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[L] [Largo Cavafundo][Vaeklan, as novas terras]

[Largo Cavafundo][Vaeklan, as novas terras]

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Uma visita ao pôr-do-Sol

Maedhur, filho de Maèzil, era um Rei muito apegado às tradições de seu povo, gostava de fazer festas e de se juntar com os amigos e família, e sabia governar seu povo com desempenho e muito amor.
Foi no ano em que ele fez cento e trinta e quatro anos (sendo quarenta deles no poder), que nasceu seu filho, para o qual a Rainha deu o nome Famïgèll, o mesmo nome de seu pai, o antigo governante.
A criança cresceu muito feliz, vivendo no grande Palácio Branco, na cidade conhecida como Glanúk-ë, o centro político daquele pequeno reino. Seus cabelos loiros como os da mãe desciam lisos e brilhantes até a altura do queixo. Seus olhos eram profundos e castanhos, como os do pai, e a face lembrava a de um jovem élfico, pois sua família era a que mais tinha deste sangue nas veias, entre todos os Paladi.
Se você já ouviu falar de Elfos, sabe sobre sua beleza e sabedoria. Se conhece os Homens, sabe que estes são fortes e rebeldes. Muitas outras raças existem cujos indivíduos são capazes de decidir suas próprias vidas, e por isso são chamadas "livres". Mas um destes povos chama a atenção. São chamados rudemente, na língua dos Homens, de Deé Nûn, "os sem-raça". Para eles próprios, são os Paladi, "os mestiços".
São filhos de uniões entre as diversas raças pensantes, especialmente Homens e Elfos, o que criou suas características básicas: pele clara, músculos fortes, olhos azul-acinzentados, estatura alta, cabelos lisos e compridos e mente rebelde.
Outras raças traziam para cada família características únicas e às vezes peculiares: barbas longas e embaraçadas de Anões; ou narizes tortos, pequenos e achatados, provenientes de Ogros. Raças antigas e já extintas deixaram neste povo seu sangue, mas suas heranças poucas vezes eram percebidas ou identificadas, embora sem dúvidas estivessem presentes.
Esta mistura contribuiu para que os Paladi tivessem um tempo de vida consideravelmente longo, de trezentos até quatrocentos anos (quando não eram atingidos por doença, já que lá a guerra não chegava), sendo que um palad de cem anos teria o corpo de um humano de pouco mais de sessenta anos.
Nos dias em que os acontecimentos desta história se passaram, os Paladi moravam escondidos do olhar das outras raças, no sudeste do continente ocidental, Eley Bravi ("grande ilha", provavelmente no idioma dos antigos elfos das Terras Ermas), em cidades em torno do Grande Rio Nòü, "o água-longa", e seus afluentes. As principais cidades do reino eram Varisté, Hav ge Dan - uma ilha no rio Throä-csi, - aquele que o mar devora - e Glanúk-ë.

Num fim de tarde, no final do ano de 3916 da contagem dos Paladi, chegou ao palácio uma velha. Ela acertava o mármore do portão com uma bengala, pedindo para entrar, e ao não receber resposta alguma começou a dizer palavras de bruxaria, amaldiçoando todos que nele estavam. Suas vestes, escuras, estavam rasgadas, e seus longos cabelos brancos estavam embaraçados e sujos. Ao lado dela uma figura alta vestida de cinza estava de pé, sem falar nada ou se mexer. Era um homem, também muito velho, com cabelos e barba lisos e brancos, compridíssimos, chegando até a cintura. Se apoiava numa bengala rusticamente esculpida em madeira escura, porém não parecia precisar dela, pois, embora velho, tinha o corpo forte e sadio.
Diante dos dois, as portas se abriram, e guardas vestindo uniformes azuis agarraram brutamente a senhora pelo braço e ordenaram que falasse seu nome e o do senhor ao seu lado.
- Não se lembram de mim? - ela respondeu, num tom de voz agressivo, enquanto o velho ficava calado - Esquecem-se rapidamente de um rosto, até mesmo de alguém importante. Pois sou a mãe da mulher que governa seu povo, e antes dela eu lhes dava ordens, já que era a Rainha deste reino. Deixem-me entrar e preparem em um quarto um banho e uma cama para mim, pois sou Karëi, a viúva de Famïgèll, o primeiro! Porém não sei de quem falam, pois aqui eu estou só.
Então os guardas perceberam que realmente não havia mais ninguém no grande pátio branco. O velho sumira sem deixar rastro, e os guardas, confusos, o tomaram por miragem, ou por algum mendigo que apenas passava e parou para assistir tão raro acontecimento.

É claro que o escândalo feito pela mulher foi ouvido e assistido por todos no palácio, e chegou aos ouvidos do jovem Famïgèll, que na época tinha quatorze anos. Isso fez sua curiosidade ser despertada, pois ele nunca vira a avó, e todos no reino diziam (ou pelo menos pensavam) que ela era uma bruxa, mulheres de pouca ou nenhuma boa fama naquelas regiões.
Este boato era com certeza uma verdade, e isso não era negado pela própria mulher. Esta tinha a pele enrugada, era baixa, gorda e tinha os olhos do mesmo tom de verde dos da Rainha, que se assemelhava a ela em muitas coisas mais, em quase tudo, na verdade, porém nunca no comportamento altivo e egoísta, já que a mãe do jovem príncipe era dócil e gentil. Mas a senhora não era uma palad, mas pertencia à raça dos Homens que viviam à Oeste daquele Reino. Tinha cento e vinte anos e tinha uma grande sabedoria, embora dificilmente sabia usá-la.
O fato é que o jovem saiu de seu quarto e desceu as escadas até o andar em que ficavam os quartos de hóspedes. Escondido, entrou no aposento onde estava a velha, mas não a encontrou em lugar algum.
O quarto estava escuro, pois já começara a noite. Só era iluminado por uma vela azul. Além da cama, do criado-mudo, e da cômoda; só havia a sacola negra da mulher, no chão. Tomado pela curiosidade, o príncipe caminhou silenciosamente até o tapete vermelho, ajoelhou-se no centro, alcançou a bolsa e, com cuidado, abriu-a.
De dentro da bolsa saíram morcegos negros, voando, e ratos correndo para todos os cantos, subindo pelas pernas do garoto e entrando em suas mangas e saindo pela abertura das roupas no pescoço. Um morcego bateu a asa na vela, que caiu e se apagou, deixando o quarto como breu. No escuro, sentir os ratos correndo pela pele gelou a espinha do jovem mais do que qualquer coisa. Os barulhos das asas dos morcegos voando ao lado de sua cabeça ecoavam, e meia dúzia destes animais pareciam dezenas.
O quarto, totalmente fechado, ficava cada vez mais quente, e Famïgèll estava ficando cansado, por estar se contorcendo rapidamente para tentar expulsar os animais. Lágrimas escorriam pelo seu rosto, mas ele não ousava fazer barulhos, temendo que a velha o descobrisse ali. Porém um rato especialmente grande chegou à nuca do garoto, e o mordeu com toda a força, até que o garoto gritou tão alto que o palácio inteiro ouviu, e seu eco atemorizou a todos.
Em menos de meio minuto a velha escancarou a porta e livrou-se dos morcegos e ratos apenas usando palavras, faladas em línguas desconhecidas pelo jovem e por todos os outros que foram até o quarto, inclusive a Rainha.
Mas o rato que mordia o jovem ela não conseguiu tirar, ou não quis, e sangue sujou o chão de pedra. Então um criado pegou o roedor e com uma pequena adaga o matou rapidamente.

