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Luzes e Trevas

"A luz e as trevas estão misturadas no caos do homem."
Alexander Pope

Há poucas semanas, houve um apagão que deixou às escuras boa parte do país. Esse tipo de situação inusitada traz consigo as mais diversas possibilidades e, consequentemente, nos lega algumas histórias para se contar e ouvir com total atenção e, em alguns casos, tensão. O que lhes vou narrar agora pode, aos olhares mais céticos, ser tido como mera invenção literária, em virtude do seu teor. Quem me contou, no entanto, garante que o referido é verdade e dá fé. Para que esse acontecido tão incrível não se torne uma vulgar lenda urbana, daquelas que vão se modificando de destino em destino, tentarei repassar aqui o que me foi dito da forma mais fiel possível. A identidade dos envolvidos será preservada.

Naquela noite de terça-feira, em um bairro de classe média da cidade de São Paulo, H., professor universitário de uma faculdade privada, estava sozinho em seu apartamento, como na maioria das noites anteriores nos últimos seis anos - época em que se separou. Não morava sozinho, entretanto. Vivia com a filha, que deixou a mãe no interior a fim de estudar na capital. Nesse dia, a menina estava na casa de uma amiga. Estava sempre na casa das amigas. Isso não incomodava H., de modo algum. Acostumara-se (ou resignara-se) à rotina: gostava da privacidade de ficar sozinho. Professor do curso de Letras, aproveitava as noites taciturnas no grande apartamento vazio para ler. Depois de ter jantado, relia Ensaio sobre a Cegueira, do Saramago, pois na semana seguinte faria uma palestra sobre a obra em um congresso de literatura, em Curitiba. Foi quando faltou luz. Seguiu sentado na poltrona onde lia, esperando que a energia voltasse. Cerca de quinze minutos depois, pensou em dizer à filha para que ela não viesse naquele momento, devido à escuridão na região. Ao telefonar-lhe, ficou sabendo que o bairro onde ela se encontrava estava na mesma situação, e que o mesmo acontecera em outros estados: um apagão geral. A jovem disse, também, que provavelmente dormiria na casa da colega, e, caso fosse voltar, o noivo da amiga a levaria de carro. Que o pai, portanto, não se preocupasse.

H. deitou-se no sofá. Não havia forma melhor de gastar as horas, naquele caso, do que dormindo. Chegou a cochilar por algum tempo, mas acordara e não tinha mais vontade de dormir. Sentado, esperando o tempo passar, ouviu um grande barulho, algo como um tiro, que, teve a impressão, veio de dentro do edifício. Parece não ter sido o único a reagir ao barulho: portas abrindo e pessoas caminhando pelo corredor foram os sons que se seguiram. Decidiu ir ver o que era. Saiu no corredor, onde um vizinho ia à portaria, também curioso com a situação. Foi atrás, tendo de descer seis andares pelas escadas, guiando-se pelo som, pelo tato e pelos feixes de luz das lanternas dos outros, pois não gostava de acessórios: é do tipo que jamais usa guarda-chuva, por exemplo. No meio do caminho, topava com outros vizinhos curiosos, alguns assustados. Gostava da situação: num momento, estava tendo uma noite rotineira, que ficou ainda mais tediosa devido à falta de luz; noutro, passava a viver naquele clima de comunhão e mistério. Pensou na ironia de, naquela noite, momentos antes, estar lendo Ensaio sobre a Cegueira.

A verdade é que esse tipo de evento, que foge do comum e aproxima pessoas que normalmente não se relacionariam, sempre atraiu e habitou o imaginário de H., quase como uma espécie de fetichismo. No apagão aéreo, três anos antes, passara uma noite inteira com desconhecidos, no Aeroporto da Pampulha, em Belo Horizonte, tendo de dormir nos bancos, comer sentado no chão e aquela coisa toda. Ouvia as pessoas protestando: isso é um absurdo!, nós não somos palhaços!, exigimos uma solução definitiva! Juntava-se a elas e proferia toda sorte de reclamações. Que não eram sinceras, na verdade. Por ele, que aquilo tudo durasse até um pouquinho mais. Se gostava de apagões? Não. Gostava da integração peculiar que esse tipo de circunstância proporcionava, acabando com a distância entre ele e as outras pessoas. E melhor: pessoas que não se conheciam ou não se relacionavam. H. era do tipo que gostaria de ter vivido uma situação como a do seriado Lost, caindo com um avião repleto de desconhecidos em uma ilha deserta; era do tipo que gostaria de ter namorado com uma mulher que teria conhecido ao ficarem presos no elevador. Dizia a seus alunos "que são as experiências novas que alimentam o espírito", frase que certa vez ouviu num filme, mas que não fazia esforço por seguir - gostava das experiências novas que se impunham a ele.

