• Caro Visitante, por que não gastar alguns segundos e criar uma Conta no Fórum Valinor? Desta forma, além de não ver este aviso novamente, poderá participar de nossa comunidade, inserir suas opiniões e sugestões, fazendo parte deste que é um maiores Fóruns de Discussão do Brasil! Aproveite e cadastre-se já!

Tântalo.

Mavericco

I am fire and air.
Usuário Premium
Tântalo
[size=x-small]Pode ser encontrado, com algumas correções em seu aspecto diagramatical, aqui[/size]

[align=justify]Desceram no mesmo ponto, quase que cronometricamente, após a primeira conversa depois do milagre econômico de desembargo. O assunto era bastante trivial, como aliás consegue ocorrer com todas as formas de pisadelas praticadas pelo ser humano em recluso. A diferença era que com aquelas duas almas a coisa tinha tendência a se tornar algo um tanto quanto mais sério – ou simplesmente algo aceitável e que pudesse ser carregado como um fardo que nós esquecemos do destinatário.

Aquela era a casa dele, e ele colocou a chave no portão com menções para se despedir. Era, na verdade, um molho de chaves presos na circunferência de uma argola suja, separados estrategicamente por chaveiros comemorativos e passados, e esquecidos. Girou a chave uma vez e olhou para a mulher que o olhava de resposta. Muito bem, gira-se mais uma vez da chave e abre-se do portão, perpendicular ao chão e à espuma que fluía calculadamente.

“Então é isso. Foi bom te conhecer. Amanhã, talvez?”
“Amanhã, talvez.”

Se abraçaram e entraram na mesma casa, abriram a porta, foram ajeitar seus trecos. Ele tirou o sapato, tirou o casaco, foi para defronte a televisão com meia e sandálias, com calça e com o controle deslizante e letárgico. Ele gostava de ligar e deixar apenas o vácuo do silêncio perpetuar-se pela sala, a fingir que o simples movimento das personagens pelo quadrilátero imagético fosse o suficiente para que o som – e todo o mais que se necessitasse – se fizesse mágica e espontaneamente. Mágica talvez não de certo; mas nem sempre o certo é o que se pode alcançar.

Ela, por sua vez, encaminhou-se à cozinha, depositou sua bolsa no tablado da pia e começou a cozinhar algo enquanto se inquietava com a crucial dúvida da luz que invadia ronceira os azulejos encardidos aqui e ali, alcançando os rodapés como destinos incertos. Faria a primeira tralha importada que encontrasse no primeiro recanto daquela cozinha; e se fartaria com esta primeira tralha, pois era a primeira e a primeira bastava...

O fato é que quando ela à sala foi, ele à cama se foi; e aquele resto de dia continuou neste compasso cadenciado que tanto agrada aos olhos e tanto malquista o pensar.

No outro dia, durante os dedos róseos da Aurora que não aparecia, de todo, ela circunavegou mares e transpassou muralhas; derrocou terras e aniquilou céus; e quando enfim pôde descansar, seus olhos continuavam na mesma expectativa tácita de ordenança alquebrada fronte ele, que girava a chave e perguntava: “Amanhã, talvez?”

Entraram novamente, foram fazer seus trecos da mesma forma mesurada que a ampulheta distribui a seus servos ávidos. Mas as tralhas haviam acabado. “Droga...”, ela pensou consigo mesma, enquanto vasculhava com o braço os porões recônditos do escuro do vazio. Nada! Retirou sua bolsa da pia limpa – mas nem por isso menos execrável –, virou-se e observou os raios de luz refletidos.

“Quem é você?”, ela perguntou após ter se encaminhado para a sala e ter visto aquele sujeito esparramado no sofá a observar os chuviscos da antena quebrada.

“Como quem sou eu? Espere... Você é do ônibus...”, ele respondeu e ela reconheceu ele como sendo igualmente o garoto do ônibus. Era um momento um tanto quanto estranho e inconfortável, este de descobrir com tamanha cotidianidade a pessoa ao seu lado pura e simplesmente ao seu lado... Trocaram mais algumas perguntas na mesma distância decorosa que os distanciava agora e sempre; e foram perguntas sobre as razões, as consequências e principalmente as procedências. Talvez fosse momento para rir; mas o riso não queria nenhum dos dois, e por isto nenhum dos dois riu. Apenas se estranharam, e principalmente ela quando o viu sem camisa e sentiu um desconforto no peito. Ele, ruborizado, tratou de compôr-se fronte uma dama e vestiu da camiseta e de seus botões soltos, e perguntou também se ela sabia como. Ela disse que não, que não sabia, e que, se ele quisesse, ele poderia dormir em seu quarto. Ele aceitou, disse que era muita gentileza, e disse muitas outras coisas sem sentido que os dois simplesmente concordaram comunitariamente como certo.

No outro dia acordaram da mesma forma métrica de sempre, indo em seus versos marcados e desembocando em estrofes tortas – mas retas. Mas retas pois desceram no mesmo ponto, giraram da mesma chave, apenas sorriram e balançaram a cabeça quando entraram pela porta e foram cuidar de suas tralhas...