À mesa de jantar, naquele dia, todos estavam em silêncio. O Rei não sabia o que pensar, pois não presenciara a cena, mas sempre temera a mulher. A Rainha culpava a mãe, por carregar aqueles animais para dentro da casa. A velha estava, como sempre, brava, até que com razão, porque o garoto havia mexido em seus pertences, e o garoto ainda gemia de dor, apoiando a mão no curativo feito na nuca.
A noite seguiu assim, todos constrangidos ou bravos uns com os outros. Mas foi depois que o jovem foi deitar-se que ocorreu o que gerou toda a confusão que esta história conta.
Ora, se você nunca viu uma bruxa velha brava, nem queira ver, pois elas podem ser terríveis como a noite, e vingativas também. E, perto da sexta hora depois do pôr-do-Sol, ela se sentou ao lado do Rei, e começou a falar-lhe coisas, colocar idéias em sua cabeça, idéias de ódio e maldição, e idéias contra seu filho.
Ah, se aquela mulher sabia fazer algo bem era falar. E demoraram apenas algumas horas para transformar amor em ódio, ou medo talvez, e para convencer um Rei de que seu próprio filho representava um horrível futuro para ele, e de que o melhor seria matá-lo.
A magia daquela velha ficou morando na mente daquele homem que, apesar de poderoso, era supersticioso, e não deixava azar algum aproximar-se dele.
A velha foi embora, um mês se passou, e o Inverno acabou junto com o ano antes que ele conseguisse pensar no que fazer. Por fim ele avisou a mulher que no final do mês seguinte Famïgèll haveria de ser morto secretamente.
E, que desgraça, aquele mês de primavera, um dos mais vivos e cheios de cor que aquele reino já teve, passou triste e cinzento para a Rainha. E proibida ela foi de falar com o filho ou com ninguém, e um jovem foi chamado ao palácio para executar o trabalho.
Ele levaria o príncipe até um lago distante para que eles nadassem, e lá ele o afogaria e o deixaria na água, que era funda o suficiente para a terra lá em baixo não ser vista.
Mas a Rainha, por não agüentar a dor que seu coração sentia, um dia falou com seu filho, e avisou-lhe sobre o que aconteceria. Porém o tempo que havia antes do terrível dia era curto, não mais de uma semana.

No dia seguinte, uma criada foi acordar o jovem, que ainda estava na cama depois de passada a segunda hora desde o nascer do Sol. Mas a cama estava arrumada, e em lugar nenhum do aposento estava o garoto. E no castelo inteiro não se via sinal algum de sua passagem, e nem nas redondezas.
Então o Rei acordou da confusão de sua mente, e livre da magia ele estava. Odiava-se por ter ouvido aquela mulher horrível, e chorava por seu filho. E junto com ele chorou a rainha, e todos no palácio logo choravam, e a cidade inteira e o Reino todo lamentaram. Buscas foram feitas durante todo o fim da Primavera, e depois no Verão, mas nunca mais o Rei teve notícias de seu filho, e sua vida dali em diante foi amarga e sem sentido.
O que aconteceu na noite anterior é confuso, e o próprio garoto demorou para lembrar. Tudo o que o jovem pôde fazer foi esperar o Sol se pôr, e correr escondido e cego, na escuridão que havia na cidade naquela noite sem Lua.
Sem poder ver nada, o garoto correu com toda a velocidade que tinha, entrou no bosque ao lado do castelo, e após ter percorrido cerca de uma milha e meia, ele parou e se deitou exausto, já fora dos limites de Glanúk-ë (embora ele não sabia disso).
E seu corpo dormiu, e curou-se do cansaço, mas os pensamentos do príncipe acordados ficaram, mas estavam confusos e tinham perguntas sem resposta.

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Vai o barril

No pequeno porto de Nòüfah; uma cidadezinha calma, à beira de um bosque, no reino habitado pelos Paladi, no encontro entre os rios Nòü e aquele conhecido como "O Azul"; a pressa dominava todos os trabalhadores, que passavam rapidamente levando mercadorias de um lado pro outro. Naquele lugar chegavam por barco comidas, jóias e tudo o mais que deveria chegar em Glanúk-ë.
O fato é que a cidade tinha uma importância comercial extrema: nela atracavam os barcos que carregavam mercadorias indo para a capital do reino. Ela possuía um grande porto, construído antes do avô do avô do avô do mais velho habitante da cidade nascer.

Ora, aquela cidade já fora grande e bela em seu Apogeu, e fora também a capital do reino que, na época, era pequeno e novo, tendo acabado de ser criado por alguns meio-elfos e ogros que haviam sido expulsos de suas moradas por causa do preconceito de povos que acreditavam que pureza no coração era pureza no sangue, e que muitas vezes também pensavam que outras raças eram inferiores.
Muitas tempestades, noites e dias haviam se passado desde então, e a cidade fora parcialmente destruída, sobrando apenas menos metade do grande porto e um pouco mais de um quarto da cidade, que antes tinha a mesma área que este; por causa disso o palácio foi demolido, e um novo foi construído em Glanúk-ë.
O lugar onde as pessoas moravam era um pouco afastado do porto, e entre os dois ficava o grande centro comercial, que abria às quintas-feiras, dia em que todos da cidade saiam fazer compras, principalmente comida, e por isso ficava cheio de gente, gritando e se empurrando para conseguir os legumes mais frescos e as maçãs mais vermelhas. Às sextas-feiras, o lugar era evitado pelos moradores, que faziam a volta por pequenas ruelas, enquanto servidores do líder da cidade limpavam o lugar que sempre ficava sujo e com um odor nauseante.
As paredes das casas eram feitas com pedras ou tijolos feitos de barro alaranjado, e às vezes pintadas com tintas naturais, pois naquele tempo não existia nada dessas modernidades que estamos acostumados. As telhas eram marrons, algumas avermelhadas, e as janelas tinham pedaços de madeira como molduras para quadros. Nelas moravam famílias das mais ricas às mais pobres, pois eram confortáveis e ninguém tinha por que reclamar delas.
Somente uma casa era diferente: no final da área residencial, no ponto mais afastado do porto, ficava uma grande mansão branca, com dois andares e um telhado feito de telhas vermelhas, feitas do barro do Nòü. Nela morava o Senhor da cidade, um nobre indicado pelo Rei para governar Nòüfah segundo suas leis. Suas despesas seriam bancadas pela Coroa enquanto ele fosse um líder justo e sábio.

Naquela manhã do segundo mês do ano de 3928, um grande carregamento de vinho tinto, vindo de Varisté, a cidade mais rica do reino, chegara num barco de madeira clara. Como deveria chegar antes do pôr-do-Sol do dia seguinte em Glanúk-ë, eles deveriam mandá-lo antes do meio-dia, e isso significava muito trabalho e muito rápido.
Os trabalhadores já estavam cansados, pois os barris eram pesados, já que estavam endereçados para o Rei Maedhur, um grande apreciador de vinhos. De longe se ouvia a canção que eles cantavam para passar o tempo e para fazer o trabalho parecer menos duro. Esta foi esquecida em sua forma original, mas era mais ou menos assim:

De um lado pro outro vai o barril,
Nenhum está leve, nenhum está vazio.
Pesados e grandes, cheios de vinho,
Devemos deixá-los além do moinho.
Rápido, rápido, não pode atrasar,
Pois este vinho é para o Rei degustar.
Estamos atrasados, devemos nos apressar.
Trabalhe, trabalhe! Não pode parar!

Já é meio-dia, não vai dar tempo,
Melhor ir andando, melhor ir correndo!
Este vinho não pode parar,
Já foram muitos anos para fermentar!

Sem descansar, depressa os levamos
E tudo que fazemos é carregar.
Exaustos, gemendo, sofrendo, suamos,
Depressa, depressa! Sem descansar!


