tempo de estudo do autor, prazos de editoras, críticas diversas de todos os cantos. Mas às vezes
dá certo, e muito certo, quando a própria editora (embora de fato não seja a regra) realmente tem uma preocupação acima da média sobre a qualidade do material e não tanto com o prazo final para colocar o livro na prateleira.
Para dar alguns exemplos diversos: a Editora 34 tem se destacado nos últimos anos justamente por valorizar esse tipo de tradução "erudita", feita por pessoas que, antes de serem tradutores, são estudiosos de determinada cultura, língua e autor. O resultado é o que eu colocaria na faixa do "excelente" pelo que li até agora do catálogo atual dela; vide as traduções das obras de Dostoiévski (as primeiras em português diretamente do russo), o
Fausto de Goethe, o
Dom Quixote de Cervantes. São, de longe, as melhores traduções dessas obras que já surgiram no Brasil. E detalhe: recheadas de notas de rodapé, introduções elaboradas, algumas são até bilíngües. São claramente traduções feitas com paixão e esmero, e só por esse fato já seriam merecedoras de elogios.
Do outro lado temos aquelas que deixam a desejar, e nos casos que vou citar, a culpa costuma a pender mais para a editora mesmo:
O Senhor dos Anéis e a série
Harry Potter. Os problemas no SdA foram inúmeros, fato que se tornou ainda mais claro recentemente com a compilação dos erros e omissões que foi publicada na Valinor. É sabido que o prazo que a MF deu para a tradução de um livro imenso e extremamente complexo como esse em termos de tradução foi ridículo para se esperar algo acima da média. No entanto, a própria tradutora, em entrevista que li, reconheceu que antes de receber o livro para traduzir nunca tinha lido Tolkien. Só por aí já dá pra perceber que a coisa não poderia ser isenta de complicações. Creio que o resultado final só não foi pior porque na equipe de tradução estava o Ronald Kyrmse, esse sim estudioso de Tolkien muito antes dos livros começarem a ser traduzidos, que ajudou na tradução dos nomes (seguindo o guia escrito pelo próprio Tolkien) e na revisão técnica da obra como um todo. Claro que muita coisa passou sem ser corrigida, mas isso é comum em traduções, embora fique ainda pior com um prazo apertado. Mas imaginem o que não seria o livro sem essa supervisão de um entendido no assunto? Provavelmente algo próximo àquela edição folclórica da Artenova, onde constam coisas como "Gandalfo", "Pipinho", "Merinho" e lá vão liberdades absurdas de tradução.
Com HP o problema foi parecido: embora muito menos complexo em questão da linguagem do que SdA, a editora ainda assim resolveu "facilitar" a leitura para os leitores da faixa etária visada, em óbvia subestimação da capacidade de leitura de tais pessoas. Resultado: a tradutora foi instruída a deixar o texto mais "legível" (coisa que ela também confirmou em entrevista), prática cujo principal exemplo é a da tradução dos nomes. Dá para perceber uma clara incoerência nesse aspecto, pois se traduz "James" para "Tiago" mas se mantém "Harry" no original, apenas para citar um dos exemplos que mais rende reclamações. E como com o lançamento dos últimos livros a tradutora tem tido cada vez menos tempo para traduzi-los frente a demanda por uma versão nacional o mais rápido possível, tempo esse inversamente proporcional ao tamanho de cada novo volume, que resultado final pode ser esperado? É uma tarefa realmente cruel, e nesse caso o "apedrejamento" deveria ser em outra direção, e não na da tradutora, que acaba por se tornar vítima do sistema no qual se dispõe a trabalhar.
Como acho que já falei demais e pelo tamanho do post poucos lerão de qualquer forma, paro por aqui em consideração aos vossos olhinhos cansados. Desculpem-me se a exposição de idéias pareceu um pouco confusa, mas estava apenas fazendo uma
brainstorm¹.
1 Lit. "tempestade cerebral", em inglês; termo que designa o ato de se colocar no papel o maior número de idéias sobre um determinado assunto no menor tempo possível, visando a solução de um problema.