Tântalo
[size=x-small]Pode ser encontrado, com algumas correções em seu aspecto diagramatical, aqui[/size]
[align=justify]Desceram no mesmo ponto, quase que cronometricamente, após a primeira conversa depois do milagre econômico de desembargo. O assunto era bastante trivial, como aliás consegue ocorrer com todas as formas de pisadelas praticadas pelo ser humano em recluso. A diferença era que com aquelas duas almas a coisa tinha tendência a se tornar algo um tanto quanto mais sério – ou simplesmente algo aceitável e que pudesse ser carregado como um fardo que nós esquecemos do destinatário.
Aquela era a casa dele, e ele colocou a chave no portão com menções para se despedir. Era, na verdade, um molho de chaves presos na circunferência de uma argola suja, separados estrategicamente por chaveiros comemorativos e passados, e esquecidos. Girou a chave uma vez e olhou para a mulher que o olhava de resposta. Muito bem, gira-se mais uma vez da chave e abre-se do portão, perpendicular ao chão e à espuma que fluía calculadamente.
“Então é isso. Foi bom te conhecer. Amanhã, talvez?”
“Amanhã, talvez.”
Se abraçaram e entraram na mesma casa, abriram a porta, foram ajeitar seus trecos. Ele tirou o sapato, tirou o casaco, foi para defronte a televisão com meia e sandálias, com calça e com o controle deslizante e letárgico. Ele gostava de ligar e deixar apenas o vácuo do silêncio perpetuar-se pela sala, a fingir que o simples movimento das personagens pelo quadrilátero imagético fosse o suficiente para que o som – e todo o mais que se necessitasse – se fizesse mágica e espontaneamente. Mágica talvez não de certo; mas nem sempre o certo é o que se pode alcançar.
Ela, por sua vez, encaminhou-se à cozinha, depositou sua bolsa no tablado da pia e começou a cozinhar algo enquanto se inquietava com a crucial dúvida da luz que invadia ronceira os azulejos encardidos aqui e ali, alcançando os rodapés como destinos incertos. Faria a primeira tralha importada que encontrasse no primeiro recanto daquela cozinha; e se fartaria com esta primeira tralha, pois era a primeira e a primeira bastava...
O fato é que quando ela à sala foi, ele à cama se foi; e aquele resto de dia continuou neste compasso cadenciado que tanto agrada aos olhos e tanto malquista o pensar.
No outro dia, durante os dedos róseos da Aurora que não aparecia, de todo, ela circunavegou mares e transpassou muralhas; derrocou terras e aniquilou céus; e quando enfim pôde descansar, seus olhos continuavam na mesma expectativa tácita de ordenança alquebrada fronte ele, que girava a chave e perguntava: “Amanhã, talvez?”
Entraram novamente, foram fazer seus trecos da mesma forma mesurada que a ampulheta distribui a seus servos ávidos. Mas as tralhas haviam acabado. “Droga...”, ela pensou consigo mesma, enquanto vasculhava com o braço os porões recônditos do escuro do vazio. Nada! Retirou sua bolsa da pia limpa – mas nem por isso menos execrável –, virou-se e observou os raios de luz refletidos.
“Quem é você?”, ela perguntou após ter se encaminhado para a sala e ter visto aquele sujeito esparramado no sofá a observar os chuviscos da antena quebrada.
“Como quem sou eu? Espere... Você é do ônibus...”, ele respondeu e ela reconheceu ele como sendo igualmente o garoto do ônibus. Era um momento um tanto quanto estranho e inconfortável, este de descobrir com tamanha cotidianidade a pessoa ao seu lado pura e simplesmente ao seu lado... Trocaram mais algumas perguntas na mesma distância decorosa que os distanciava agora e sempre; e foram perguntas sobre as razões, as consequências e principalmente as procedências. Talvez fosse momento para rir; mas o riso não queria nenhum dos dois, e por isto nenhum dos dois riu. Apenas se estranharam, e principalmente ela quando o viu sem camisa e sentiu um desconforto no peito. Ele, ruborizado, tratou de compôr-se fronte uma dama e vestiu da camiseta e de seus botões soltos, e perguntou também se ela sabia como. Ela disse que não, que não sabia, e que, se ele quisesse, ele poderia dormir em seu quarto. Ele aceitou, disse que era muita gentileza, e disse muitas outras coisas sem sentido que os dois simplesmente concordaram comunitariamente como certo.
No outro dia acordaram da mesma forma métrica de sempre, indo em seus versos marcados e desembocando em estrofes tortas – mas retas. Mas retas pois desceram no mesmo ponto, giraram da mesma chave, apenas sorriram e balançaram a cabeça quando entraram pela porta e foram cuidar de suas tralhas...