Eles continuavam cantando essas mesmas estrofes, e realmente ajudava a relaxar e esquecer o trabalho, embora a música se tratava disto mesmo.
Entre os carregadores da mercadoria, geralmente com cerca de cinqüenta anos, havia um jovem de apenas vinte e cinco anos - o que corresponderia a menos de dezessete para um Homem mortal. Era belo demais para um carregador de mercadorias num porto: lembrava até um senhor élfico entre os outros homens. Seus cabelos loiros estavam presos em um rabo-de-cavalo, e chegavam até o meio de suas costas. Seus olhos castanhos eram belos e brilhantes como duas pedras preciosas incrustadas num rosto claro (mas não pálido), e ele era alto e forte como um dos grandes reis que, no passado, governaram os Mortais.
Nas costas carregava um grande barril de vinho da melhor qualidade, que ele apoiava com os braços fortes. Suas roupas eram simples: uma calça preta, já um pouco rasgada, e um colete avermelhado. Em sua testa gotas de suor escorriam, por causa do grande esforço, mas também por causa do calor intenso que fazia em todo o reino, que ficava ao sul de um enorme deserto. Ele pegava os barris de dentro do barco élfico e os colocava na embarcação que os levaria, junto com carnes e frutas, para o seu destino.
Muitas pessoas da cidade, especialmente as que moravam mais perto do rio e do porto, se perguntavam o que uma pessoa jovem assim estaria fazendo trabalhando pesado, em vez de estar em casa com um professor, aprendendo sobre a história do mundo e de seus ancestrais. Se perguntando por que ele não estava se divertindo com os amigos, e por que ele não estava sentado na cama comendo um bolo feito por sua mãe.
O fato é que ele não tinha uma mãe, ou um professor, muito menos casa e amigos. Seu nome era Bagén, "filho de ninguém" em antigo Élfico, ou pelo menos assim ele se apresentava para todos.
Mesmo sem ter tido uma educação pelo menos desde os quinze anos, quando ele chegou sozinho à cidade, ele sabia ler e escrever em Palaim, Élfico Novo e Antigo, na língua geral (a dos Humanos) e na dos Anões; e tinha noções básicas de Geografia e História. Isso era um currículo invejável até mesmo para alguém que estudara vinte e oito anos, o máximo que um Palad estudava, e que deixava os habitantes da cidade bastante assustados. Mas infelizmente ele não tinha como usar esse conhecimento, e provavelmente não fazia questão disso.
Bagén morava numa cabana abandonada cerca de meio quilômetro dentro do velho bosque, feita de madeira tirada das árvores que foram derrubadas para dar lugar à casa. Era uma moradia pequena, suja e desconfortável, e em época de chuva as paredes rústicas não impediam a água de entrar em abundância.
Trabalhava no porto, sempre carregando mercadorias, desde que chegara à cidade, e só assim conseguia comer e, quando necessário, comprar roupas.
Em fim, sua vida era extremamente desconfortável, e ele nunca saía da rotina: acordar ao nascer do Sol, comer apenas pão, ir para o trabalho (onde ele almoçava cereais e carne de pouca qualidade ou sabor, de graça), voltar para casa depois da terceira hora desde o pôr-do-Sol e dormir após beber um copo de leite (não tinha nem como esquentar). Uma vez por semana, geralmente aos domingos, antes ou depois do trabalho, ele se banhava num pequeno lago dentro do bosque.
De todas as pessoas da cidade, ele só conversava com uma: seu nome era Jäsd, filho de Järg, e ele era um companheiro de trabalho de Bagén, no porto. Jäsd tinha cerca de sessenta anos (o que corresponde a quarenta anos para o corpo de nós, mortais), tinha um corpo forte e grande - cerca de dois metros de altura - e uma barba volumosa, ondulada e ruiva (assim como seus cabelos), herdada da família do pai do pai do pai de sua mãe. Seus olhos eram acinzentados e sua pele vermelha e enrugada.
Eles eram amigos desde que Bagén chegou ao porto, uma criança ainda, procurando um jeito de conseguir dinheiro para comprar comida. Jäsd foi a pessoa que conseguiu um emprego para Bagén com seu chefe, um velho chamado Ruivilás, temido por todos no lugar, e também odiado, por ser severo como uma tempestade, e extremamente rude com seus empregados. Era consideravelmente rico, quase tanto quanto Jòrine, o Senhor de Nòüfah.
Jäsd também foi a pessoa que arranjou a casa na floresta para o garoto, e eles costumavam conversar alegremente sob as árvores, nas redondezas da casa do jovem, enquanto bebiam cerveja e, às vezes, comiam um pedaço de pão, sempre trazido pelo mais velho, já que o dinheiro que Bagén ganhava pelo trabalho era muito menos que o ganhado pelos outros.

Sobre o passado de Bagén, nenhum dos habitantes da cidade sabia (nem mesmo Jäsd), e o próprio jovem não gostava de lembrar, pois era uma história cheia de dor e angústia, além de mágoas que certas pessoas prefeririam ter esquecido.
Fechado o garoto era, mas não queria ninguém mal, e isso fazia questão de provar. Sua generosidade sempre se mostrara, pois ele ajudava quem precisasse, embora soubesse que ele próprio necessitava ajuda.
Em fim, a vida de Bagén em Nòüfah era desconfortável materialmente falando, mas ele tinha a mente pura, e seu relacionamento com Jäsd ajudara a fazer tudo menos insuportável durante mais de dez anos.

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Um barco no porto

No meio do ano seguinte, 3929, correu pela cidadezinha um boato. Dizia-se que um grupo de navegadores sairiam do porto, desceriam o Nòü e iriam para o Leste, atravessando o grande oceano, procurando pelas terras do outro lado.
Poucos dias se passaram antes que o boato se provasse realidade, e comentários eram feitos pela cidade inteira, e por outras cidades do reino também. No porto não se falava de outra coisa. Diziam que quem quisesse ir junto no barco poderia, só precisaria apresentar-se numa cabana ao lado do portão Sul.
Com o tempo, Jäsd começou a ficar interessado. Parava para olhar as pessoas preparando a viagem, lia todos os anúncios deixados no porto, ouvia quem quer que tivesse algo para falar sobre o assunto. Já ficara amigo de um dos marinheiro que fariam a travessia.
Bagén notara isto, mas tentava não comentar. Não queria ir na viagem e nem queria que seu colega fosse, pois temia por ele. Mas é difícil não comentar algo que está em todo lugar, e um dia aconteceu.

Jäsd acompanhava Bagén em seu caminho para casa, mas eles nem haviam saído do porto quando o primeiro parou. Seu olhar se direcionava à uma cabana com janelas que mostravam que as velas estavam acesas (tochas não eram usadas em lugares pequenos assim). De dentro uma música calma e harmoniosa saía. O cheiro que eles sentiram era de comida, provavelmente uma ave assada.
Ora, os dois sabiam o que estava acontecendo lá dentro. Era um encontro daqueles que em menos de um mês estariam partindo para o Leste. Bagén olhou para seu colega. Em seus olhos, um sentimento de tristeza era visível.
Jäsd queria ir. Ele sentira essa vontade desde a primeira vez em que ouvira falar do assunto. Não agüentando mais, ele falou:
-Eu vou. Não posso mais fingir que não quero.
-Por que quer ir? Essa viagem é perigosa demais! Não há terra alguma à Leste. O que você quer fazer é morrer! Não seja tolo! Você vai navegar e achar apenas o seu fim.
-Eu acredito nas terras à Oeste. Se não houvesse nenhum lugar além do Mar, não existiriam anões que possam ser meus ancestrais. Aqui em Eley Bravi não existem anões do povo do qual o pai do pai do meu pai veio. Os anões daqui são cruéis e não fazem amizade com outras raças.
-Bobagem! Desista desta idéia absurda! Não procure a Morte se não deseja encontrá-la! Seja grato pelo que tem, se não deseja perder isso.

