O mingau ou pudim de tapioca é uma sobremesa tradicional nos países de língua inglesa. É algo amorfo e parece não ter nenhum gosto característico. E é a isso que o capitão Beatty, o principal antagonista do livro, compara indiretamente a cultura de seu tempo ao falar das revistas. Fahrenheit 451 aparece então como uma representação pessimista e um protesto contra a cultura de massas que se desenvolvia nos Estados Unidos na época de sua publicação e que se espalhou pelo mundo desde então.
Nessa cultura hedonista (voltada para espetáculo, diversão e felicidade individual compulsória, para o presente, a velocidade, a violência e a juventude), qualquer traço de incômodo ou de infelicidade deve ser eliminado. Chegando-se ao ponto em que a própria morte natural de alguém, esse incômodo maior dos vivos, é adiaforizada (para usar o termo de Zygmunt Bauman) ao extremo e em alguns minutos o morto está cremado e já pode ser esquecido. É nesse meio que vemos o bombeiro Guy Montag, nosso personagem principal.
No que parecem ser os Estados Unidos em algum lugar pós-2022 (único marco cronológico que temos), seu papel é o de assegurar a paz de espírito e felicidade do mundo queimando livros, ou ao menos os das Humanidades (Letras, Filosofia, História etc), pois, supostamente, as opiniões contraditórias deles só levam à infelicidade, o que aí significa: questionamentos, dúvidas. Ler esses livros não parece ser um crime político, contra uma possível ditadura, mas um crime comum, punível com prisão ou internação em hospício.
Na verdade, o trabalho dos bombeiros-inquisidores-juízes quase não é necessário, havendo poucos “rebeldes” interessados em ler. Dois dos principais que vemos, estranhamente não têm livros em casa, seu desvio estando em não dedicarem suas vidas à televisão como a maioria das pessoas, preferindo ter contato com a vida real e com pessoas reais, sem intermediários, o que parece bastar.
Clarisse McClellan, vizinha de Guy, tem 17 anos e demonstra muita curiosidade pelo mundo (pelo cheiro de folhas mortas e pela chuva, por exemplo) e pelas pessoas. Faber é um velho professor (de inglês?), cético quanto ao destino da Humanidade, mais amante de livros do que dela (ele tem essa mania de cheirar livros...), que Montag conhece em um parque e que com sua experiência se torna uma segunda consciência de Guy. A contrapartida dos dois é Mildred, esposa de Montag, que parece ser uma dona de casa totalmente mergulhada na vida artificial da televisão e, consequentemente, vazia.
Clarisse e Faber catalisam um desespero e revolta que Montag já tinha antes de conhecê-los. Sim, porque essa é uma civilização da Felicidade Paradoxal, para usar o título de um livro de Gilles Lipovetsky referente ao mundo contemporâneo. Essa sociedade possui um lado doentio no grande número de suicídios e mortes violentas com armas ou acidentes de carro, o que não parece incomodar ninguém. Não deveriam estar todos felizes?
Montag planeja com Faber (muito a contragosto desse) uma pequena rebelião contra seu mundo, mas o reencontro com o chefe de bombeiros Beatty precipita as coisas contra eles. Beatty é uma figura saída da Santa Inquisição, porque conhece e cita vários dos livros proibidos que queima enquanto tenta dissuadir Montag, sem sucesso.
Outros rebeldes aparecem após Montag fugir. Eles permanecem como outsiders do mundo oficial, guardiões do saber humano milenar apenas em suas mentes, enquanto esperam o fim dessa civilização e a chegada de uma nova Idade das Trevas, quando pretendem estar preparados para fazer o ser humano ressurgir de suas cinzas como a Fênix (como diz Granger, um dos rebeldes).
Existem ainda críticas ao Cristianismo transformado em mercadoria (tanto que nem o próprio Deus reconheceria seu filho se o visse, pensa mais ou menos Faber a certa altura), à decadência da família e das relações humanas (notar o contraste entre a família “de verdade” de Clarisse e a família da televisão de Mildred, além das relações de suas amigas com seus filhos e com o divórcio), à cultura como espetáculo (na ubiquidade da televisão e na perseguição final), à guerra e ao atomismo (o livro é pacifista), entre outras que se poderiam explorar.
Apesar do retrato pessimista da cultura de massa, o livro fecha com esperança. Não naquela, talvez, mas nos seres humanos. As figuras de Faber e Granger nos falam que mais importante que o saber e os livros é o que se faz com o conhecimento, num sentido político e ético. Não basta saber, é preciso agir (mesmo que se espere para isso, o que parece contraditório), engajar-se. É preciso deixar um pouco de si no mundo, de sua alma, modificá-lo de alguma maneira, mesmo pequena. Lutar. Viver.