Isto até um belo dia, que de belo não tinha tanto, e que de tanto tinha apenas seu belo; um dia de quando ela se levantou, colocou sua roupa, vestiu seu sapato, girou a chave da porta e do portão e foi embora para derrocar mais coisas e coisas, até perceber, entre aquela coisa e aquilo, que não era seu hábito girar a chave do portão e que seu filho estava morto no sofá, com a televisão ligada e com tralhas ensanguentadas em seu colo.[/align]
 
No começo os dois personagens são meros desconhecidos ?. Estão na mesma casa em ambientes diferentes. Achei que se tratava de uma rotina de casal que perdeu o pique para a rotina... :rofl:. Deu a impressão de três estórias completamente diferentes. Posso estar enganado nessa consideração.

Uma carga poética no meio disso tudo.

"No outro dia, durante os dedos róseos da Aurora que não aparecia" isso acho bom na prosa :sim:
 
Esta expressão é um pouco emprestada de Homero, em especial na Odisseia, que fala dos dias que começam com a "dedirrósea Aurora" (nas palavras de Odorico Mendes) ou a "Aurora de dedos rosa" (nas palavras de Carlos Alberto Nunes). Não achei que dedirrósea fosse cair bem no conto, apesar de cair melhor numa estrutura poética por sua sonoridade esmerada....

A verdade é que dizem que a Odisseia é feita de várias histórias aglutinadas pela cola poética já velha de Homero, daí algumas incoerências (p.ex., o Ciclope). A Telemaquia, segundo nos explica Carlos Alberto Nunes em seu prefácio, é muito diferente da Odisseia propriamente dita... O encontro do pai com o filho e, também, da mãe com este próprio filho (e com o próprio pai e com um próprio velho que é, na verdade, o mesmo pai [uma espécie de consubstancialidade pai-filho]) é mais abissal do que se pode imaginar. O leitor até estranha quando este clima familiar é abruptamente encerrado pela sanguinolência dos últimos cantos :sim:
 
O Mavericco já pegou o espírito: sexo e sangue!

Sim, fico com o ricardo nessa opinião também. No começo da leitura, achei que eram um casal dividindo o mesmo apartamento. Um casal bem acomodado, por sinal. Só se redescobrem quando falta comida. Até me fez lembrar de uma conto, não sem se do Rubem Braga ou do Rubem Fonseca, de um casal recém casado que se tranca num quarto com suas provisões, desligam o telefone, não atendem a porta, se desligam do mundo lá fora e se fecham em si mesmos. O paraíso acaba afinal, porque acaba a comida e eles são obrigados a sair.

Mas depois, quando eles se encontram, já dá a impressão de morarem em um condomínio, prédio ou república. E lá vem a TV de novo. Assuntos recorrentes, Mavericco. De onde veio esse tântalo, dos capacitores? Mais uma citação. Parece que o Gaiman disse que se fosse escrever sobre pessoas normais, vivendo suas vidas normais, um autor preencheria metade do livro descrevendo as personagens assistindo TV. Triste isso, não?

E o fim sanguinolento... filho bebê? Tralhas. Repetição de palavras. Tralhas comestíveis? É só uma história mesmo?
 
Só pra constar:
tântalo
s. m.s. m.
[Química] Corpo simples metálico que se apresenta em forma de pó negro. No caso em questão o texto do Mavericco vai ficar como mitologia grega.Também li isso no " pai dos burros" :rofl:
 
O significado pensado por mim foi o mitológico mesmo. Talvez com mais alguns meses de Engenharia da Computação (cursei 2 dias e três aulas) eu tivesse pensado no Tântalo substância; apesar de algo me dizer que os televisores devem ter tântalo em algum lugar, segundo as informações do Rodovalho acerca de capacitores.

A TV é realmente um assunto recorrente assim como o Ônibus. O ônibus é uma espécie de fantasmagoria, um reduto de promessas vazias: muito se conclama, pouco se usa. A TV é simplesmente a fogueira da aldeia global. Se no conto anterior se debateu criticamente as informações alienadas difundidas pela mídia sob uma perspectiva materialista; neste temos simplesmente alguém que se encanta pelas imagens e dispensa as informações propriamente ditas. O que não implica que nem este nem aquele estejam livres da alienação; se aquela ligava a TV antes do "processo", era, numa perspectiva literal, para poder ver e acompanhar algo enquanto ficava parada; o outro, era também pra poder ver algo enquanto ficava parado. No final, ambos terminam parados: um de uma forma que não veio, mas que, espera-se, virá; o outro de uma forma que não viria, mas que veio.

(É importante também lembrarmos também que a pena dada à Tântalo no Tártaro tem uma conexão muito forte com o Canto XXIV do Purgatório [cf. Odisseia, XI]. Existe uma canção camoniana que faz referência à Tântalo e, se não me engano, um soneto também [a filha de Tântalo, Níobe, aparece nOs Lusíadas]. Não podemos, é claro, nos esquecermos do final da VI Écloga de Virgílio e, em especial, da lenda de Tereu -- a qual eu creio se encaixar ainda melhor com o conto, ainda que de forma obscuramente [ou cotidianamente] alegórica.)
 
botaram tântalo como 1 ser desprezível no mar d monstros (percy jackson vol. 2). atualização do mito ou incompreensão?
 
Acho que prefiro apontar como Atualização do Mito. Joyce coloca Odisseu como um marido traído e Circe como a dona de um bordel. Seria muita injustiça acusar de incompreensão ou de deturpação o autor de Percy Jackson e isentar Joyce da culpa :think:
 

Valinor 2023

Total arrecadado
R$2.404,79
Termina em:
Back
Topo