O assunto não foi comentado mais por eles durante semanas. Na verdade, eles quase não se falaram, pois quase não se viam mais. No trabalho, foram separados, Jäsd ajudava a preparar um barco para a grande viagem, enquanto Bagén continuava levando mercadorias de um lado para o outro, para navios indo para a capital.
O fato é que o tempo correu depressa e quando Bagén pôs-se a pensar sobre o assunto o Sol já se punha e a noite começava na véspera da partida. O rapaz estava sentado sobre um velho tronco oco, observando a cabana.
A música era ainda mais alegre, e o aroma mais convidativo. Jäsd estava lá. Ele entrara pouco depois de Bagén chegar. De vez em quando sua risada podia ser ouvida, alta e clara. Bagén não sabia o que fazer, gostava demais do amigo e não queria que ele se fosse, pois temia por ele e por si próprio: sabia que sentiria sua falta.
Se levantou. Uma parte dele o mandava ir para casa, não devía se arriscar. Mas a outra era mais forte. Bagén andou vagarosamente até a porta. Olhou para a maçaneta de ferro por alguns momentos. Repousou sua mão na madeira fria. Girou-a e entrou.
A música parou. As pessoas pararam. O único movimento que se via era o do fogo na lareira. Bagén tinha pensado várias coisas para falar, mas agora não conseguia dizer nem um "olá". Quem se moveu primeiro foi um homem de cerca de oitenta anos. Ele era o capitão.
-Boa noite! - disse ele - O que faz aqui? Veio apenas ver ou pedir algo para comer? Amanhã saímos em viagem, não se demore se não for importante, hoje devemos estar prontos!
-Eu vim para perguntar se posso ir junto com vocês. - Bagén falou, surpreendendo a si mesmo. Os olhos de Jäsd estavam arregalados, mas sua boca sorria.
-Bem, o tempo é curto. Já tem suas coisas empacotadas? Se sim, trague-as e colocaremos-nas no barco agora mesmo. Sempre tem uma vaga numa viagem no Mar, mas deve estar disposto a limpar o chão e lavar a louça e roupas, pois todos os postos mais importantes já foram preenchidos.
-Não preciso de malas, pois não tenho pertences. Estou livre para partir assim que o Sol nascer. Nenhum trabalho é indigno e não se arrependerão de me confiar o cargo.
-Ora, então chega de palavras, junte-se a nós, há sempre comida para mais um!
Eles festejaram durante horas. O vinho só não era melhor que a cerveja, e todos tinham uma caneca para cada uma das bebidas em frente ao prato. Um porco assado era devorado, os talheres limpos e intocados. O fogo era aconchegante e iluminava o interior do lugar bem, fazendo as velas ficarem inúteis.
Bagén estava feliz. Fazia tempo, mais de uma década, desde a última vez que festejara. A comida era a melhor que ele lembrava de ter comido, e o vinho o deixava leve.
E depois do jantar eles se sentaram em cadeiras confortáveis, e alguns se apoiaram no chão mesmo, às vezes usando almofadas vermelhas. E mais lenha foi posta na lareira, e mais vinho foi servido (aquele povo gostava dessa bebida). E a conversa era alegre, e o peso da preocupação com a viagem havia desaparecido em suas faces, mas ainda estava em seus corações. Foi nessa hora que Bagén notou num canto um velho.
Tinha cabelos e barba lisos e brancos, chegando até a cintura. Segurava uma bengala de madeira escura, e seus trajes eram longos, como uma batina, com tecido acinzentado. Ora, aquele velho não era ninguém menos que o senhor misterioso que aparecera na porta do palácio de Glanúk-ë tão repentinamente quanto desaparecera. E Bagén o reconheceu, mas olhando em volta, viu que ninguém parecia notá-lo, como se ele fosse uma peça de mobília esquecida num canto escuro.
O homem parecia refletir sobre assuntos mais importantes do que uma viagem. Mas por que homem? Se tinha algo que o senhor não era, era um homem. Mas também não era um palad, ou nenhum ser de uma raça que Bagén havia visto ou ouvido falar sobre, mesmo em livros.
Ele chegou perto. O homem fumava um cachimbo estranho: longo; mas com um fornilho pequeno, com a metade do tamanho normal. A erva que queimava produzia um odor agradável e calmante, mas Bagén não sabia o que era.
-Boa noite. - disse o velho (quando viu Bagén se aproximar), soltando uma baforada pela boca. A fumaça branca formava desenhos no ar e se dissipava.
-Com licença, senhor, posso lhe perguntar algo?
O homem fez sinal para ele continuar.
-Por acaso não esteve no Palácio há cerca de dez anos?- ninguém ouvia os dois conversando; se bem que, até esse ponto, não houvera conversa: o velho estava em silêncio.
Demorou um pouco antes da resposta (umas cinco baforadas):
-Pode ser. Estive em muitos lugares na minha vida, lugares que você nem pode imaginar. Passei por florestas, rios, montanhas e desertos, e conheci cada lugar que se tem para conhecer. Passei pelo frio do Norte e pelo calor do Oeste, e vi o luar em Ïlamnes, onde você nunca há de pisar.
-Fala de lugares cuja existência por mim é conhecida, mas do Leste não diz uma palavra. Então realmente não há nada além do mar? Então essa viagem será apenas morte?
-Não se precipite. Primeiramente responda se você acredita que as terras estão lá.
-Não sei. Estou indo nesta viagem apenas por causa de Jäsd. Temo que não valha a pena, se nós dois formos morrer...
-...é melhor ficar e deixá-lo encontrar o fim sozinho.
-Não! Nunca pensei nisto. Só desejava que Jäsd desistisse da idéia. Mas se ele não desistir eu ficarei com ele até o...
Para os dois, a cabana toda estava em silêncio. Porém, as canções e conversas alegres dos outros não pararam.
-O fim?
-Até a volta. Até a volta...
E Bagén voltou para junto dos outros, enquanto o velho continuava a fumar. Agora a grande maioria dos navegadores estava mais que bêbada. Alegremente, canções eram cantadas, ao som de harpas e flautas. As músicas eram às vezes alegres e dançantes, mas a que mais tocou o coração de Bagén era calma e harmoniosa, uma canção conhecida há tempos, ensinada aos Paladi pelos elfos no tempo em que aquele pequeno reino era jovem. O mais belo é escutar a melodia, de noite com os companheiros, mas só a letra aqui posso escrever:

Um barco no porto, sozinho,
Olha para o horizonte.
E o marinheiro tem em sua fronte
A expressão de quem respira o ar marinho.

Para o longe sua mente voando vai,
Para o destino que não é certo.
E o barco sai para o aberto
Mas a mente não se distrai.

O barco some de vista, desaparece.
Com ele, o homem levou,
Para o longe, destino indefinido.

Mas a volta não acontece.
Depois que um ano se passou.
Se chegou em algum lugar, é desconhecido.



Bagén acordou. Quando levantou, não percebeu nada familiar ao redor: era um cubículo de madeira com um banco duro ,onde ele estava deitado, e um criado-mudo onde estava apoiada uma vela apagada. Sentou. Sua cabeça doía, como se ele tivesse tomado vinte canecas de vinho na noite anterior. Então ele lembrou: ele tinha tomado vinte canecas de vinho, se não mais.
Percebeu um corpo jogado no chão. Ele fazia barulhos com sua boca e com seu estômago, chegando a assustar. O rosto estava amassado contra o chão, de modo que Bagén não conseguira descobrir quem era, o que foi por causa do sono ou algo assim, pois a barba ruiva saindo pelos lados do corpo enorme deixava tudo muito óbvio.
Bagén virou o corpo de barriga para cima com o pé. Era Jäsd, que continuava dormindo profundamente. O jovem ficou de pé e viu uma janela, o que o agradou, mas isso não ocorreu com o que ele viu pela janela: água. Só água. Ele saiu correndo pela porta, subiu um lance de escadas e descobriu: estava num barco.
Não, não um barco: o barco. Aquele barco feito de madeira tão clara que era quase branca. Aquele barco que estava no porto à duas semanas para ser carregado e preparado. Aquele barco que sairia no dia seguinte de ontem. Ainda havia tempo.
Mas a multidão gritava e aplaudia. Era hoje. Era hoje e agora! Então ele finalmente acordou. Era bom, pois agora sabia o que acontecia, mas sua cabeça doía mais e mais.
Ainda estavam ancorados. Na proa, o capitão falava alegremente para os que estavam no porto. Não havia mais como sair. Depois de um tempo um barulho de palmas e gritos encheu os ouvidos de Bagén.
Bagén sentiu um balanço estranho. Olhou para o casco do barco e viu a âncora sendo levantada. Olhou para o porto: ele ficava cada vez mais longe, até sumir de vista.

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Destinos

O velho porto havia sumido há menos de um dia quando Bagén começou a se sentir realmente arrependido de ter entrado na cabana. Já haviam saído para o oceano há algum tempo. O ar salgado do mar o deixava nauseado e a comida tinha gosto de lama (quando tinha gosto de algo).
Seu trabalho não era certo: quando havia algo que ninguém queria fazer era ele que resolvia o problema. Geralmente tinha muito o que fazer. Mas às vezes ele ficava só olhando o mar ou seus companheiros. Jäsd parecia feliz, e isso era a única coisa que o animava.

