Carro-chefe do presidente Jair Bolsonaro no combate à pandemia, mesmo sem eficácia comprovada pela ciência, a distribuição de
cloroquina aos quatro cantos do país mobilizou pelo menos cinco ministérios, uma estatal, dois conselhos da área econômica, Exército e Aeronáutica.
A
Folha identificou dezenas de atos oficiais, todos eles públicos, adotados nas mais diferentes esferas de governo para garantir a circulação de
cloroquina e hidroxicloroquina.
Distribuir o medicamento virou uma política de governo, com atos dos Ministérios da Saúde, Defesa, Economia, Relações Exteriores e Ciência e Tecnologia. Envolve desde a orientação técnica para o uso até o fornecimento final da substância, passando por isenções de impostos e facilitações na circulação do produto.
Uma ferramenta alimentada pelo Ministério da Saúde, com registros das ações da pasta na pandemia, aponta uma distribuição de 5.416.510 comprimidos de cloroquina e 481.500 comprimidos de hidroxicloroquina. Os
medicamentos, sem eficácia comprovada para Covid-19 conforme experimentos feitos até agora, foram enviados principalmente a Norte e Nordeste.
Depois de quase 11 meses de adoção dessa estratégia para enfrentar o novo coronavírus, as investigações sobre crimes e ilegalidades começam a deslanchar.
O ministro da Saúde, general da ativa Eduardo Pazuello, é investigado em
inquérito no STF (Supremo Tribunal Federal) por omissão na crise de escassez de oxigênio no Amazonas. Quando faltava oxigênio, o ministério irrigou Manaus com 120 mil comprimidos de hidroxicloroquina.
Um
segundo procedimento, ainda preliminar, foi instaurado pela PGR para apurar a distribuição do medicamento no país. Já a Procuradoria da República no DF abriu um processo, na esfera cível, para investigar improbidade na distribuição de cloroquina. Para preservar provas, os procuradores fizeram
download de vídeos em que Pazuello e Bolsonaro defendem o “tratamento precoce”.
No TCU (Tribunal de Contas da União), uma auditoria apontou
ilegalidade em uso de dinheiro do SUS para custear a distribuição da cloroquina. O entendimento dos auditores foi de que não existe um aval da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para o fornecimento pelo SUS.
Como a cloroquina acaba sendo usada numa finalidade fora da descrita na bula, haveria necessidade de uma autorização do órgão regulador, segundo a auditoria do TCU.
A Anvisa afirmou à
Folha que o registro da cloroquina no órgão se destina a tratamento de artrite, lúpus eritematoso, doenças fotossensíveis e malária. “Apesar de promissores, não existem estudos conclusivos que comprovem o uso desse medicamento para o tratamento da Covid-19”, disse, em nota.
“Não há recomendação da Anvisa, no momento, para a sua utilização em pacientes infectados ou mesmo como forma de prevenção à contaminação pelo novo coronavírus”, finalizou.
O Localiza SUS, ferramenta usada para atualizar os dados sobre ações na pandemia, informa que os comprimidos de cloroquina custaram R$ 238,3 mil. O valor, porém, está subestimado.
O Exército, que produziu 3,2 milhões de comprimidos de cloroquina a partir de solicitações dos Ministérios da Defesa e da Saúde, informou à
Folha que o gasto com a produção foi de R$ 1,16 milhão. O Laboratório Químico Farmacêutico do Exército fez pelo menos nove dispensas de licitação para adquirir insumos e o princípio ativo da droga.
Postagens do Ministério da Saúde sobre 'tratamento precoce'
Em outubro do ano passado, uma auditoria do TCU constatou que a produção do laboratório do Exército não levava em conta demanda e planejamento por parte do Departamento de Logística do Ministério da Saúde. A falha tem “potencial de gerar dano ao erário, pois a produção pode exceder à necessidade do SUS e gerar acúmulo e vencimento de
medicamentos”, apontou a auditoria.
O Exército, em nota, negou essa possibilidade. Segundo a instituição, há 328 mil comprimidos de
cloroquina em estoque, com vencimento em 2022. Na nota, o Exército dá a entender que não haverá uso do medicamento para Covid-19: “Será empregado para atender ao uso terapêutico preconizado do medicamento.”
O Laboratório do Exército é apenas executor e não decide sobre
ampliação ou redução da produção, assim como não discute eficácia ou utilização, conforme a nota enviada à reportagem. “Em relação à cloroquina, destaca-se que as quantidades produzidas foram distribuídas de acordo com as solicitações dos Ministérios da Saúde e da Defesa.”