Chegou à portaria. O barulho das pessoas falando e uma luz inconstante vermelha, vindo da rua e adentrando a portaria, chamaram sua atenção. Era a luz de um carro de polícia. Perguntou para uma vizinha, uma velha baixinha, daquelas que sabem de tudo que se passa no prédio, o que havia acontecido: um morador chegava no edifício quando foi assaltado. Os ladrões, assustados ao perceberem a lanterna do porteiro, atiraram e correram. A bala foi na parede. Nada aconteceu. Durante mais alguns minutos, a polícia ficou ali coletando informações do porteiro. A maioria das pessoas - umas 20, talvez - continuava no hall do edifício. H. espreitava as conversas. Um vizinho disse ter ouvido no rádio de pilha que a energia poderia demorar dias a voltar, devido a "queda de umas torre em Foz do Iguaçu". Outra, disse que sempre suspeitou que o rapaz que sofrera a tentativa de assalto traficava drogas de dentro do prédio, e que aquilo era "coisa encomendada, briga de traficante". A polícia foi embora, enquanto os moradores iam voltando aos poucos para seus apartamentos. A dispersão foi razoavelmente lenta, pois muitos estavam conversando. Reclamando, na verdade, junto à síndica: o recém instalado novo sistema de lâmpadas de emergência dos corredores e das escadas, pelo qual todos haviam pago, não funcionara. H., dessa vez, não prestou muita atenção: ficou de conversa com o porteiro, com quem gostava de falar sobre futebol. O hall foi se esvaziando cada vez mais, já alta madrugada.

Por fim, H. estava só com o porteiro. Resolveu ir dormir. Despediu-se e seguiu em sua jornada, subindo degraus e tateando o desconhecido, pelas escadas e corredores vazias, amendrontadoramente silenciosas e escuras. O porteiro havia oferecido uma lanterna, mas H. disse que aquilo era frescura. O porteiro o olhou como se ele fosse um imbecil. Quando estava no terceiro andar, H. passou a ouvir sons de madeira, secos e contínuos, vindos de baixo, ecoando pelo corredor. Parou. Ouviu com atenção. O barulho ficava cada vez mais próximo e nítido. Era alguém caminhando, subindo as escadas. A julgar pelo som, provavelmente uma mulher de salto alto. Era uma situação parecida com a de conhecer uma mulher em um elevador parado. Como não tinha nada a perder, resolveu parar e esperar a pessoa aparecer, sabe-se lá por quê. Não sem, contudo, ficar nervoso. O som da batida do salto no chão - agora já não há mais dúvida -, a medida em que se tornava mais alto e nítido, acelerava as batidas do coração de H. Ele a esperava na bifurcação da escada, na altura do terceiro andar. Viu surgir uma fraca luz. H. parou de costas: teve medo de se identificar, julgando que assim poderia ficar envergonhado e perder uma oportunidade daquelas. Percebeu a luz se aproximando ainda mais. Ao fazer a curva na escada, a mulher topou em H., tomando um susto. A luz era de um celular que a guiava e que acabou caindo no chão, deixando-os no mais completo escuro. H. sentiu aquele corpo magro de mulher batendo nele e, tomado de coragem devido ao anonimato, seduzido pela situação, virou-se, puxou-a para si com força (decidido, pois sabia que se não agisse impetuosamente daria para trás) e a beijou. Para sua surpresa, a desconhecida correspondeu a suas investidas, demonstrando tanto ardor quanto ele. Beijavam-se, agarravam-se, respiravam um o outro. H. passava as mãos no corpo dela de forma dura, quase como um animal. Ela, que estava completamente pressionada, quase amalgamada à parede, puxava-o, mesmo assim, para junto de si, como se eles pudessem se unir em um só, como se o abraço (ou o amasso) mais apertado não fosse o bastante.