O jovem estava em seu quarto deitado, já haviam passado três horas desde o meio-dia. A porta estava aberta mostrando um corredor iluminado apenas pelo Sol passando por uma pequena fresta na porta acima das escadas. Estava cansado, pois acabara de limpar todas as janelas do barco, que era grande e tinha muitas delas. Não fazia nada além de ficar deitado olhando para cima (quem o visse mal podia dizer que pensava em algo).
Na porta alguém apareceu. Com o canto do olho Bagén viu quem era: o senhor com quem ele conversara na noite anterior. Ele se levantou imediatamente e fez um gesto para o homem se sentar: totalmente por educação, já que esse já se acomodara, no chão mesmo, e começara a fumar seu cachimbo.
-Não sabia que estaria no barco. - disse Bagén - Aliás, nem o seu nome eu sei.
-Meu nome? - ele respondeu - você não é o único que não sabe meu nome, eu mesmo raramente o ouço. Mas o que é isso com nomes? Por que dar nome para uma pessoa: será ela uma pessoa melhor (ou pior) por causa de como a chamam? Mas se vocês não sabem um nome o inventam, e para mim os Elfos inventaram Lávin, mas os Homens me chamam de Gèvräih. Outros nomes também recebi, mas são menos conhecidos e na maioria dos casos menos agradáveis. Você pode escolher um, se isso é tão necessário.
-Por que veio? Não disse ontem mesmo que já esteve em todo lugar?
-Posso garantir que não. O mundo é grande, e existem muitos lugares para se estar. Nunca estive nessa cama, por exemplo, e sei que a vista daí é totalmente diferente. - dizendo isso ele se levantou, e voltou a sentar, desta vez na cama - Mas sim, já estive em vários lugares, e o seu destino por mim é conhecido.
-Destino? Como assim? Para onde vou? Ainda não tenho certeza que esse barco vai chegar em lugar algum, além de no fim das águas, e no meu.
-Chegará, tenha certeza. Há menos de meia hora foram avistadas as terras de Fal Dsin e o barco está se direcionando para lá.
-Mas lá não devo ficar: jamais abandonarei Jäsd, e ele não ficará.
-Certamente não, mas este não será o último pedaço de terra que conhecerá antes de chegar ao seu destino.
-Esta palavra novamente. O que enfim é destino?
-A resposta para isto é muito acima de sua compreensão ou da de qualquer ser vivo sobre o Mundo. E mesmo que você se dispusesse a descobrir, não seria de mim, pois nem tudo é conhecido pelos sábios.
Um barulho foi ouvido. Um homem (Bagén achava que era o capitão) gritava chamando todos.
-Ajuda! Estamos chegando, venham ao convés!
Bagén subiu as escadas, deixando o velho sozinho em seu quarto. A menos de um quilômetro a ilha se estendia. O porto era maior que qualquer construção já vista por ele, desde que chegara em Nòüfah.
Os barcos eram grandes, mais até que o barco onde eles estavam. Via-se também uma montanha que ficava bem no meio da ilha, mas mesmo assim era vista (por ser alta como poucas montanhas que ficavam em ilhas).
Bagén viu o capitão gritando sem parar, com sua voz grossa e alta. Um homem chamado Kytwê ajudava a baixar a âncora. Jäsd estava baixando a vela. Bagén foi ajudá-lo.
Quando o barco estava parado, o capitão desceu e sumiu de vista, enquanto os outros ficavam no barco olhando a ilha. Bagén observou principalmente uma pessoa.
Era um sujeitinho estranho: alto e magro, poderia-se dizer esguio. Cabelos pretos ensebados, pouco volumosos e juntos à cabeça, a não ser na nuca, onde fazia uma volta. Seu olhos eram grandes e brilhantes como os de uma criança, e a pupila era grande e negra. Nestes, as veias saltavam com um vermelho vivo. A pele era acinzentada. Andava com a coluna torta, a cabeça inclinada para frente.
Era um dos meio-ogros, uma variação dos Paladi cujos membros tinham mais de metade do sangue escuro (pois assim é o sangue das criaturas negras), uma variação não muito considerada, e pouco respeitada. A criatura andava de um lado para o outro, e às vezes olhava para o barco.
O capitão voltou depois de quase cinco horas. Com ele vinha um homem que atraía olhares por onde passava, pois naquela ilha de mestiços ele era o único cujo sangue era puramente humano. Seus cabelos negros eram longos, seus olhos eram castanho-claros, sua pele branca como giz. Não era muito alto (para um Homem), talvez um metro e oitenta. Em torno do pescoço, uma corrente de prata segurando uma pequena pérola: uma pérola azul-céu, do tamanho de uma uva, perfeitamente redonda, e bela como o próprio mar e a própria Lua. No interior da pedra um calor parecia estar guardado, um calor vindo do interior do Mundo.
-Atälei moarní-ien. - o idioma era antigo élfico - Olá, meus amigos. Bem vindos à Fal Dsin. Meu nome é Fèlai Yëntaras, eu sou o senhor destas terras. Vocês ficarão em minha casa enquanto estão na ilha. Não se preocupem, há espaço de sobra.
A voz daquele homem era como o bater das ondas nas pedras, como o vento nas folhas de um coqueiro. Os marinheiros sussurravam entre si. Estavam contentes com a possibilidade de comerem bem e se deitarem confortavelmente à noite. Com a esperança de acordar tarde e não ter que limpar o chão e ouvir os gritos do capitão.
Depois de pegar roupas, todos os quinze, mais o capitão e Yëntaras, partiram para a casa no centro da ilha.
Andando pelas ruas, viam as casas, construídas com madeira forte de carvalho, com os telhados de folhas de bananeira presas em galhos.
Um povo alegre, aquele da ilha, mas tímido quando chegavam estranhos: as ruas estavam desertas e quietas, e não ouve outra pessoa para lhes dar as calorosas boas-vindas. Em seu sangue tinham forte influência dos Humanos (pois, ora, você deve saber bem que eles gostam de navegar quase tanto quanto os elfos), e muito pouca ou nenhuma dos Anões, pois estes eram seres que viviam em montanhas no interior do continente, odiando (ou temendo, não sei ao certo) o mar e os rios, conseguindo água de lagos lamacentos dentro das serras.

Na casa de Yëntaras, todos foram descansar nos três quartos, ou banhar-se em grandes tinas nas salas de banho, mas Bagén não. Andando em torno da enorme casa, construída com tijolos brancos, com o telhado prateado brilhando à lua da Lua, ele encontrou um lago. A água era cristalina e rasa, o fundo era revestido de pedras cinza-claras, de todos os tamanhos. O lago era rodeado de plantas verde-claras e altas como bambus, e nele mesmo flores flutuavam, azuis e lilases, e vitórias-régias enormes, grandes o suficiente para por mesas em cima, mas tão frágeis e leves que com um toque iam parar no lado oposto de onde estavam.
O jovem entrou, a água fria o cobriu até a altura do cotovelo. Entre suas pernas, pequenos peixes azuis nadavam rapidamente. Na margem, ele via sapos pulando. O barulho dos grilos, misturando-se com o coaxar e o som do vento nas folhas, deixava de ser irritante e formava uma música relaxante.
O aroma das flores era doce. O jovem entrou na água completamente, até estar com água por cima de sua cabeça. Os cabelos loiros agora não passavam do ombro, pois haviam sido cortados naquela noite antes da partida.
Com o som dos grilos, surgiu ao longe uma música bela, cantada por uma voz bela e suave, acompanhada pelo que parecia mil mulheres num coro lindo e solene. As palavras eram no mesmo Élfico falado pelo mestre da casa, mas sem o sotaque que os humanos têm. O começo da letra era assim:

Quando o Mundo era novo,
Quando a Terra era um só nó,
Num pequeno reino de Homens,
Vivia esta dama, tão só.
Rivíel, a jovem do lago,
Nas águas estava nadando
Naquele dia nublado
A noite estava esperando.
Mas ao longe, viu ela um rapaz
Que antes ela não conhecia
Seu cabelos loiros, compridos,
Ao vento balançavam
E seus olhos azuis, cor do céu
À beleza de Rivíel brilhavam
Mas em sua mão, uma espada...


Pouco Bagén entendeu; pois, embora falasse aquele tipo de Élfico, o domínio da língua que aquela voz que cantava tinha não podia ser visto em nenhum outro lugar, desde as primeiras eras do Mundo. Mas o que ele pôde traduzir ele escreveu, e era a conhecida história do amor de Rivíel e Æran nos tempos negros de Gwejérni.
Tanto tempo havia passado que a voz distante estava perto, mas ainda não visível. O jovem só teve tempo de nadar rapidamente para perto das plantas aquáticas e entre elas se esconder.
A voz veio, e junto com ela o coro que, para a surpresa de Bagén, não passava de duas donzelas, acompanhando aquela que fez o jovem ficar admirado como nunca tinha ficado antes. Ela era alta, cabelos negros, com flores coloridas o enfeitando, e olhos acinzentados. A pele era branca como a Lua, que agora nela brilhava mais do que em qualquer outro mortal ou deus. Seus pés descalços dançavam pela grama molhada agilmente, e em seu tornozelo havia uma corrente dourada. Suas vestes eram brancas, um vestido de mangas curtas que cobria a jovem até o joelho, e era largo, e voava com os movimentos graciosos que ela fazia ao redor do lago.
- Esconde-se de mim? O que temes?
Mas resposta não veio, pois o jovem estava paralisado com a beleza e graça daquela criatura. Todo o movimento q havia era um tremor, talvez causado pelo vento frio que bateu naquele momento, mas eu acredito que tenha sido de pura admiração.
-Tudo bem, já estou indo. - disse ela com um sorriso - mas vá logo, a ceia já começou a ser servida!
Ela abaixou e pôs a mão na água, como se para sentir a temperatura. Depois levantou-se, passou a mão molhada nos cabelos escuros e foi embora, seguida pelas duas donzelas que riam, cobrindo as bocas com as mãos.

