"Pode-se gostar da Fifa ou detestá-la. Eu não gosto. Uma entidade habitada por figuras funestas como Joseph Blatter, atual presidente, e o recluso espectro de Ricardo Teixeira, não é boa coisa. Uma entidade que mostrou ao Brasil que João Havelange não era o bom velhinho, uma entidade que foi indiretamente responsável pela destruição do Maracanã não merece empatia. Mas, confesso, eu gosto da Copa. A Copa do Mundo, aquela que não levava o nome da Fifa ainda que vinculada à corporação, sociedade secreta, sei lá, da Copa eu gosto. Se existe essa Copa pura, ou não, ignoro, mas ela está impressa em algum lugar simbólico muito forte que é reativado quando o futebol se expressa ao longo da competição. Esse fenômeno independe da própria Fifa, do mercenarismo dos jogadores, dos intermediários, do poder da grana, de tudo de ruim.
Isto dito, digo mais: mesmo que não goste da Fifa, é útil observar que a Fifa tem razão ao dizer que a “culpa das manifestações” é do governo. Não que as manifestações sejam um problema, algo sobre que se deva imputar uma culpa, muito ao contrário. Mas são um problema para o governo e um néctar para a oposição. A Fifa não tem o monopólio do poder da grana, do fisiologismo, da demagogia. Se o governo quis fazer a Copa num ano eleitoral, num país com infraestrutura embaralhada, num país que planeja aos trancos e barrancos, a culpa é do governo mesmo. Se o Brasil escolheu 12 sedes (Blatter diz que Lula queria que fossem 17), a culpa é do governo. Foi o governo que assinou um caderno de encargos absurdo, foi o governo que submeteu o país às normas da Fifa.
Foi o governo que precisou da Copa Fifa no Brasil. O Brasil sobreviveria sem a Copa Fifa durante uns bons cem anos, ou mesmo até que o Sol se extingua daqui a 5 bilhões de anos, mas o Brasil é o país do futebol, e o governo crê que o Brasil precisa assegurar sua hegemonia no futebol e aposta na Copa das Copas. Não há uma Copa do Mundo paralela, só há a Copa da Fifa, se quiser Copa das Copas vai ter que lamber as botas do Blatter. O discurso de que a seleção é “patrimônio” do Brasil, salvaguarda da afirmação da identidade e da civilidade e da cordialidade, isso ninguém engole mais. O Brasil se transforma.
Mesmo assim, pode-se gostar da Copa, gostar de Neymar, torcer. Não estão decorando as ruas, pois hoje metade da vida se passa nas redes, as outras, ali se discute tudo, futebol, manifestações, Fifa, figurinhas, pontos de bafo para troca de figurinhas (e, paradoxalmente, graças às figurinhas se volta à rua para falar de Copa).
Mas o Brasil vive também uma era de radicalismos, de forma que quem diz que gosta da Copa é imediatamente identificado com a Fifa e com o governo e com superfaturamento e com tudo de ruim. Quem gosta da Copa, quem quer torcer, quem quer pintar a rua, vestir verde-amarelo, é um pária, um traidor da classe média sacrificada, carece ser patrulhado, ou até agredido. Nesse campo de batalha fragmentado, vive-se um suspense jamais visto, a ponto de se ter dúvidas sobre se a Copa acontecerá ou não.
Claro que a Copa pode não acontecer. Um planeta em voo livre não detectado pelos observatórios pode vir a se chocar contra a Terra. Uma tsunami pode atingir o litoral nacional. Mas o que se teme é que uma tal convulsão social se abata sobre o país que impeça a bola de rolar. Essa profecia, que é mais um desejo que um cenário provável, tem parentesco com a crença de que o mundo acabaria em 2012. Pode até ser que tenha acabado, pode ser que tenha acabado há mais tempo, pode ser que nem exista o mundo, que seja uma ilusão do indivíduo, ou uma ilusão minha, ou uma ilusão do Neymar, estão aí os solipsistas para apoiar, ao menos no terreno da filosofia, essa hipótese. Mas, caso o mundo não tenha acabado em 2012, e se a Copa de fato acontecer em 2014, o que será que será?
Será que daqui a duas semanas as ruas estarão pintadas? Ou, se não estiverem, o brasileiro vai dispensar o feriado e a cerveja e o carnaval?
Nesta semana ouvi no refeitório do jornal um cozinheiro dizer a um nutricionista que “está ficando mais confiante na seleção”. Quando começarem as televisões nos botequins a estourar as primeiras imagens, e quando Gana e Alemanha se enfrentarem, e quando vier a Espanha, quando o juiz entrar em campo e for xingado, e quando Dilma declarar aberta a Copa das Copas da Fifa das Fifas, o que será?
Quem vai renunciar ao espetáculo? Quem torce contra o Brasil vai perder o espetáculo? Se não houver Copa, como é que se vai torcer contra o Brasil?