Isto até um belo dia, que de belo não tinha tanto, e que de tanto tinha apenas seu belo; um dia de quando ela se levantou, colocou sua roupa, vestiu seu sapato, girou a chave da porta e do portão e foi embora para derrocar mais coisas e coisas, até perceber, entre aquela coisa e aquilo, que não era seu hábito girar a chave do portão e que seu filho estava morto no sofá, com a televisão ligada e com tralhas ensanguentadas em seu colo.[/align]
[size=x-small]Pode ser encontrado, com algumas correções em seu aspecto diagramatical, aqui[/size]
[align=justify]Desceram no mesmo ponto, quase que cronometricamente, após a primeira conversa depois do milagre econômico de desembargo. O assunto era bastante trivial, como aliás consegue ocorrer com todas as formas de pisadelas praticadas pelo ser humano em recluso. A diferença era que com aquelas duas almas a coisa tinha tendência a se tornar algo um tanto quanto mais sério – ou simplesmente algo aceitável e que pudesse ser carregado como um fardo que nós esquecemos do destinatário.
Aquela era a casa dele, e ele colocou a chave no portão com menções para se despedir. Era, na verdade, um molho de chaves presos na circunferência de uma argola suja, separados estrategicamente por chaveiros comemorativos e passados, e esquecidos. Girou a chave uma vez e olhou para a mulher que o olhava de resposta. Muito bem, gira-se mais uma vez da chave e abre-se do portão, perpendicular ao chão e à espuma que fluía calculadamente.
“Então é isso. Foi bom te conhecer. Amanhã, talvez?”
“Amanhã, talvez.”
Se abraçaram e entraram na mesma casa, abriram a porta, foram ajeitar seus trecos. Ele tirou o sapato, tirou o casaco, foi para defronte a televisão com meia e sandálias, com calça e com o controle deslizante e letárgico. Ele gostava de ligar e deixar apenas o vácuo do silêncio perpetuar-se pela sala, a fingir que o simples movimento das personagens pelo quadrilátero imagético fosse o suficiente para que o som – e todo o mais que se necessitasse – se fizesse mágica e espontaneamente. Mágica talvez não de certo; mas nem sempre o certo é o que se pode alcançar.
Ela, por sua vez, encaminhou-se à cozinha, depositou sua bolsa no tablado da pia e começou a cozinhar algo enquanto se inquietava com a crucial dúvida da luz que invadia ronceira os azulejos encardidos aqui e ali, alcançando os rodapés como destinos incertos. Faria a primeira tralha importada que encontrasse no primeiro recanto daquela cozinha; e se fartaria com esta primeira tralha, pois era a primeira e a primeira bastava...
O fato é que quando ela à sala foi, ele à cama se foi; e aquele resto de dia continuou neste compasso cadenciado que tanto agrada aos olhos e tanto malquista o pensar.
No outro dia, durante os dedos róseos da Aurora que não aparecia, de todo, ela circunavegou mares e transpassou muralhas; derrocou terras e aniquilou céus; e quando enfim pôde descansar, seus olhos continuavam na mesma expectativa tácita de ordenança alquebrada fronte ele, que girava a chave e perguntava: “Amanhã, talvez?”
Entraram novamente, foram fazer seus trecos da mesma forma mesurada que a ampulheta distribui a seus servos ávidos. Mas as tralhas haviam acabado. “Droga...”, ela pensou consigo mesma, enquanto vasculhava com o braço os porões recônditos do escuro do vazio. Nada! Retirou sua bolsa da pia limpa – mas nem por isso menos execrável –, virou-se e observou os raios de luz refletidos.
“Quem é você?”, ela perguntou após ter se encaminhado para a sala e ter visto aquele sujeito esparramado no sofá a observar os chuviscos da antena quebrada.
“Como quem sou eu? Espere... Você é do ônibus...”, ele respondeu e ela reconheceu ele como sendo igualmente o garoto do ônibus. Era um momento um tanto quanto estranho e inconfortável, este de descobrir com tamanha cotidianidade a pessoa ao seu lado pura e simplesmente ao seu lado... Trocaram mais algumas perguntas na mesma distância decorosa que os distanciava agora e sempre; e foram perguntas sobre as razões, as consequências e principalmente as procedências. Talvez fosse momento para rir; mas o riso não queria nenhum dos dois, e por isto nenhum dos dois riu. Apenas se estranharam, e principalmente ela quando o viu sem camisa e sentiu um desconforto no peito. Ele, ruborizado, tratou de compôr-se fronte uma dama e vestiu da camiseta e de seus botões soltos, e perguntou também se ela sabia como. Ela disse que não, que não sabia, e que, se ele quisesse, ele poderia dormir em seu quarto. Ele aceitou, disse que era muita gentileza, e disse muitas outras coisas sem sentido que os dois simplesmente concordaram comunitariamente como certo.
No outro dia acordaram da mesma forma métrica de sempre, indo em seus versos marcados e desembocando em estrofes tortas – mas retas. Mas retas pois desceram no mesmo ponto, giraram da mesma chave, apenas sorriram e balançaram a cabeça quando entraram pela porta e foram cuidar de suas tralhas...
Isto até um belo dia, que de belo não tinha tanto, e que de tanto tinha apenas seu belo; um dia de quando ela se levantou, colocou sua roupa, vestiu seu sapato, girou a chave da porta e do portão e foi embora para derrocar mais coisas e coisas, até perceber, entre aquela coisa e aquilo, que não era seu hábito girar a chave do portão e que seu filho estava morto no sofá, com a televisão ligada e com tralhas ensanguentadas em seu colo.[/align]