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Fal Dsin

A mesa era provavelmente a maior que Bagén havia visto. Era coberta com uma toalha branca, bordada do começo ao fim formando desenhos de flores que só podiam ser encontradas nos lugares mais longínquos (mas que eram belas como o pôr-do-sol), e rodeada de linha prateada. Cerca de vinte cadeiras de madeira clara (provavelmente marfim) estavam em volta, todas ocupadas, exceto uma.
-Ah! Aí está você! - disse a voz macia de Yëntaras - vamos, sente-se para podermos começar!
Isso não parecia muito importante. Os únicos que não comiam eram os três na cabeça da mesa, que moravam na casa. Um dos marinheiros segurava uma gigantesca coxa de peru com as duas mãos, o nariz grudado na carne, Bagén não tinha certeza se ele respirava.
Bagén se sentou calmamente. Procurava a jovem entre os presentes, mas não conseguia encontrá-la, via somente os seus companheiros além do dono da casa. Estavam todos lá, mas muito diferentes: o suor e a sujeira não mais estavam presente. Ao lado de uma mulher desconhecida estava Lou. Depois os gêmeos Frenk e Ghenk. Também Tori, Swelë, Biomáas, Hein, que tinha olhos pequenos como cerejas, e Cät. Na outra cabeceira, o capitão Ver-Karas. E no outro lado Bagén, Jäsd ao lado dele, e Uhní, Breg, com suas grandes mãos morenas; Kitwê, Wonrë, Zayti e Rivor. Depois desse último estava alguém que o jovem não podia ver por causa da grande cabeça do companheiro. Mas ele sabia muito bem quem era.
Finalmente olhou para o prato: um pedaço de peito de peru; um pouco de arroz, com um tempero que o jovem não reconhecia e que deixava este com uma cor laranja viva, e um pedaço de queijo. Ele nem havia começado a comer quando o anfitrião se levantou. Seus trajes eram brilhantes, verde-claros. Em seus cabelos estavam duas tranças finas e de aparência delicada. No peito, a pérola.
-Meus caros! Que alegria tenho em vê-los aqui. Gostaria de apresentá-los as minhas duas jóias! Esta é minha esposa, Liriêl. - falou ele, apontando para a mulher ao lado de Lou. Ela era linda: olhos azuis, pele lisa como de uma criança, lábios cheios e vermelhos. E finalmente cabelos loiros, que tentavam esconder duas orelhas pontudas. Era uma elfa! Bagén nunca vira ninguém daquela raça.
-E essa é Aryêl, minha filha, nascida sob a proteção da constelação de Rivíel! - disse ele. A jovem se levantou, arregalando os olhos do jovem marinheiro e abrindo sua boca.
-Pare de ficar olhando tudo com esses olhos esbugalhados, - disse Jäsd - e coma sua comida antes que eu o faça! Isso se nenhum dos outros atacarem seu prato primeiro. Bagén? Está me ouvindo?
Bagén não tinha tempo para responder. Ou comer. Tudo que queria fazer era olhar para a jovem. Mas cerca de um minuto depois de feitas as apresentações todos foram para os aposentos.

O dia seguinte amanheceu belo e azul. Bagén havia dormido como uma pedra, o que ele não fazia há anos. Andando pelas ruas de terra batida olhava para a paisagem pitoresca: como uma vila, Fal Dsin era amigável e acolhedora. O comércio era apenas realizado em barracas e tendas, nunca em construções fixas, e eram vendidas especialmente jóias; principalmente colares, pulseiras e anéis com pérolas, grandes e pequenas, mas por mais que Bagén procurasse, nenhuma era tão bela quanto aquela que Yëntaras carregava no pescoço.
O cheiro de peixe era forte: numa ilha é o que está disponível para consumo, além de vegetais e grãos. Poucos comiam carne vermelha, ou mesmo aves, e os que comiam traziam as mercadorias do continente, e seria caro como uma das jóias da ilha. Porém, a carne de coelho também era muito apreciada por lá, mesmo que proibida.
No centro da ilha ficava o monte. Não era muito alto, mas o suficiente para dar um pouco de trabalho para os que queriam escalá-lo, e no mínimo quarenta minutos de caminhada numa subida leve. Era usado por alguns como local de veneração religiosa ou como arena para festas e - é claro - banquetes.
Suado e vermelho, Bagén sentou-se numa pedra grande e lisa no topo do morro Tikél para descansar. Estava ofegante, mas não parecia que demoraria muito para se recuperar (o que se devia principalmente ao trabalho árduo que ele exercia todos os dias em Nòüfah).
-Oh-ho! Isso foi rápido! - disse uma voz grossa, vindo do lado do jovem, em meio a umas pequenas risadas.
-Mestre Lávin! - o garoto respondeu virando-se para a direita - Onde estava noite passada? Não te vi desde que saí do quarto!
-Tinha algo para fazer, no outro lado da ilha. Nós magos sempre temos algo para fazer, pois foi para isso que fomos feitos. E se não tivéssemos nada para fazer, deixaríamos de ser magos. Ou simplesmente acabaríamos - não é certo, pois isto nunca aconteceu.
-Então você é um mago? Isso não tinha me contado. Acho que está explicado todo o mistério que está em sua volta.
-Eh-he! - o senhor tinha um sorriso amigável no rosto idoso, expressão que demonstrava que isso não acontecia muito freqüentemente - posso guardar segredos quando quero, e para estranhos não falo nada.
-Mas um estranho eu era quando fui falar com você.
-Hum... não por completo. Eu já te conhecia há algum tempo, havia te observado no porto, e até em casa às vezes, quando passava pelo bosque.
-E o que foi fazer naquele bosque deserto? Me espionar? - o jovem não sabia se devia rir ou permanecer sério. A expressão estava hilária: vermelho, o cenho franzido, mas visivelmente tentando esconder uma risada.
O mago riu mais do que antes, com sua voz rouca:
-Não é tão deserto quanto você pensa, meu caro! Nesses dias o perigo está embaixo de nossos narizes!
-Perigo, em Nòüfah? Nisto eu não acredito! Os únicos perigos que existem lá são o tédio e os discursos do governador.
-Oras, aquele bosque não é inteiro em Nòüfah, e o reino dos Paladi não é muito grande, conta apenas com cinco cidades e algumas vilas pequenas, e mais essa ilha. Mas entre esses lugares não há ninguém para decretar propriedades, e embora os de sua raça pensem que essas terras estão em paz, não estão. E quanto mais tempo aqueles que não deviam estar lá ficarem na região, mais tempo demorará para eles saírem.
-Meu caro, acho que teve vinho demais noite passada! Está confundindo estórias de fadas com a realidade. O que o povo fala é criado por vento na cabeça.
-Vento? Creio que não. Mas não precisa se preocupar com isto, aqui estará seguro.
-Sim, mas partimos amanhã ao nascer do Sol. - sua expressão mudou repentinamente. Ele estava serio - Imagino se verei uma cidade novamente, ou mesmo uma vila.
O velho tirou um cachimbo de algum lugar que Bagén não viu e calou-se.
-Bem, devo ir agora. - disse Bagén - O Sol vai se pôr e devo voltar. Você vai ficar aqui?
-Por mais alguns minutos. Mas provavelmente nos veremos no casa do bom Yëntaras, esta noite irei para lá.
-Bom, será muito bem vindo.
-Eu sei, meu jovem, eu sei. - mas essas palavras não foram ouvidas, pois haviam sido apenas balbuciadas para ninguém enquanto o jovem iniciava a descida.

A casa parecia mais alegre naquele fim de tarde, mas as pessoas que lá estavam pareciam mais tristes. Aryêl parecia uma flor que começava a murchar: ela adorava convidados, e achava a vida em Fal Dsin tediosa, nunca havia visto o continente mas desejava-o com todo o coração. Liriêl estava sorrindo, mas desejava que os convidados pudessem ficar por mais tempo na ilha.
Yëntaras não podia ser visto em lugar algum. Quando perguntou um servidor da casa, Bagén recebeu a resposta "Cuidando de negócios". Foi então que ele realizou que, embora todos naquela ilha tivessem um trabalho, Bagén não sabia ao certo qual era o do senhor da casa. O jovem aproximou-se de seu capitão e perguntou.
Ver-karas ficou alarmado com a pergunta. Sussurrando, respondeu:
-Ninguém sabe ao certo. Alguns falam que ele abriga marinheiros e é pago pelo governo se alguma coisa boa vier da expedição. Mas acho difícil, pois isso não daria o suficiente para viver, muito menos para viver tão bem. Expedições atualmente não rendem mais que uma dúzia de moedas de prata. Acredito que ele não tenha um negócio, mas viva para aproveitar o que conseguiu há tempos. Ele viveu muito, você sabe? Teve tempo para guardar o que conseguia.
Bagén pensou um pouco, e tentou perguntar o motivo de ele não estar ali, já que trabalho não era. Mas o capitão estava muito ocupado com os preparativos da viagem, e logo estava longe da vista do jovem. Na verdade, ele também não pode ficar muito tempo conversando, pois haviam provisões para levar para o barco em pouco tempo: o Sol se punha na direção do continente, e logo estaria escuro.
No porto, mais gente: moradores da ilha se amontoavam para observar a partida da famosa expedição. Alguns tentavam até se juntar aos marujos, mas não havia mais essa possibilidade (o que Bagén gostou, pois não apreciava muito a companhia de pessoas).
Dentro da embarcação, o jovem encontrou Yëntaras e Lávin, conversando numa das câmaras. Suas expressões mostravam preocupação, e o tom de suas vozes fez o garoto certo de que o assunto era importante: importante e secreto. Por mais que ele tentasse ouvir, era impossível, e o máximo que conseguiu entender foi "Não é seguro, mas é necessário" (e quem falou não foi identificado).
Ele então continuou seu trabalho. Levava queijos e outras comidas para o barco, que em poucas horas ficou pronto para a partida. Então, todos os navegadores se juntaram no convés para avistar pela última vez a ilha e seus habitantes. Foi então que o capitão informou que Sliême, ninguém menos que o meio-ogro que Bagén avistara no dia anterior, viajaria com eles, já que tinha grande experiência no oceano.
Não houve mais tempo para despedidas: o máximo que Bagén conseguiu foi olhar pela última vez os olhos cinzentos de Aryêl refletindo o azul-esverdeado do profundo mar.

