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Janela

Eu sempre achei que tivesse os sentidos mais aguçados do mundo.

Podia sentir cheiro da comida da minha mãe enquanto corria pela rua, brincando de esconde-esconde.
Me procuravam para encontrar um parafuso da televisão, camuflado no tapete escuro onde caira.
Sou capaz de lembrar e descrever o gosto da comida do Revéillon, aquele tatu recheado ao molho de laranja que todo mundo disse ser maravilhoso, e eu dei de presente pra um mendigo, sem remorso.
Quando alguém me cobre os olhos, descubro a identidade de quem quer me surpreender só pelo toque de suas mãos, o que deixa todo mundo que faz isso frustrado.
E ainda escuto a música do IPod de quem está do meu lado e canto junto, se eu gosto do que ouço.

Mas tem uma coisa que seus sentidos não estão preparados.

A Larissa só tinha oito anos. Não teve tempo pra merecer aquilo. Não teve tempo pra nada.

Naquele dia triste, nem o cheiro de chuva deixavam as coisas mais serenas. O odor acre de tristeza e morte pairavam no ar do cemitério. O Silêncio (com maiúscula mesmo) era tão palpável que eu pensei ter visto alguns primos abraçarem aquela entidade, chorando copiosamente.

Como se eu estivesse embalado à vácuo, fora do mundo exterior, um vazio tomou conta de mim. Alguns me deram condolências, eu só via vozes abafadas e rostos embaçados, como se estivessem separados de mim por uma vidraça fosca. As gotas grossas que vinham do Céu de Larissa já me deixavam quase submerso, ainda mais contando as minhas lágrimas. Mas eu não sentia nada. Era como se eu estivesse fora de mim, me olhando. A expressão oca, nula de qualquer sentimento. Uma tábula rasa.

Quase flutuando, fui até o caixão aberto de Larissa. Dizem que quando uma criança morre, ela vira um anjo ao lado de Deus. Eu nem acredito muito nesses Deuses que apregoam tanto por aí. Mas ela realmente andar por aí usando uma lira e um par de asinhas que eu não ficaria surpreso.

O dia, que já era escuro, vira noite de repente.
Eu, que sentia como se estivesse de pé, estou deitado.
A escuridão do quarto e o calor do edredon e do corpo ao meu lado não me deixam confusos. Levanto, dou um beijo na testa de minha esposa e percorro, de pés descalços, o corredor da casa até o quarto ao lado.
Ele foi pintado recentemente com um tom suave de rosa. Pedimos para que alguns amigos fizessem um graffiti bonito na parede, com pôneis e coisas que um grafiteiro não está normalmente acostumado a desenhar. Eles ficaram honrados. O móbile girava lentamente, de lado para o outro. E no berço abaixo dele, estava ela. Um bebê ainda, nem tinha um ano.

Realmente eu ainda não sabia lidar com isso. Mas tinha tempo pra aprender.
Uns oito anos, mais ou menos.
 

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