Vexame mesmo é esse álbum de figurinhas. Papel cada vez pior, fotos horríveis, projeto gráfico infame. Comprei um, adquiri 30 pacotes e até agora não abri. Deixei na mala do carro. Como uma caveira de cavalo, um cachorro enterrado, um montinho artilheiro. Sinto saudades da estátua do Garrincha no Maraca e nem sei se vou conseguir assistir ao vivo a um jogo da Copa (não fui sorteado). Fazer o quê? Eu não gosto da Fifa. Eu gosto da Copa. E dos protestos. E do Brasil."
Fonte
Isto dito, digo mais: mesmo que não goste da Fifa, é útil observar que a Fifa tem razão ao dizer que a “culpa das manifestações” é do governo. Não que as manifestações sejam um problema, algo sobre que se deva imputar uma culpa, muito ao contrário. Mas são um problema para o governo e um néctar para a oposição. A Fifa não tem o monopólio do poder da grana, do fisiologismo, da demagogia. Se o governo quis fazer a Copa num ano eleitoral, num país com infraestrutura embaralhada, num país que planeja aos trancos e barrancos, a culpa é do governo mesmo. Se o Brasil escolheu 12 sedes (Blatter diz que Lula queria que fossem 17), a culpa é do governo. Foi o governo que assinou um caderno de encargos absurdo, foi o governo que submeteu o país às normas da Fifa.
Foi o governo que precisou da Copa Fifa no Brasil. O Brasil sobreviveria sem a Copa Fifa durante uns bons cem anos, ou mesmo até que o Sol se extingua daqui a 5 bilhões de anos, mas o Brasil é o país do futebol, e o governo crê que o Brasil precisa assegurar sua hegemonia no futebol e aposta na Copa das Copas. Não há uma Copa do Mundo paralela, só há a Copa da Fifa, se quiser Copa das Copas vai ter que lamber as botas do Blatter. O discurso de que a seleção é “patrimônio” do Brasil, salvaguarda da afirmação da identidade e da civilidade e da cordialidade, isso ninguém engole mais. O Brasil se transforma.
Mesmo assim, pode-se gostar da Copa, gostar de Neymar, torcer. Não estão decorando as ruas, pois hoje metade da vida se passa nas redes, as outras, ali se discute tudo, futebol, manifestações, Fifa, figurinhas, pontos de bafo para troca de figurinhas (e, paradoxalmente, graças às figurinhas se volta à rua para falar de Copa).
Mas o Brasil vive também uma era de radicalismos, de forma que quem diz que gosta da Copa é imediatamente identificado com a Fifa e com o governo e com superfaturamento e com tudo de ruim. Quem gosta da Copa, quem quer torcer, quem quer pintar a rua, vestir verde-amarelo, é um pária, um traidor da classe média sacrificada, carece ser patrulhado, ou até agredido. Nesse campo de batalha fragmentado, vive-se um suspense jamais visto, a ponto de se ter dúvidas sobre se a Copa acontecerá ou não.
Claro que a Copa pode não acontecer. Um planeta em voo livre não detectado pelos observatórios pode vir a se chocar contra a Terra. Uma tsunami pode atingir o litoral nacional. Mas o que se teme é que uma tal convulsão social se abata sobre o país que impeça a bola de rolar. Essa profecia, que é mais um desejo que um cenário provável, tem parentesco com a crença de que o mundo acabaria em 2012. Pode até ser que tenha acabado, pode ser que tenha acabado há mais tempo, pode ser que nem exista o mundo, que seja uma ilusão do indivíduo, ou uma ilusão minha, ou uma ilusão do Neymar, estão aí os solipsistas para apoiar, ao menos no terreno da filosofia, essa hipótese. Mas, caso o mundo não tenha acabado em 2012, e se a Copa de fato acontecer em 2014, o que será que será?
Será que daqui a duas semanas as ruas estarão pintadas? Ou, se não estiverem, o brasileiro vai dispensar o feriado e a cerveja e o carnaval?
Nesta semana ouvi no refeitório do jornal um cozinheiro dizer a um nutricionista que “está ficando mais confiante na seleção”. Quando começarem as televisões nos botequins a estourar as primeiras imagens, e quando Gana e Alemanha se enfrentarem, e quando vier a Espanha, quando o juiz entrar em campo e for xingado, e quando Dilma declarar aberta a Copa das Copas da Fifa das Fifas, o que será?
Quem vai renunciar ao espetáculo? Quem torce contra o Brasil vai perder o espetáculo? Se não houver Copa, como é que se vai torcer contra o Brasil?
Vexame mesmo é esse álbum de figurinhas. Papel cada vez pior, fotos horríveis, projeto gráfico infame. Comprei um, adquiri 30 pacotes e até agora não abri. Deixei na mala do carro. Como uma caveira de cavalo, um cachorro enterrado, um montinho artilheiro. Sinto saudades da estátua do Garrincha no Maraca e nem sei se vou conseguir assistir ao vivo a um jogo da Copa (não fui sorteado). Fazer o quê? Eu não gosto da Fifa. Eu gosto da Copa. E dos protestos. E do Brasil."
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