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Muito legal!!
Eu só lí a primeira parte, tá meio gradinho e eu tô com preguiça, hehe :)
Achei muito criativo, e tem umas partes macabras!!
Quando eu ler o resto eu comento, okie?
Que velha desgraçada! Morte a ela! :D
O Rei tbm é burro... parece o Théoden :P
Então tá... não deixe de continuar hein:P!
 
Demorou quase cinco meses, mas aqui está o sexto e maior capítulo de Vaeklan, As Novas Terras! Não se esqueçam de comentar, me falem o que vcs acham, mesmo que o V tenha deletado todos os comentarios que tinha antes :D :?
Boa leitura!

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Areia, Folhas e Caudas

A cada dia o mar parecia menos azul e mais cinzento, e o céu parecia menos claro e mais nublado. Até mesmo o trabalho – que antes servia pelo menos para salvar os marinheiros do tédio – parecia diminuir, e o tempo que passavam deitados olhando para o nada era cada vez maior. A cada dia mais pessoas sofriam de sérios enjôos e náusea. O capitão temia que alguns não agüentassem as semanas que, segundo seus cálculos, faltavam para a chegada.
Mas não passaram-se nem dez dias completos e Sliême levou algo ao capitão. Era um pássaro que matara, com suas próprias mãos, ao vê-lo vindo do Norte. Ainda podiam ser vistas marcas de dentes no peito e pescoço do animal. Aparentemente ele baixara sua guarda quando aproximou-se do oceano, para capturar um peixe que vira nadando perto da superfície, quando o Meio-Ogro o capturara com uma rede. Obviamente se aproximavam de terras.
A rota foi modificada: agora dirigiam-se ao Norte, rumo às terras procuradas. Zayti, que estava ao lado de Bagén tirando um cochilo quando o mais novo marinheiro apareceu, não acreditava que fosse mais que a ponta Sul da Baia de Thrah: o capitão teria pego o caminho errado. Mas o que avistaram quando o pedaço de terra ergueu-se do horizonte não era o início de um deserto, mas sim uma praia longa, seguida de uma floresta de árvores frutíferas tropicais pouco densa. Não era um continente, mas uma ilha, bem menor que Fal Dsin.

Próximo à ilha, a água era cristalina, permitindo que os marujos vissem peixes coloridos, de espécies nunca vistas anteriormente. Porém, eles não podiam prestar muita atenção a esses detalhes, já que trabalhavam para baixar a âncora e encher dois botes com provisões. Três pessoas iriam até a praia num deles, e dois em outro, para inspecionar a ilha. Deveriam seguir pela praia até que se verificasse que o lugar era mesmo ermo.
Ao desembarcarem sobre a areia fina e brilhante, viram uma paisagem diferente de todas as vistas por Paladi desde que chegaram ao pedaço de terra no Sudeste do continente ocidental. Completamente deserta, a ilha possuía uma riqueza natural inimaginável por mentes vindas de cidades grandes com construções de cimento e pedras. A simplicidade do ambiente dava uma sensação de paz e despreocupação. Nada poderia fazê-los se mover se não quisessem, mas queriam. Desejavam conhecer melhor aquele paraíso.
Estavam lá Bagén, que carregava todos os dois botes, com as sacolas cheias e pesadas, para terra firme; Jäsd, que tentava ajudar o amigo (embora não fosse muito útil, já que a cada passo parava para mirar o céu, a terra e o mar); Uhní, que tentava calcular a distância da orla da floresta, e Frenk, que, com seu irmão Ghenk, observava o formato da ilha e do grupo de árvores.
A praia era mais comprida que parecia do barco, e foi mais difícil atravessá-la do que os homens imaginaram. Cada um levava um saco pendurado no ombro, e não parar para abri-los e devorar seu interior era um sacrifício horrível. Porém, não puderam fazer isto mesmo depois de chegarem à sombra das árvores, já que o capitão fora muito claro quanto às provisões: deveriam comer aquilo por todo o tempo em que ficariam longe da embarcação, ou haveriam de passar fome até a volta. Mas descansaram e experimentaram das frutas suculentas que pendiam dos galhos finos de árvores desconhecidas.
Mesmo na sombra, o calor era insuportável, e eles tiveram que continuar andando, para que não se demorassem naquela ilha e pudessem chegar logo ao verdadeiro destino. Dois deles, Uhní e Ghenk, voltaram aos botes para que não os perdessem. Eles acompanhariam os outros três pela água. Bagén de certa forma os invejava por terem o refrescamento da água fria, mas se contentava por viajar protegido do Sol escaldante.