Aquela situação toda poderia ter feito com que ele pensasse em Platão, na alegoria da caverna - a origem da famosa simbologia entre luz e razão. A escuridão, a falta de luz, foi a oportunidade para que ele deixasse de lado o que a civilização nos impõe e agisse instintivamente, de forma totalmente inadequada para o que se espera da conduta de um respeitado professor universitário. Poderia, também, ter tentado imaginar quem seria a misteriosa devassa da escuridão. Teria pensado em uma nova vizinha, recentemente jovem (conseguira perceber que era aparentemente jovem, a moça do corredor), que tinha se mudado havia pouco tempo, recém casada, e que ele a havia flagrado lançando olhares convidativos - ou ao menos assim entendera, o professor. Poderia ter pensado nessas coisas. Mas não pensou. E alguém pensaria? Aliás, com o sangue disponível para circulação em seu cérebro, naquele momento, não conseguiria nem jogar o Jogo da Velha. Não pensou em nada.

Mordia os seios da moça, por cima da blusa. Ela, já em frêmitos, gemia suavemente, quando sentiu a mão de H. deslizar pelo seu corpo hirto até chegar à sua calça jeans. Ele, trêmulo mas decidido, tentava abrir-lhe a calça. Foi nesse momento que tudo aconteceu. Ouviu-se um estalo anunciando a volta da luz. Se houvesse tempo para se assustar, os dois amantes anônimos certamente se assustariam, afinal, não tinham como saber o que veriam, e sabiam que aquele momento era fatídico, quisessem ou não. A verdade é que aquela ocasião incrível, única, ímpar, acabaria quando a luz voltasse. O fim daquilo tudo poderia ser encarado como uma tragédia, pois se tratava do fim de um evento mágico. Mas, pelo contrário, talvez a luz, naquele exato momento, os tenha salvo da mais completa desgraça, mesmo lhes trazendo a visão das trevas. Certamente nem eu nem quem me lê poderia imaginar a cena que vou descrever: tente visualizar um rosto pálido, assustado, congelado, de um homem que enxerga na sua frente - encostada em si com a blusa aberta, a boca vermelha e inchada, os olhos duros, envergonhados, incrédulos - a expressão pétrea e trágica, enfim, da própria filha.
 
esse é meu primeiro e único texto de ficção, escrito em seguida daquele apagão que rolou em vários estados brasileiros no segundo semestre do ano passado. nunca me senti impelido por escrever, por isso não tenho esse hábito - embora seja um leitor bem razoável. também não fiquei satisfeito com o resultado (principalmente em relação aos dois últimos parágrafos), e talvez por isso não tenha ido adiante.

mas, por algum motivo, ao me deparar com esse fórum, tive vontade de ser lido. sei que não sou bom como alguns que li aqui, nem quero comentários piedosos. só quis ser lido, sei lá pq.

caso alguém venha a ler, agradecerei.

abs.
 
legal, rodrigo. é o tipo de texto q curto, bem escrito e com uma boa dose de imaginação e mistério. vc se diz somenet 1 leitor razoável, mas saiba q todos os bons leitores se fazem escritores por evolução. espero q continue a escrever.

qto aos 2§§ finais, eles concluem bem o texto, embora eu já suspeitasse oq aconteceria, um pouco pelo clima q vc criou desde o 1º§, um pouco por tb eu ser um leitor razoável... acho q eu só me surpreenderia se ñ fosse a filha, talvez a amiga dela, ou se h. ainda nos amassos se tocasse q poderia ser ela e ficasse de consciência pesada (sendo q depois constataria q ñ era a filha). mas aí acho q perderia um pouco a graça do teu escrito.
 
Ficou muito bom. Como o Jefferson disse, consegui deduzir o final, mas a maneira como você escreveu me prendeu bastante. Acho que vc deveria continuar escrevendo.
 
Muito bacana seu texto. Realmente já nos últimos parágrafos a gente consegue já antever o final, mas mesmo assim, é bem impressionante a situação...
Parabéns! Foi um excelente começo! Continue escrevendo! =D
 
Realmente muito bom! Você escreve bem, Rodrigo. E entendo essa idéia de querer ser lido. Não sou um "escritor", também, mas as vezes sinto essa vontade de escrever algumas coisas (mas não muito boas).

Continue escrevendo. =)
 
muito obrigado a todos que foram generosos lendo e comentando. confesso que postei esse aqui e "esqueci". (vi agora, no histórico, e tive de voltar pra agradecer.)
 

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