Caixas de cloroquina foram transportadas em diferentes ocasiões pela Aeronáutica, especialmente para regiões mais isoladas, como comunidades indígenas na fronteira com a Colômbia e a Venezuela. Segundo a Força Aérea, quem faz o planejamento é o Ministério da Saúde, que o repassa ao Ministério da Defesa. “A Força Aérea apenas cumpre a missão”, diz a assessoria de imprensa.
O Ministério da Saúde editou um guia com orientações sobre o uso da cloroquina. Chegou a colocar no ar um
aplicativo programado para ofertar o medicamento. E distribuiu a droga às cinco regiões do país. A pasta não respondeu aos questionamentos da reportagem.
A EBSERH (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares), estatal responsável pelos hospitais universitários federais, fez uma compra de hidroxicloroquina para ações de combate à Covid-19. Os registros públicos mostram uma aquisição no valor de R$ 38.915. À
Folha a estatal afirmou que a compra foi cancelada e não chegou a ser concluída.
O recuo teria ocorrido após “mudança no protocolo adotado, até então, pelos órgãos de saúde”. A aquisição, conforme a EBSERH, foi feita especificamente pelo hospital universitário no Maranhão.
A estatal confirmou que dois hospitais universitários compraram hidroxicloroquina para o combate à Covid-19, ainda no primeiro semestre. Foram 2.570 doses, no valor de R$ 2.546,32, segundo a EBSERH.
“A administração central da EBSERH não realizou compras centralizadas de hidroxicloroquina para distribuir aos hospitais e não emitiu recomendação aos hospitais da rede para uso do medicamento no combate à Covid-19”, afirma a nota da estatal.
A pulverização da cloroquina no país foi possível graças também a isenções de impostos pelo Ministério da Economia e a permissões de entregas antecipadas pela Receita. Em nota, a pasta de Paulo Guedes defendeu as medidas.
A permissão para isenção de ICMS à cloroquina e outros produtos voltados ao combate à pandemia foi estendida até 31 de julho, segundo o ministério. A medida foi avalizada pelo Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária).
A redução a zero da alíquota de importação sobre produtos transportados em remessas aéreas permitiu doações de diferentes partes do mundo, conforme a pasta. A medida foi encerrada em 1º de outubro.
A simplificação do despacho aduaneiro de produtos foi outra medida adotada, e incluiu a cloroquina. “Esta medida é aplicada a todas as mercadorias declaradas essenciais ao combate à Covid-19, atualmente com mais de 200 itens diferentes”, diz a nota. Também houve redução de impostos pela Camex (Câmara de Comércio Exterior). A cloroquina foi incluída.
O Ministério das Relações Exteriores, por sua vez, viabilizou uma
doação de 2 milhões de comprimidos de doses pelos EUA, ainda no governo de Donald Trump. O Itamaraty, em nota, diz ter facilitado os entendimentos entre Ministério da Saúde e governo dos EUA para a doação do medicamento. A intermediação coube à Embaixada do Brasil em Washington e à Agência Brasileira de Cooperação, segundo o ministério.
Já o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações patrocinou uma pesquisa sobre quimioprofilaxia com cloroquina em população de alto risco. O valor do convênio é de R$ 1,44 milhão. A pasta não respondeu às perguntas sobre a evolução da pesquisa.
Um governo mobilizado pela cloroquina
O que cada órgão fez:
Ministério da Saúde
Edição de guia com orientação sobre uso
Compra e distribuição a todas as regiões do país
Parceria com Exército para a produção
Ministério da Economia
Redução a zero de imposto de importação em remessas aéreas de até US$ 10 mil (ato do ministro)
Redução temporária de alíquota de importação, por decisão da Camex (Câmara de Comércio Exterior)
Autorização a 16 estados para conceder isenção de ICMS, decidida pelo Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária)
Permissão de entrega antecipada de mercadoria (instrução da Receita Federal)
Ministério das Relações Exteriores
Acordo de cooperação com os EUA para receber uma doação de 2 milhões de doses
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações
Convênio para pesquisa sobre profilaxia com o medicamento em população de alto risco
Ministério da Defesa
Solicitações de produção e transporte do medicamento a duas das três Forças
Exército
Dispensas de licitação para compra de insumos e medicamentos, com ampliação expressiva da produção pelo Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército
Aeronáutica
Transporte de cargas a regiões mais isoladas, inclusive a comunidades indígenas na fronteira com a Colômbia e a Venezuela
EBSERH
Compra de medicamentos por hospitais universitários