Após muito andarem em torno da ilha, descobriram que esta não estava solitária no meio do alto-mar, mas era parte de um arquipélago, do qual era a menor parte. Após voltarem para o navio por um curto período de tempo, se dirigiram à ilha que eles acreditavam ser a principal (dentre pelo menos quatro), agora acompanhados de outros dois: Breg e Hein.
Esta outra ilha era muito maior, e nela havia uma floresta verde densa, praticamente desprovida de frutos. A imensidão da areia da praia dava aos marinheiros a impressão de que estavam num deserto. Depois de alguns metros, eles já estavam se virando para ver o quanto haviam andado, mas poucas pegadas os distanciavam do mar. O vento ajudava a esfriá-los, mas atrapalhava a caminhada e levava areia aos seus olhos. Os pés afundavam nos grãos claros, e sentí-los dentro de seus calçados era desconfortável e doloroso.
No final da primeira etapa da caminhada, encontraram-se entre três regiões: a praia, a floresta, e uma área onde a areia dava lugar a rochas grandes e altas, que haveriam de ser escaladas para desvendar o que jazia por trás delas. Enquanto os marinheiros tiravam seus sapatos para livrarem-se da areia, protegidos na sombra da floresta, Hein foi até a mais próxima e mais acessível das pedras e nela encostou para empurrá-la levemente e descobrir se era seguro escalá-la. Porém, antes que pudesse fazer isso, retirou sua mão rapidamente, pois a pedra estava quente como água que ferve num caldeirão. Repetiu o gesto, agora protegendo as mãos com um pedaço de pano grosso.
Percebendo que a pedra estava firmemente presa às outras, Hein subiu nela, e – ainda sem poder ver além das rochas maiores – usou-a como degrau para chegar até uma outra pedra. Porém, esta moveu-se bruscamente (não estando tão bem presa ao chão quanto a outra), derrubando várias outras pedras do lugar. O estrondo durou por alguns minutos, enquanto todo o complexo de rochas tombava em frente aos olhos dos sete. Quando o barulho havia cessado, os outros seis marinheiros viraram-se para Hein, cujos olhos estavam abertos e cujos lábios, semi-abertos, tremiam como se estivessem envolvidos pelo frio polar. O silêncio era agora maior do que antes de o marujo queimar-se na primeira das pedras, que continuava imóvel, no lugar onde foi encontrada pela primeira vez.
Mas o silêncio não durou muito tempo, pois ao longe se podia ouvir um som nada parecido com a queda de pedras umas sobre as outras. Era um barulho selvagem, quase animal, mas com um tom quase civilizado. Era distante; vinha de além do horizonte, de além das pedras tombadas. Medo percorreu o corpo dos sete marinheiros que ali estavam, enquanto os berros continuaram sendo ouvidos.
É verdade, haviam se preparado para o perigo, pois uma ilha como esta certamente haveria de abrigar animais que não gostariam de assistir sete Paladi tomando suas moradias e dominando seu habitat. Mas algo naquele urro gelava as espinhas dos marinheiros, e os paralisava da cabeça aos pés. Mas eles sabiam que não havia tempo para ficar parado: os animais pareciam mover-se com rapidez, e o fato de estarem em sua própria casa daria a eles uma vantagem contra aqueles homens que não sabiam lutar, mas apenas lavar o chão de um barco ou carregar caixas de um lado ao outro de portos.
Bagén abriu sua mochila para ver o que poderia utilizar para afastar as criaturas que chegavam. Nada encontrou além de comida e uma pequena faca. Quando os outros viram o que ele havia encontrado, procuraram por suas mochilas também, e encontraram outras três facas. Como Bagén era o marujo de posição mais baixa no navio, e também o menos respeitado, teve que ceder sua faca para Uhní, que (junto com Breg, Frenk e Ghenk) estava agora armado. Os outros três – Bagén, Jäsd e Hein – tiveram que ir até a orla da floresta e apanhar alguns galhos grossos e fortes que eles julgaram que seriam úteis caso seus inimigos (ainda sem rostos ou nomes) não fossem afastados apenas pelos quatro homens com facas.
T-tum. T-tum. O chão tremia, e agora os passos das criaturas eram ouvidos, além de seus gritos. Os sete marinheiros agora viam claramente o lugar de onde os sons vinham. Virados para aquela direção, esperavam que a qualquer momento uma cabeça (ou mais de uma) surgisse por cima de uma rocha especialmente lisa e grande. T-tum. O coração de Bagén batia forte, mas ele acreditava estar preparado para mandar aqueles animais para longe sem danos para os homens ou para os próprios animais. Afinal, já havia expulsado vários animais selvagens de sua casa no limiar do bosque de Nòüfah. T-tum. T-tum. T-tum. Os urros estavam claros e altos, próximos.
E finalmente Frenk avistou, antes de seus colegas por estar justamente em cima da pedra que Hein subiu em primeiro lugar, cerca de duas “mãos” (os Paladi chamavam um grupo de cinco de “mão”) de cabeças erguendo-se por cima das rochas, e então os ombros e os corpos – de quase três metros de altura – quase humanóides. Quase. Os seres não andavam eretos como um Paladi ou mesmo um Humano (até um dos mais selvagens Humanos), mas sua coluna dobrava-se em direção ao chão, de modo que seus fortes e grossos braços ficassem algumas polegadas à frente do tronco. Os joelhos permaneciam dobrados, quase tocando os cotovelos. Os pés e as mãos traziam seis gordos dedos cada. Mais pareciam patas de urso, pelo formato e pela ausência de polegares opositores. A pele parecia grossa e suja, e estava coberta de lama. A cabeça, sem pelos ou cabelos como o resto do corpo, trazia olhos pequenos e inexpressivos. Da extremidade inferior da coluna saia uma cauda.
T-tum.
Agora que Bagén podia ver melhor, mas ainda permanecendo longe o suficiente para não ter que fugir, o jovem pode contar: haviam nove criaturas, que avançavam lenta mas constantemente em direção aos sete. Mas embora o garoto tivesse percebido a grossa camada de pele que os animais possuíam, ele também percebera que por cima do estômago e dos pulmões deles, o tecido parecia tornar-se mais macio e vulnerável. Ele apertou o galho que segurava em suas mãos, como se tentasse torcê-lo.
– Trasgos! - gritou Uhní, quando pode vê-los melhor - São trasgos! Acertem-nos na barriga, eles são mais frágeis lá! E cuidado com as caudas, se eles te acertarem com um golpe de cauda, você não conseguirá levantar-se por dias, se tiver a sorte de se levantar novamente.
Um grunhido veio de um dos trasgos. Como se fosse em resposta, alguns outros grunhiram também. Mas estes grunhidos não eram como os berros de um leão ou um urso. Eles eram diferentes, cada um com seus tons e formas, cada um era único e característico, o que também era notado no movimento daquelas asquerosas bocas sem lábios. Eles estavam se comunicando. Se entendendo.
E então Frenk, que estava na frente dos outros Paladi, avançou correndo, segurando sua faca com firmeza. Dirigiu-se à criatura mais próxima. Colocou a arma diante de si, disposto a acertar o trasgo no seu ponto fraco. Os pés pisavam em rochas cinzentas de diversos tamanhos, enquanto o homem se aproximava de seu alvo. Mas o animal serenamente colocou o braço em frente ao corpo, e o que era para ser um ferimento profundo no abdômen tornou-se um corte superficial no pulso. O sangue era mais escuro do que o de Paladi ou qualquer outra criatura que Bagén conhecia – excluindo apenas Sliême.
Frenk atacou de novo, mas o imenso braço o jogou para longe. Ele levantou-se, e voltou a atacar o mesmo inimigo. Agora, todos os trasgos recomeçaram a avançar, assim como os marinheiros. Jäsd lutava contra dois ao mesmo tempo, usando apenas um galho, mas este era o maior galho que ele encontrara: cerca de quatro pés de comprimento, e ao menos vinte centímetros de diâmetro. Manejava-o sem muita habilidade, mas com uma força surpreendente – ele parecia levantar algo leve como um pergaminho. Girava-o na direção de seus oponentes, acertando-os por diversas vezes nos rostos e nas mãos, quando eles ousavam usá-las para defesa.
Ghenk batalhava contra um trasgo especialmente grande. Sendo o único dos marinheiros que já tivera alguma experiência em batalhas, ele dominou a luta logo no início, fincando o objeto metálico fundo no coração do oponente, tirando-o de lá e atacando outra criatura. Porém, esta já estava preparada, e virou-se para atacá-lo com sua cauda, tentando acertar o palad na altura do peito. Porém, este esquivou-se, mas tarde demais e o trasgo acertou seu braço direito. Ghenk só poderia usar a mão esquerda agora.
Breg e Uhní foram cercados por duas das criaturas, e lutaram lado a lado bravamente, ajudando um ao outro. O primeiro, com um ferimento na perna, mal podia andar, e por isso apoiava-se no outro para ficar de pé. Mas os dois não pareciam ter grandes problemas, e conseguiam golpear os inimigos sem sofrer dano algum. Enquanto isto, Hein se equilibrava no corpo do trasgo morto por Ghenk para golpear seu próprio inimigo no rosto, com um galho fino mas pontudo, que deixou o oponente sem a visão do olho esquerdo. Então, o marinheiro desceu do cadáver e começou a tentar acertar a parte sensível da criatura.
Bagén começava a ter problemas. Embora fosse forte e ágil, e mais jovem e vigoroso que os outros homens, não possuía habilidade em batalhas, e tinha dificuldade em ultrapassar o escudo impenetrável formado pelos dois braços do trasgo que atacava. Só conseguiu fazer isto após chutar a canela do mesmo, que desequilibrou-se e deixou-se acertar pelo jovem, mas não sem revidar com um pesado chute no estômago. Felizmente, o animal necessitava de tanta energia para levantar a perna que não pode concentrar-se em dar um golpe forte, e Bagén permaneceu de pé.
A batalha continuou por quase meia hora. A força bruta dos trasgos mostrava-se uma barreira poderosa para a inteligência e agilidade dos Paladi. Mas os sete lutavam incessantemente, usando a habilidade ou a criatividade para derrotar seus inimigos. Ghenk encontrava dificuldades em lutar com a mão esquerda, mas usando sua mente ele conseguira derrubar mais um trasgo. Sentindo então a dor no braço direito, caiu no chão, sem conseguir levantar-se novamente. Hein conseguiu matar facilmente seu inimigo, agora com a visão prejudicada, enquanto Jäsd acertou os seus dois oponentes: um no pulmão, matando-o, e outro na cabeça, deixando-o desacordado. Com mais um golpe do pesado galho, ele acabou com a vida de mais uma criatura. Frenk, após muito esforço, fez o trasgo com o qual batalhava ficar cansado, e aproveitou-se da situação para enfiar-lhe uma faca no estômago.
Uhní conseguiu cortar a garganta do trasgo que enfrentava, matando depois o que tentava atacar Breg. Apenas um trasgo permanecia de pé, e este era o que Bagén enfrentava. O jovem tentava acertá-lo mais uma vez, quando deixou cair sua arma improvisada. Sem condições de enfrentar a criatura com suas mãos vazias, ele correu por cima das pedras. Porém, ao fazer isto, teve seu pé preso entre duas rochas, tombando violentamente e batendo a cabeça de leve contra a superfície dura mas lisa da maior pedra que havia no lugar. E Bagén fechou os olhos, desmaiado.

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